Cartas de Irmã Dorothy - 2. Artigo de Felício Pontes Jr.

Arte: Mathias Lengert/IHU

10 Fevereiro 2025

"Irmã Dorothy testemunhou a construção do Reino de Deus. E se entregou por ele", recorda Felício Pontes Jr., em sua segunda carta de memória aos 20 anos do martírio de Irmã Dorothy Stang, que será celebrado no dia 12 de fevereiro de 2025.

martírio da Irmã Dorothy Stang será lembrado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU durante os doze meses de 2025. Em cada mês, Felício Pontes Jr., Procurador da República junto ao Ministério Público Federal, em Belém, e assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam, publicará uma carta em memória à religiosa.

Felício Pontes Jr. era amigo da irmã Dorothy e como procurador segue os seus passos, atuando nas causas defendidas pela missionária. Em entrevista à IHU On-Line, em 2009, ao lembrar do trabalho da missionária, ele a classificou como “o Anjo da Amazônia”. “Tudo que ela tentou estabelecer foi o desenvolvimento integral dos povos da floresta. Isso implica também na relação do homem com a natureza”, disse na ocasião.

Eis o artigo. 

Nos primeiros raios de sol do dia 12 de fevereiro de 2005, Irmã Dorothy recebeu seis tiros à queima-roupa e tombou. Estava em pleno Projeto de Assentamento Sustentável Esperança, no município de Anapu/PA. Caminhava pela estrada de terra entre as exuberantes árvores para o barracão comunitário onde se reuniria com trabalhadores e trabalhadoras rurais. Ainda teve tempo de ler as bem-aventuranças aos dois pistoleiros contratados para o assassinato antes dos disparos. Era uma mulher, idosa de 73 anos, professora, religiosa da Congregação Notre Dame de Namur, nascida americana e naturalizada brasileira.

No velório, não se falava a palavra homicídio, mas sim martírio. Um repórter, intrigado com isso, perguntou a Irmã Júlia (Jo Anne Depweg), “por que não homicídio?”. Ela respondeu, de forma didática, que no martírio a pessoa sabe que pode morrer por aquele motivo, e mesmo assim não desiste dele. Aliás, a palavra martírio significa testemunha. Irmã Dorothy testemunhou a construção do Reino de Deus. E se entregou por ele.

Ela mesma disse isso em suas cartas aos amigos e parentes nos Estados Unidos. Em uma delas, escrita em 2003, era uma resposta à preocupação com as notícias de que estava jurada de morte. Ela respondeu o seguinte:

“Eu aprendi que a sustenta você. E também aprendi que três coisas são difíceis: 1º) enquanto mulher, ser levada a sério na luta pela reforma agrária; 2º) manter a fé em que esses pequenos grupos de trabalhadores e trabalhadoras rurais poderão se organizar e serem protagonistas de suas próprias demandas; e 3º) e ter a coragem de dar a sua própria vida nessa luta.”

Em outra carta, sua entrega é ainda mais explícita. Disse Irmã Dorothy:

“Eu sei que querem me matar, mas eu não vou fugir. Meu lugar é aqui ao lado dessas pessoas que são constantemente humilhadas por pessoas que se consideram poderosas.”

Essa luta se intensificou com a forte migração de famílias, sobretudo nordestinos expulsos de suas terras, e os que souberam do anúncio da construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte. O destino de muitos era Anapu/PA, a pequena cidade à beira da Transamazônica. Sem ter para onde ir, eram levados a uma casinha de madeira, pintada de verde-água, ao lado da igreja de Santa Luzia, onde seriam acolhidos com comida e lugar pra atar as redes.

Naquela casa morava Irmã Dorothy. Ela lhes dizia que o lugar que havia sido destinado pelo INCRA para ocupação ficava a 40km de distância, num travessão quase intransitável da Transamazônica. Muitos aceitaram como tábua de salvação. Seria um assentamento diferente, sem a devastação altíssima naquele tempo.

O assentamento foi batizado com o sugestivo nome de Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança, e se desenvolvia a passos largos. Irmã Dorothy levou sementes de cacau (nativo da região) e promoveu o consórcio com outras espécies: açaí, castanha, banana... Para resumir, ajudou a região a se tornar uma das maiores produtoras de cacau do Brasil. Produziu melhoria econômica não vista em nenhum outro assentamento na Amazônia.

Isso atraiu a ganância da elite econômica da região – grileiros, madeireiros e fazendeiros. Aquele exemplo de projeto de desenvolvimento era pequeno, mas muito “perigoso” aos olhos dessa elite. Se a ideia se espalha, o poder político-econômico mudaria na Amazônia. E, assim, a juraram de morte e... consumaram o ato.

Na homilia da missa de corpo presente, D. Erwin Kräutler, hoje Bispo Emérito do Xingu, confessou que, quando de sua apresentação, em 1982, ela pediu que fosse enviada ao trabalho com os mais pobres entre os pobres. E completou: “Agora Dorothy fala com Jesus do alto da cruz: 'Tudo está consumado' (Jo, 19,30). Sua vida e sua morte são o testemunho inequívoco do amor levado até as últimas consequências. 'Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos (Jo, 15,13). Sim , Dorothy deu sua vida! Deu o testemunho mais eloquente de seu amor: derramou seu sangue.”

Nós perdemos a Irmã Dorothy. A Amazônia ganhou sua Mártir.

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