27 Março 2025
"A evaporação da política que ocorreu nas últimas décadas deixou às suas costas um deserto cultural que assim acaba sendo saturado pela dimensão carismática e hiperativa da nova liderança, que não se baseia em um programa político, mas na promessa nacionalista de restaurar a glória perdida. Esse é o ponto de maior convergência de Trump com Putin", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano, em artigo publicado por la Repubblica, 26-03-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nosso tempo gera monstros que desafiam até mesmo as categorias mais consolidadas da política tradicional. Um dos mais perturbadores é aquele personificado por Donald Trump. Sua liderança antidemocrática não se assemelha àquelas, tristemente já conhecidas, do déspota que impõe a ordem mediante o terror ou do revolucionário impiedoso que elimina todos os seus oponentes em nome da causa. Trata-se, em vez disso, de um híbrido inquietante que une o exercício autoritário do controle com a alergia mais radical às regras institucionais, misturando em um coquetel venenoso a centralização do poder com a retórica neoliberal da mais absoluta desregulamentação. Um híbrido entre o tirano e o anarquista, entre o pregador e o mercador.
Por um lado, essa nova liderança, encarnando o antigo soberano totalitário, pretenderia uma obediência absoluta, a ausência de dissenso. Daí o ataque cotidiano às mídias, a erosão de qualquer cultura institucional, o sonho protecionista, a política sangrenta das tarifas, a guerra comercial, os muros e as deportações. Do outro lado, no entanto, ela se apresenta como a expressão de uma rebelião populista que desafia o “sistema”, revelando a face impotente e melancólica da democracia que encontrou em Biden seu último patético ator.
A evaporação da política que ocorreu nas últimas décadas deixou às suas costas um deserto cultural que assim acaba sendo saturado pela dimensão carismática e hiperativa da nova liderança, que não se baseia em um programa político, mas na promessa nacionalista de restaurar a glória perdida. Esse é o ponto de maior convergência com Putin. Mas Trump, ao contrário do ditador russo, quer encarnar essa promessa não como um homem do aparato, mas apresentando-se como o rebelde que desafia as elites, o outsider que luta contra o sistema, o empresário inescrupuloso que age de forma desinibida e com eficácia enquanto a democracia se contorce em seus pensamentos estéreis. No entanto, sua “anarquia” é apenas uma fachada, já que, aos seus olhos, a única lei que conta é aquela do mercado e do dinheiro, a ganância motriz de um capitalismo predatório que gostaria de se livrar do peso incômodo da democracia.
Daí a deslegitimação de todos os contrapesos institucionais, a demonização da política incapaz e corrupta, a proclamação retórica de “poder para o povo”. A imprensa é desacreditada e reduzida a um repositório de fake news quando exerce seu direito de crítica, os juízes não são confiáveis quando obstruem suas iniciativas, o Congresso é culpado quando autoriza investigações que minam sua credibilidade. O novo líder não pede obediência, mas oferece modelos identificadores anti-ideológicos. A miragem da restauração é uma promessa de redenção que se direciona para as camadas sociais mais afetadas pela crise econômica e, portanto, mais frágeis, que a cultura democrática dramaticamente esqueceu.
É nesse contexto que se encaixa o uso cínico da religião, a instrumentalização de Deus como uma tela publicitária que serve para ocultar seu vazio ético subjacente. “Make America Great Again” não é um programa político, mas um mantra hipnótico que confunde nacionalismo e tele-evangelismo. As insistentes referências a Deus que permeiam sua retórica populista servem não tanto para preservar os valores da tradição, mas para legitimar um poder que - como o poder teológico - gostaria de se emancipar do lastro da democracia. Trump não invoca Deus como o garantidor de uma ordem moral, mas como uma arma contra seus inimigos e como um instrumento de celebração de seu ego megalomaníaco. A Bíblia em suas mãos não é um símbolo de fé, mas, como também foi o caso de italiano Salvini, um artifício propagandístico. O Deus de Trump é um Deus à sua imagem e semelhança. Ele não é aquele que acolhe os últimos e perdoa, mas aquele que recompensa os vencedores e pune os perdedores. É o fundamento teológico de seu neoliberalismo que inverte os princípios evangélicos: uma economia da salvação onde os ricos são os eleitos e os pobres são os pecadores. Sob essa ótica, sua evidente imoralidade individual não é um defeito que o penaliza, mas um fator de sedução para o eleitorado.
Esse é o ponto de proximidade com o berlusconismo.
O Deus de Trump não pede sacrifício, mas oferece a ilusão dos privilégios. É um Deus que não admoesta o poder por seus abusos, mas glorifica o abuso individualista do self-made man, do vencedor que pisoteia os mais fracos.
Sua teologia é invertida, onde o bem coincide com o interesse próprio e o mal com o que o impede. Nesse contexto, o populismo digital se torna seu teatro perfeito. O líder não precisa mais do concreto armado da ideologia, mas da contrafação sistemática da verdade.
No entanto, não é por esse motivo que ele obteve o seu consenso. Pelo contrário, além de evidenciar a fraqueza melancólica de uma cultura democrática incapaz de se renovar e de falar ao povo, ele foi escolhido como presidente dos Estados Unidos exatamente pelo que representa, ou seja, a amplificação do culto da liberdade individual e de seu impulso predatório que não dá a mínima para as leis e os vínculos sociais. Nesse sentido, à sua maneira, ele encarna o sonho americano.
É o núcleo perverso de todo populismo que vê na lei e nas instituições da política apenas uma limitação e um freio injusto à afirmação espontânea da vida, ao direito absoluto que ela tem de cultivar sem limites seu próprio prazer.