21 Março 2025
"O sacramento da penitência é qualificado não apenas e não principalmente pela nova oferta de perdão, que tem em comum com os sacramentos da iniciação, mas pela presença dos “atos do penitente” que dizem respeito ao coração, à boca e ao corpo do pecador perdoado. Esse “trabalho de resposta” é parte constitutiva e qualificante do sacramento", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano, ao comentar o discurso do Papa Francisco na Universidade Católica de Lovaina, Bélgica, 28-09-2024, publicado no blog Come se non, 17-03-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Se o penitente declara que quer adiar a penitência para o outro mundo e sofrer no purgatório todas as penas que lhe são devidas, então o confessor deve impor-lhe uma penitência muito leve para que o sacramento seja inteiro, e especialmente se ele perceber que não aceitaria uma maior” (B. Pascal, Le provinciali, Turim, Einaudi, X, p. 108)
Uma compreensão adequada do “fazer penitência” eclesial não pode perder de vista o tesouro de distinções com as quais os mestres medievais iluminaram a tradição. Certamente, não se trata apenas de preservar aquelas distinções assim como elas se apresentam. Preservá-las significa saber compreendê-las, em seu contexto, e ser capaz de traduzi-las para um novo mundo e uma cultura diferente. Elas ainda têm muito a nos dizer. A ocasião do ressurgimento do tema das “Indulgências”, ligado ao Jubileu de 2025, levanta a questão de redescobrir em que sentido a “pena temporal” - da qual é questão de “remissão” nas indulgências - ainda possa ter sentido na experiência eclesial de “fazer penitência”, no sentido mais amplo do termo. Portanto, não somente em relação ao “sacramento da penitência”, mas, principalmente, em relação à “virtude da penitência”. De fato, indireta mas eficazmente, não se exclui de modo algum que um aprofundamento dedicado ao conceito de “pena temporal” não seja capaz de lançar luz sobre a penitência da Igreja, que a teologia mais clássica (e mais advertida) pede que nunca seja identificada apenas no sacramento, e muito menos em uma leitura redutiva do próprio sacramento.
Para proceder nessa elaboração, que é complexa, gostaria de trabalhar em duas passagens. Na primeira, pretendo expor detalhadamente a doutrina da “pena temporal”, tal como aparece em uma das obras mais importantes de Tomás de Aquino, ou seja, no Scriptum super Sententiis. A partir desse exame, extrairemos alguns elementos para reflexão, mediante os quais podemos tentar interpretar de forma diferente alguns conceitos-chave da prática penitencial e, dentro dela, também a prática das indulgências.
A dupla passagem, de duplo valor da penitência (como virtude e como sacramento) para a centralidade apenas do sacramento para, depois, chegar à redução do sacramento a uma concepção abstrata e geral do ex opere operato, que de fato eliminou todo espaço para a “pena temporal”, tornando-a um elemento extrínseco em relação à dinâmica penitencial, chegando de fato a negar a sua consistência e realidade. O processo penitencial tende a se identificar na repetição de um sacramento reduzido à formal “remissão dos pecados”. Falta-lhe toda a profundidade especificamente penitencial.
Fica apenas a administração do perdão, apenas graça operante, sem graça cooperante. É por isso que a retomada do tema da “pena temporal”, no exame detalhado proposto por Tomás, é quase a via obrigatória para voltar a dar sentido ao fazer penitência na Igreja, bem aquém e além da ocasião jubilar.
O que sempre chama a atenção na apresentação progressiva do Aquinate é a força com que as distinções escolásticas conseguem delinear em detalhes uma experiência de penitência. Preliminar a toda distinção é a grande divisão que opõe, de um lado, pecado mortal e pecado venial e, de outro, a divisão entre pena eterna e pena temporal. Tomás diz, de fato, em Super Sent., lib. 3 d. 19 q. 1 a. 3 qc. 1 co:
[...] poena aeterna dicitur per oppositum ad vitam aeternam; unde poena per quam vita aeterna privantur, dicitur poena aeterna. Homo autem vitam aeternam amittere potest dupliciter: scilicet per peccatum naturae, scilicet originale, cujus poena est carentia visionis divinae, et per peccatum personale actuale, scilicet mortale.
A chamada “pena eterna” é o oposto da vida eterna. Ser privados da vida eterna é “pena eterna”. Tomás então especifica que o homem pode perder a vida eterna de duas maneiras: pelo pecado original, cuja pena é a falta de 'visio divina'; ou pelo pecado atual, ou seja, mortal.
Essa premissa geral não é inútil, porque ela marca a maneira pela qual se fala, por analogia, também da “pena temporal”, sobre a qual lemos em Tomás de Aquino Super Sent., lib. 3 d. 19 q. 1 a. 3 qc. 2 co:
“[…] poena temporalis dicitur per quam privatur aliquod bonum temporale: quia bonum temporale non est natum manere semper. Haec autem temporalis poena in homine est duplex.
Quaedam quae universaliter invenitur in tota humana natura, sicut necessitas moriendi, passibilitas, inobedientia carnis ad spiritum, et hujusmodi: et haec quidem poena naturae humanae debetur ex originali peccato: nihilominus hujusmodi ex principiis naturae consequuntur gratia innocentiae destitutae. Has igitur poenas per suam passionis poenam Christus ab omnibus sufficienter exclusit, quamvis non efficaciter ab omnibus, scilicet illis qui ejus passionis participes non sunt; nec tamen ita quod statim post passionem ab omnibus auferantur, vel ita quod auferantur ab illis qui sacramenta passionis ejus percipiunt, statim post perceptionem sacramenti: sed in fine mundi ab omnibus sanctis simul auferentur: quia istae poenae debentur naturae, in qua omnes sunt unum; unde tunc non solum hominum, sed totius mundi natura reparabitur per resurrectionem: quia et ipsa creatura liberabitur a servitute corruptionis in libertatem gloriae filiorum Dei: Rom. 8, 21. Aliae autem poenae sunt quae aliquibus hominibus specialiter infliguntur; et hae poenae dupliciter ad eos comparantur. Uno modo ut vindicantes culpam, secundum quod culpa facit debitum hujus poenae: et hoc modo Christus omnes istas poenas sua morte quantum ad sufficientiam abstulit, removendo causam. Sed ad hoc quod aliquis his poenis quantum ad efficaciam liberetur, exigitur quod passionis Christi particeps fiat; quod quidem contingit dupliciter.
Primo quidem per sacramentum passionis, scilicet Baptismum, in quo consepelimur Christo in mortem, ut dicitur Rom. 6, in quo divina virtus quae inefficaciam nescit, operatur salutem; et ideo omnis talis poena in Baptismo tollitur. Secundo aliquis fit particeps Christi per realem conformitatem ad ipsum, scilicet inquantum Christo patiente patimur, quod quidem fit per poenitentiam. Et quia haec conformatio fit per nostram operationem, ideo contingit quod est imperfecta, et perfecta. Et quando quidem est perfecta conformatio secundum proportionem ad reatum culpae, tunc poena totaliter tollitur, sive hoc sit in contritione tantum, sive etiam sit in aliis partibus poenitentiae. Quando autem non est perfecta conformatio, tunc adhuc manet obligatio ad aliquam poenam vel hic vel in Purgatorio.
Realmente parece impressionante é a maneira como Tomás entra nos detalhes das distinções para articular da melhor forma as tensões e as oportunidades. A definição de “pena temporal” procede em nome análogo em relação à “pena eterna”. A relação com os “bens temporais” torna-se qualificante para uma definição convincente: uma vez que o bem temporal é qualificado pelo fato de “não ser para sempre”, a pena temporal assume assim um aspecto duplo. Em primeiro lugar, diz respeito à condição natural, marcada pelo pecado original.
Nesse primeiro significado, a pena temporal é constituída pela mortalidade, passividade, incapacidade, fragilidade que aflige todo homem e toda mulher. O remédio para essa pena temporal consiste, para Tomás, na pena da paixão que Cristo viveu e que, como tal, liberta todos aqueles que participam de sua paixão por meio da fé e dos sacramentos. Essa primeira forma de “pena temporal” é, portanto, geral. Há, no entanto, uma segunda forma de pena temporal, que, em vez disso, diz respeito aos indivíduos e é infligida a cada um, por sua vez, de uma maneira dupla. Em primeiro lugar, como consequência da culpa, que pede o débito da pena. Essa primeira forma de receber a pena pode ser superada de duas maneiras: primeiro, no batismo, que nos dá uma participação na morte do Senhor, que tem eficácia contra toda culpa e pena. Em segundo lugar, na penitência, que, para usar a expressão de Tomás, “per realem conformitatem ad ipsum, scilicet inquantum Christo patiente patimur”.
É interessante notar que a diferença entre o sacramento do batismo e o sacramento da penitência é a “conformidade real com Ele, como a paixão do Cristo que sofreu”. Aqui, Tomás acrescenta uma outra anotação muito valiosa. Como a penitência implica que essa conformação a Cristo (haec conformatio) ocorra mediante uma nossa ação (fit per nostram operationem), segue-se que ela é imperfeita ou perfeita (ideo contingit quod est imperfecta, et perfecta). Quando a conformação mediante a ação é perfeita, toda a pena é remida, seja apenas na contrição ou nos outros atos do penitente.
Quando, por outro lado, essa conformação não é perfeita, permanece uma obrigação de pena, a ser cumprida aqui ou no Purgatório. Resta, então, o lado alternativo à compreensão das penas como “vingança”, ou seja, as penas como “remédio” tanto para si mesmo quanto para os outros. Nessa visão diferente, Tomás propõe uma leitura surpreendente: na vida temporal, exposta à tentação, as penas sofrem até mesmo um aumento em relação à paixão de Cristo: “hoc modo per passionem Christi poena temporalis non est neque totaliter ablata, neque diminuta, sed magis augmentata caritate crescente, quantum ad praesentem statum, in quo et peccare possumus, et proficere nobis et aliis”. A pena não é nem totalmente remida nem diminuída, mas sim aumentada pelo crescimento da caridade, o que nos torna mais clara a possibilidade de pecar em relação a nós mesmos e a oportunidade de ajudar a nós mesmos e aos outros.
Disso podemos derivar um modelo de compreensão do tema “pena temporal”, que se desdobra em uma rede de distinções realmente preciosas:
a) pena eterna ou pena temporal;
b) pena temporal como retribuição ou como remédio;
c) retribuição natural geral ou retribuição específica e singular;
d) batismo ou penitência como duas “remissões da pena temporal”;
e) penitência com conformação perfeita ou imperfeita do penitente a Cristo;
f) pena como remédio, em que a relação com o mistério pascal, em vez de diminuir ou cancelar, aumenta a pena com o crescimento da caridade.
Essas distinções são hoje completamente esquecidas, não só porque não fazem parte de uma doutrina comum, mas porque são desprovidas de percepção por parte do penitente. Ninguém não apenas não as conhece, mas nem mesmo as sente. O fato de que se possa pensar o sacramento da penitência sem mais perceber a questão das “penas temporais” constitui uma das provas da “crise do IV sacramento”. O sacramento entrou em crise, mas não por falta de pessoas que o demandam, mas por falta de argumentação que o justifica.
Como é evidente a partir de uma leitura precisa da teoria escolástica a respeito da “pena temporal”, ela nasce da relação com os bens temporais, ou seja, com o que de bom a vida nos oferece e o que, na nossa experiência, pode se transformar em mal. Não por acaso na primeira posição, nos bens temporais, estão a vida terrena, a saúde, a virtude... assim, as penas temporais são, primeiramente, a morte, a doença, a fragilidade, o vício. Essas são penas que não podem ser removidas, mas podem ser lidas com vistas à vida eterna. O verdadeiro problema, para a salvação, são as “penas eternas”, não as temporais. É tão verdadeiro que as indulgências, por sua estrutura, não são obrigatórias, mas facultativas. Ninguém é obrigado a celebrá-las, porque elas incidem sobre aquelas penas temporais que são a consequência de atos de perdão que aguardam uma resposta do sujeito (aquela que Tomás chama de 'operatio') que faz parte do sacramento.
Esse me parece ser o aspecto mais interessante da questão: a saber, que o conceito de pena temporal destaca uma estrutura mais complexa do sacramento da penitência do que normalmente pensamos. Tentarei resumir isso de forma sintética, em uma série de pontos:
1. A palavra “penitência” não indica primariamente um dos sete sacramentos, mas descreve uma condição de conversão criatural, em parte necessária e em parte desejada, e pode ser identificada como:
- paixão
- ação
- virtude
- sacramento.
2. A descoberta desse “background penitencial” do IV Sacramento é decisiva para que se possa compreender sua complexa estrutura. É somente no horizonte de uma vida marcada pelas dinâmicas passivas, ativas e virtuosas da conversão/penitência que o IV Sacramento pode ser entendido em sua verdade.
3. As três dimensões de paixão, ação e virtude fazem parte da vida humana e da experiência batismal. Todo homem e toda mulher vive o limiar entre paixão, ação e virtude (ou seja, padecer um mal, agir bem e ter o hábito do bem) como uma labuta iluminada pelo batismo que se torna Eucaristia.
4 Essa condição “penitencial” acontece integralmente dentro da lógica da iniciação cristã, sem qualquer necessidade de um “outro sacramento” da penitência. Vive-se a penitência como paixão, ação e virtude.
5. A doutrina católica, diferentemente de outras denominações cristãs, considera como real a possibilidade de que o sujeito batizado, que vive a comunhão com Cristo, possa entrar gravemente em crise e, portanto, necessite de um outro “sacramento” que o leve de volta à comunhão com Deus e com a comunidade eclesial.
6. Esse IV sacramento é estruturado de forma diferente dos sacramentos da iniciação cristã. Nele, de fato, não há apenas o dom da graça, mas também a resposta da liberdade. Isso ficou claro pelo menos até o Concílio de Trento, e ainda o decreto sobre a Justificação e o decreto sobre a Penitência oferecem uma leitura clara disso.
7. O que mudou, no entanto, após as afirmações tridentinas, é a extensão à penitência de uma compreensão excessivamente simples e totalmente unilateral da “eficácia” dos sacramentos. Uma teoria distorcida da eficácia “ex opere operato”, indevidamente estendida ao sacramento da penitência, persuadiu grande parte da Igreja (clero e leigos) de que o sacramento da penitência consiste em uma palavra de perdão proferida com eficácia sobre o pecado do batizado. Mas se o IV sacramento for reduzido à palavra de absolvição, ele não será mais compreendido em sua diferença da iniciação cristã. Não é mais um sacramento de cura, mas repetição da iniciação.
8. O sacramento da penitência é qualificado não apenas e não principalmente pela nova oferta de perdão, que tem em comum com os sacramentos da iniciação, mas pela presença dos “atos do penitente” que dizem respeito ao coração, à boca e ao corpo do pecador perdoado. Esse “trabalho de resposta” é parte constitutiva e qualificante do sacramento.
9 O conceito de “pena temporal”, desse ponto de vista, é útil para sair das lógicas imediatas que afligem a penitência na tradição católica. Essa imediatez é uma deriva moderna da tradição, causada indiretamente pela síntese tridentina, que mesmo assim falou corretamente do sacramento como um “batismo laborioso”.
10. Podemos reavaliar o conceito de “pena temporal” pensando nele com uma distinção diferente daquela medieval. Para os medievais, “pena temporal” é uma alternativa à “pena eterna”. Para os pós-modernos, “pena temporal” é uma alternativa à “reconciliação imediata”. Redescobrir que o sacramento da penitência exige um tempo prolongado para a resposta ao perdão assegurado por Deus e que não pode ser reduzido a um ato imediato de remissão (com base em uma interpretação forçada da eficácia ex opere operato) constitui uma oportunidade para compreender melhor a dinâmica penitencial, em sua complexa articulação de paixão, ação, virtude e sacramento.
O conceito de “pena temporal”, tendo o tempo como sua característica específica, dificilmente pode ser movido para além da morte. A ênfase da dimensão temporal, onde não há mais tempo, torna-se um conceito contraditório. A pena temporal, no entanto, ainda tem uma pertinência teológica, porque diz respeito não primariamente ao que não é “pena eterna”, mas ao que não é “salvação imediata”: isto é, a vida histórica dos batizados, na qual à imediatez com que Deus perdoa corresponde a resposta lenta e sofrida de um ser não imediato como o ser humano. A frase citada pelas Provinciais de Pascal, que ressoa ironicamente no início deste artigo, delineia, em meados do século XVII, a linha de recepção do Concílio de Trento que preparou a nossa incompreensão de hoje. Sair daquela visão de “adiamento” da pena temporal fora do tempo significa recuperar a penitência em toda a sua riqueza e complexidade.