24 Junho 2021
A ascensão da China como potência econômica e política dominante é um fato central de nossa época. Essa ascensão se baseia, em parte, em uma implacável repressão aos trabalhadores. O desenvolvimento chinês ocorre em um período de globalização, cujo modelo é plasmado na Organização Mundial do Comércio (OMC), que protege os direitos de propriedade, faz cumprir os contratos e abona os investimentos, mas não diz nada sobre os direitos trabalhistas.
Jenny Chan, professora assistente de Sociologia, na Universidade Politécnica de Hong Kong, realizou um trabalho pioneiro ao explorar o surgimento de uma nova classe trabalhadora na China. Trata-se de uma classe trabalhadora de jovens migrantes procedentes do campo, que trabalham muitas horas em empregos mal remunerados e vivem em condições cruéis.
Junto com Mark Selden e Pun Ngai, Chan escreveu Morir por un iPhone (Peña Lillo/Continente, 2014), no qual relata as condições de exploração trabalhista vividas pelas trabalhadoras e os trabalhadores de uma empresa, com base em Taipei, que fabrica produtos para a Apple. Desde então, suas pesquisas avançaram e conseguiram mostrar as condições de exploração trabalhista que dão conta do crescimento econômico chinês.
A entrevista é de Mark Levinson, publicada pela revista latino-americana de ciências sociais Nueva Sociedad, Junho/2021. A tradução é do Cepat.
Apesar da repressão, há uma longa história de luta dos trabalhadores na China. Poderia começar com um breve resumo das últimas décadas de tentativas dos trabalhadores em fazer com que suas vidas sejam mais visíveis?
Durante um século, na China moderna houve lutas para resistir quem controla os frutos do trabalho industrial e agrícola. Primeiro foi uma luta contra o Estado, hoje, é uma luta contra um regime misto ou híbrido que inclui o Estado e o capital privado.
Em muitos trabalhadores e trabalhadoras, há uma grande frustração e resistência. Por quê? Porque trabalham 12 horas por dia e as longas jornadas de trabalho não lhes proporcionam um salário digno. Esta nova classe trabalhadora é enorme: 300 milhões de trabalhadores migrantes abandonaram o campo, a maioria são jovens com grandes esperanças de ter uma vida melhor na cidade.
Não querem trabalhar a terra, como os seus pais fizeram, mas desfrutar do consumo e a tecnologia urbanos. Mas acabam vivendo em dormitórios de fábricas, ou em outras residências baratas, onde para eles é difícil sequer pensar em ter uma família ou se estabelecer na cidade.
As pesquisas mostram que o rodízio de pessoas nas fábricas de produtos eletrônicos é alto e, no entanto, os gerentes se preocupam principalmente com a produtividade fabril e a qualidade do produto. E o bem-estar dos trabalhadores?
As lutas dos trabalhadores se tornaram mais frequentes depois que a China passou a fazer parte da OMC, em 2001?
Sim. Na medida em que a China se integrava mais à produção transnacional e o comércio mundial, as províncias começaram a enviar ainda mais trabalhadores rurais para satisfazer a demanda em massa de serviços, a construção e o trabalho fabril nas cidades.
Durante as últimas duas décadas, houve uma alta mobilidade tanto de capital como de mão de obra. O investimento direto asiático, estadunidense e europeu deu uma nova forma ao modelo de crescimento da China e o expandiu, atraindo mais trabalhadores ao mercado.
Falemos de seu livro, ‘Morir por un iPhone’, que me pareceu um relato impactante da vida e as condições de trabalho dos jovens que trabalham na Foxconn, uma empresa que fabrica produtos para a Apple. Em primeiro lugar, o que a levou a estudar os trabalhadores da Foxconn?
A Foxconn é a maior fabricante terceirizada de eletrônicos do mundo. Em certo momento, a Foxconn contava com um total de 1,3 milhão de trabalhadores, a grande maioria nas 40 fábricas que a China possui. Mas sua sede central fica em Taipei. Também possui grandes fábricas no Vietnã, Índia e República Checa. A Foxconn afirmou que estava planejando abrir uma fábrica de LCD de grandes dimensões em Wisconsin, embora agora não esteja muito claro se isso acontecerá.
A China continua sendo a principal fonte de rentabilidade da Foxconn. Durante aproximadamente os últimos dez anos, a Foxconn se transferiu para o centro e o sudoeste da China, formando o principal centro industrial que liga a China ao Oriente Médio e a Europa, como parte da “Nova Rota da Seda”.
Na Foxconn é possível ver todas as contradições da economia global. Fabrica produtos para a Apple, a empresa ícone de nossa época. No contexto de um regime comercial neoliberal, estruturado pelos governos dos Estados Unidos e a China, esta empresa desenvolveu um sistema de produção brutalmente explorador. Enquanto o mundo se maravilha com o último dispositivo da Apple, nós pensamos que valeria a pena centrar a nossa atenção nos trabalhadores que fabricam o produto.
E o fato é que, quando são suprimidos direitos dos trabalhadores em uma gigante mundial como a Foxconn, fica difícil melhorar os salários e as condições de trabalho dos trabalhadores dos Estados Unidos, México, Brasil e Vietnã. As lutas dos trabalhadores em todo o mundo estão mais vinculadas do que às vezes se acredita.
O que descobriu na Foxconn?
Foi impactante. Em 2010, 18 jovens trabalhadores migrantes tentaram suicídio, sucessivamente. Quatro sobreviveram com danos incapacitantes. Um dos sobreviventes tinha 17 anos e havia trabalhado para a Foxconn durante aproximadamente um mês. Devido a algum erro administrativo, não recebeu o seu salário. Não tinha ninguém que pudesse ajudá-lo.
Lembremos: são jovens migrantes que, pela primeira vez, estão fora de suas casas. Estes trabalhadores e trabalhadoras, na flor da juventude, chegam até a Foxconn muito esperançosos, estão aterrissando em uma empresa Fortune Global 500 e se iludem com um ambiente de alta tecnologia com ar condicionado, mas a realidade é muito diferente. Montam iPhones durante 12 horas por turno.
Os turnos, de dia e de noite, são muito longos por causa do alto volume de produção e os curtos prazos de entrega destes artigos. É inconcebível que um consumidor precise esperar um mês para ter um novo modelo de iPhone!
Na oficina, os engenheiros industriais medem a produção, assim como os gerentes “científicos” tayloristas. Os trabalhadores, os seres humanos, têm os seus corpos e mentes subsumidos pela máquina capitalista. Sentem-se terrivelmente desesperados.
Os prazos de entrega são cada vez mais curtos, porque o tempo é dinheiro. Nossos amados iPhones estão programados para se tornar obsoletos rapidamente. Nas fábricas não há grandes esperanças de que os operários da montagem façam carreira e obtenham uma ascensão. E muitos destes trabalhadores da Foxconn são estagiários provenientes de escolas de formação profissional onde também sofrem uma grande exploração.
O que aconteceu em resposta aos suicídios? No livro, há uma imagem de redes colocadas fora dos dormitórios para impedir as pessoas que tentavam se suicidar. Foi essa toda a resposta da Apple e a Foxconn?
Estas “redes antisuicídio” ou “redes de segurança” ainda estão em funcionamento em muitas fábricas da Foxconn. Isso nos diz que os problemas, a pressão e o desespero permanecem lá. Se houve alguma mudança, nos últimos dez anos, foi mínima.
Pelo que sabemos, a Apple tentou ajustar o sistema de auditoria para enviar mais pessoas às fábricas e dormitórios para realizar entrevistas com os trabalhadores. Mas é simplesmente uma medida de autoproteção.
Fundamentalmente, a Apple e outras empresas de tecnologia dependem em grande medida da Foxconn e de seus provedores intermediários, assim como de outros fabricantes da rede de produção global. A subcontratação de mão de obra tem como objetivo transferir os riscos e maximizar os lucros.
Se os trabalhadores da Foxconn, incluídos os estagiários, pudessem organizar sua voz coletiva dentro de um sindicato, acredito que as coisas seriam muito diferentes, porque teriam o poder de exigir o que é realmente importante para eles.
Conte-nos mais sobre como a Foxconn usa os estagiários.
Primeiro, a escala é enorme. Estamos falando em centenas de milhares de estudantes para quem trabalhar para Foxconn faz parte de sua educação secundária. Os governos locais impõem uma porcentagem de estudantes como resposta direta aos planos da empresa. As escolas de formação profissional sob sua jurisdição devem proporcionar o número de estagiários que a Foxconn e outras empresas precisarem.
Estes estágios são uma enorme fonte de mão de obra para a Foxconn. No verão de 2010, a Foxconn tinha 150.000 estagiários, com idades de 16, 17 e 18 anos. Esses jovens recebem menos do que outros trabalhadores para realizarem o mesmo trabalho na linha de montagem. A lei chinesa os considera estudantes, não os reconhece como empregados. A distinção legal é muito importante.
O objetivo da Foxconn é contar com mão de obra flexível, a curto prazo, da qual possa se desfazer facilmente. Por causa de sua condição de estudantes, não são beneficiados com nenhum seguro social, nem atenção médica, nem previdência. Caso se acidentem, ninguém é responsável por eles.
É importante destacar que o futuro daqueles que chamamos “estudantes trabalhadores” é muito incerto. Estão no caminho profissional e, devido à intensa concorrência no mercado educacional, não almejam ir para colégios universitários ou universidades de primeira classe, voltados à pesquisa acadêmica.
Esses estagiários esperam obter habilidades profissionais úteis e uma vantagem competitiva no mercado de trabalho. Mas todos acabam em linhas de montagem, durante seus estágios, que muitas vezes são alongados para satisfazer as necessidades da produção. Caso não trabalhem duro, não se formam a tempo. Neste sentido, o trabalho estudantil é trabalho forçado, uma forma moderna de escravidão.
Quanto tempo os trabalhadores podem suportar o ritmo, a intensidade e a pressão na Foxconn?
Varia. Os trabalhadores e estagiários são criativos. Envolvem-se em diferentes táticas de resistência. Às vezes, simplesmente fingem estar doentes e jogam videogames no dormitório. Mas, é claro, depois de um ou dois dias são descobertos. Em seguida, são devolvidos à linha de montagem. Em outras ocasiões, fabricam deliberadamente produtos com defeitos, o que desacelera o ritmo de produção.
A Apple tenta passar uma imagem de empresa progressista. Até que ponto é cúmplice da situação na China?
O mais “progressista” na Apple é o seu trabalho de relações públicas. É muito boa para criar a imagem que acoberte a realidade de sua cadeia de fornecimento. Em 2017, o CEO da Apple, Tim Cook, em seu discurso para a cerimônia de graduação no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, disse: “A missão da Apple é servir à humanidade. Simples assim: servir à humanidade”. E no Relatório de avanços na responsabilidade dos provedores da Apple é dito: “Há uma forma correta de fabricar produtos. Começa pelos direitos das pessoas que os fabricam”.
Nosso livro é uma exposição de várias centenas de páginas sobre como essa afirmação é mentirosa. A verdade é que a Apple cria condições de trabalho horríveis ao colocar os provedores em enfrentamento entre si. A Apple pressiona a Foxconn, e a Foxconn pressiona os trabalhadores.
Em 2010, em meio à avalanche de suicídios de trabalhadores, a Foxconn foi a montadora final exclusiva do iPhone e uma terceirizada importante para uma ampla gama de produtos eletrônicos da Dell, HP e outras marcas globais. Ficamos sabendo que cerca de 60% do preço de mercado do iPhone 4 foi para os bolsos da Apple. Enquanto isso, os trabalhadores de montagem chineses obtiveram só 1,8% do lucro bruto. Isto nos diz quase tudo o que precisamos saber sobre a desigual divisão global do trabalho.
Mencionou que os trabalhadores da Foxconn precisam de um sindicato. A China tem, em teoria, o maior sindicato do mundo, a Federação Nacional de Sindicatos (FNS) da China. Mas não é um sindicato independente, é controlado pelo Estado e as empresas. Qual é a opinião dos trabalhadores sobre a FNS?
A presidente do sindicato da Foxconn é a assistente especial do CEO, Terry Gou! Como os trabalhadores podem confiar no sindicato da empresa? Os trabalhadores querem reivindicar seus direitos sindicais por meio de eleições abertas e democráticas.
No livro, você escreve que a FNS, na verdade, impede o desenvolvimento de sindicatos independentes.
Correto. A FNS é um aparato estatal. Serve aos objetivos políticos e econômicos do Estado. Não presta contas a seus membros. No melhor dos casos, os funcionários sindicais locais intermediam os conflitos entre a gerência e os trabalhadores, em tempos de crises, para restaurar a ordem e a estabilidade social, deixando intacta a estrutura autoritária da administração.
Como os trabalhadores da Foxconn protestam ou expressam o seu descontentamento?
Na maioria das vezes, ignoram os sindicatos e se organizam de forma independente. Quando a data limite de produção se aproxima, paralisam as linhas de montagem. Detêm o fluxo de produção. Isso é crucial.
A Foxconn é a maior fabricante de produtos eletrônicos do mundo. Tem um sistema de produção estreitamente integrado, razão pela qual quando uma fábrica não está funcionando, os componentes centrais não serão fornecidos para a outra parte da linha de montagem.
Os trabalhadores, às vezes, obtêm algum apoio de estudantes universitários ou grupos de defesa dos direitos trabalhistas, em nível comunitário. Mas estes grupos são muito vulneráveis à repressão estatal. Vimos ondas de repressão governamental, desde o fechamento de organizações de apoio aos trabalhadores até a detenção de ativistas operários e a prisão de manifestantes.
O descontentamento trabalhista mostrou resultados ambivalentes. Por um lado, as autoridades aumentaram a vigilância. Por outro lado, aumentaram os salários e os benefícios para estimular o gasto doméstico.
Durante o nosso trabalho de campo, conversamos com os trabalhadores não apenas sobre a elaboração de estratégias para exigir salários mais altos ou melhores benefícios – embora isso é realmente importante –, mas também sobre suas demandas políticas. Precisam de mais apoio externo em termos de direitos trabalhistas, mas também para melhorar sua educação, moradia e atenção médica, de modo que a vida possa ser melhor a longo prazo.
Diante das recentes medidas enérgicas contra as alianças entre estudantes e trabalhadores, o que os ativistas podem fazer pelos direitos trabalhistas, dentro e fora da China?
Só precisamos ser mais cautelosos. Temos que entender que os custos de organizar e fazer campanhas em grande escala podem ser muito altos. Os principais dirigentes foram humilhados e obrigados a admitir que violaram a lei ao causar distúrbios à ordem pública e colocar em perigo a segurança nacional. O governo ameaçou seus cônjuges ou filhos para os silenciar.
Apesar disso, o bom da China é que os estudantes universitários de esquerda, os ativistas trabalhistas e as organizações comunitárias nunca foram completamente esmagados. Os grupos de estudo online e off-line continuam. Também estão desenvolvendo pesquisas sociais sobre o impacto da covid-19 nos trabalhadores de fábricas e de serviços. Isso é inspirador.
Há espaço para a organização de base e a solidariedade transfronteiriça, e para a responsabilidade empresarial e as campanhas de conscientização dos consumidores em escala internacional.
As empresas multinacionais costumam localizar seus centros de produção em países pobres ou em “desenvolvimento”. Seus trabalhadores não ganham um salário digno e morrem ou se acidentam desnecessariamente, trabalham muitas horas e sacrificam a vida familiar, enquanto os lucros fluem para as empresas.
Os ativistas de todo o mundo devem insistir em regras comerciais mundiais que protejam os direitos dos trabalhadores, e os consumidores devem compreender que as empresas são responsáveis pelas condições em que seus produtos são fabricados.
Seu livro inclui alguns poemas escritos por trabalhadores que são realmente comovedores.
Sua arte é uma forma de ativismo cultural. Os trabalhadores recorrem aos espaços digitais para fazer circular sua poesia, canções e vídeos. Seus poemas são penetrantes.
Há vários poemas muito fortes de Xu Lizhi, de 24 anos. Fracassou em diversas tentativas de encontrar outro trabalho que o retirasse da linha de montagem na Foxconn.
Aqui está um de seus poemas, “Um parafuso caiu no chão”:
“Um parafuso caiu no chão / nesta noite escura de horas extras, / verticalmente, com um leve ruído. / Não chamará a atenção de ninguém. / Assim como a última vez, em uma noite como esta, / quando alguém se lançou no vazio”.
Nove meses após escrever este poema, Xu Lizhi se suicidou.
O absoluto desespero de muitos dos trabalhadores que conhecemos na Foxconn se expressa melhor no que um trabalhador anônimo publicou em um blog: “Morrer é a única forma de testemunhar que alguma vez vivemos. / Talvez para os empregados da Foxconn e empregados como nós, / o uso da morte seja para testemunhar que alguma vez estivemos vivos, / e que, enquanto vivíamos, só tivemos desespero.
Depois disso, não estou em condições de poder dizer algo mais. Deseja fazer uma última reflexão?
Espero que as pessoas leiam o nosso livro. Não só para entender a Apple e a Foxconn, mas para operar uma mudança nestas empresas, para se solidarizar com os trabalhadores da China e de todo o mundo.
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Assim o capitalismo chinês explora. Entrevista com Jenny Chan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU