05 Fevereiro 2025
Para entender o poder do "centrão" e as raízes familiares das oligarquias no Brasil, e como esse poder vem desde o regime colonial e domina as instituições parlamentares e jurídicas até os dias atuais, conversamos com o pesquisador e sociólogo Ricardo Costa de Oliveira, autor do livro Na teia do nepotismo: sociologia política das relações de parentesco e poder político no Paraná e no Brasil.
A entrevista é de Hugo Albuquerque, publicada por Jacobin, 03-02-2025.
Em entrevista à revista Jacobina, o professor Ricardo Costa de Oliveira fala sobre a conjuntura brasileira à luz de sua pesquisa a respeito da genealogia das famílias oligárquicas — e do nepotismo — nas esferas de poder do Brasil. Isso forma um contínuo que vem do período colonial até hoje, atravessando o período imperial, a república velha, a era Vargas e as experiências democráticas, interrompidas pela ditadura militar.
Esse problema chega até nosso momento com o Congresso Nacional e o Judiciário, cada vez mais poderosos, e hoje como o campo de batalha de inúmeras lutas para a classe trabalhadora, embora seja controlado pelas velhas e novas oligarquias. Entender o contexto social e histórico das nossas instituições é um enigma de esfinge, que exige que nós a desvendemos para não sermos, enquanto país, devorados.
Duas grandes pautas estão para ser votadas no Congresso: sobre o pacote de cortes, enviado pelo próprio governo federal, e outra sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para colocar fim à jornada 6×1. Como você a chegada dessas medidas à votação diante do contexto histórico do parlamento brasileiro?
Todos os dados sociais mostram a grande e persistente desigualdade histórica, a grande concentração de renda no Brasil, muito acima dos outros países capitalistas e que pioraram nos governos golpistas de Temer e de Bolsonaro. Existe muito espaço político para as novas lutas sociais e reivindicações na atual conjuntura, as mobilizações contra a cruel jornada de 6X1 surpreenderam muitos setores pelo grande apoio na sociedade civil, tanto em setores modernos com muitos jovens precarizados, muitas mulheres trabalhadoras, bem como nos costumeiros grupos organizados, nos sindicatos e partidos de esquerda, com toda uma boa adesão em novas bases sociais, o que é um bom sinal de lutas por pautas e demandas sociais reprimidas.
A maior parte da sociedade não aceita mais cortes na educação, na saúde, nos benefícios populares, na previdência dos trabalhadores. As pressões políticas pela tributação dos super-ricos, a diminuição de vantagens para grupos empresariais com isenções, créditos e subsídios, a diminuição de privilégios para elites corporativas, como militares e magistrados, burocratas com remunerações acima do teto, devem ser lutas amplas pelas mudanças e revisões nos desastres sociais causados pelas agendas golpistas derrotadas eleitoralmente em 2022, as reformas trabalhista e previdenciária são repudiadas, da mesma maneira a consciência do roubo causado pela privatização de recursos minerais, as tragédias ambientais causadas pela privatização da Vale do Rio Doce, também as privatizações bolsonaristas de refinarias e ativos da Petrobras, com joias suspeitas ainda sendo investigadas, o esbulho do pré-sal, recursos que seriam originalmente destinados à educação, antes do golpe de 2016 e não ao lucro de grupos estrangeiros, há todo um quadro de políticas que devem ser criticadas, revistas e modificadas, porque só pioraram a situação social e econômica do país.
Hoje o neoliberalismo fracassou internacionalmente em todos países e no Brasil também começa a alcançar rejeições, depois de décadas de hegemonia burguesa. As privatizações de setores públicos, como a energia elétrica e várias infraestruturas de serviços públicos, começam a se tornar impopulares pelas constantes falhas, apagões, deficiências e custos elevados, que só beneficiam lucros de poucos interesses, como em São Paulo e no Rio de Janeiro. Penso que começamos a virar a página do neoliberalismo do final do século passado e todo um novo ciclo de lutas sociais e políticas começará com a nova geração, quando constatarem que tudo piorou no neoliberalismo, ao invés de melhorar, começa uma forte crítica de um projeto de nação destinado somente aos mercados privados e rentabilidades excessivas somente para pequenos grupos capitalistas.
As atuais contradições já promovem muitas novas lutas sociais em novas formas e novas mobilizações, as lutas sociais crescerão e terão novos formatos, novos movimentos sociais, dentro e fora do Congresso.
Hugo Motta Wanderley da Nóbrega tem apenas 35 anos e pode se tornou o presidente da Câmara dos Deputados, a terceira pessoa mais poderosa na hierarquia da República, já no ano que vem. Chega a ser surpreendente pela idade dele, salvo pelas origens e sobrenome. O que isso nos diz?
A escolha do presidente da Câmara dos Deputados é a escolha do representante de classe da maioria dos parlamentares, é uma escolha que passa pelos interesses corporativos e pelo tipo de organização e formação familiar de boa parte dos deputados. Uma das maiores bancadas no Congresso é a bancada das famílias políticas e das formas de nepotismo, são as relações entre estruturas de parentesco e poder político da classe dominante.
A maioria dos deputados e senadores pertencem às famílias políticas, temos os dados e estimativas para várias legislaturas e sempre é superior a 70% na Câmara, de modo que a indicação de um deputado hereditário, como Hugo Motta Wanderley da Nóbrega, filho e neto de prefeitos e deputados, de uma família com genealogia política no senhoriato do interior da Paraíba desde o Período Colonial, revela o caráter de classe e o tipo de família política que temos nos poderes do Estado há muito tempo. As famílias políticas dominam o Estado e o poder legislativo: antes o Arthur Lira, o Rodrigo Maia, todos com suas famílias políticas, genealogias e grandes redes de interesse. No Senado o quadro das famílias políticas é ainda maior.
No caso do Nordeste, região de onde eu venho, existe a manutenção duradoura de elites coloniais, numa espécie de transformismo como o que dizia o marxista italiano Antônio Gramsci?
As pesquisas mostram a existência das famílias políticas da classe dominante como um fenômeno nacional, um fato social, genealógico e político observado em todas regiões brasileiras, do Norte ao Sul, do Leste ao Oeste, em novas e antigas localidades, em todos os tipos de municípios, grandes e pequenos.
O nepotismo é a vivência política tanto das elites tradicionais quanto das emergentes no Brasil, pois elas sempre se aliaram e até se casaram entre si, como verificamos nas genealogias e pesquisas empíricas de nomes, sobrenomes das famílias empresariais e políticas. Mais que transformismo é a continuidade e hereditariedade dos poderes da classe dominante na dinâmica da luta de classes. Se o poder legislativo é formado por famílias políticas, principalmente na direita, poucas na esquerda, há um núcleo duro com genealogias que vêm do Império e do Período Colonial, famílias do antigo latifúndio escravista, sempre atualizadas e renovadas na República, continuam mandando e casando com novos imigrantes e emergentes.
Essa perseverança das velhas oligarquias no tempo, adaptando-se ao Brasil Colônia, Império, República e Democracia, passando pela Ditadura Militar coloca qual tipo de desafio ao nosso regime político, pretensamente uma república democrática? Ou somos uma simples oligarquia?
Do ponto de vista sociológico, da formação social dos mais ricos e da elite política, há grandes continuidades familiares. Hoje temos em Brasília uma oligarquia financeirizada, muitos orçamentos são capturados e controlados pelas famílias políticas, as emendas parlamentares, recursos eleitorais e partidários, abastecem redes de poderes locais com parentes e aliados nos municípios, tipo o orçamento secreto, escrevi um artigo para a Revista NEP-UFPR sobre o orçamento secreto como um orçamento do nepotismo de poucas famílias políticas. Todo Estado Burguês apresenta a dimensão oligárquica e plutocrática, estruturalmente dominado por poucos grandes grupos familiares do c…
O sistema judicial, o judiciário e o ministério público também apresentam as mesmas continuidades familiares ?
Sim, o judiciário e o ministério público também são controlados por poucas famílias político-jurídicas, muitas com conexões familiares de longa duração nos poderes executivo e legislativo, o número de ministros do STF e do STJ vindos de famílias político-jurídicas é bastante significativo. Muitos magistrados, promotores, procuradores e desembargadores são de conhecidas famílias da área jurídica e política, com atuação nas representações da OAB e nos grandes e lucrativos escritórios jurídicos das principais capitais. O quinto da magistratura é outra forma de reprodução de familismos. A lógica do poder familiar atravessa todo sistema judicial, desde a peneira social na escolarização jurídica de elite, nas indicações e na formação de magistrados e procuradores, como já demonstramos em vários artigos sobre a Lava Jato, suas conexões políticas e familiares de interesses das elites no Paraná. Da mesma maneira os tribunais de contas são tribunais do nepotismo no mesmo sentido sociológico, são instituições compostas por ministros e conselheiros vinculados às mesmas famílias políticas nos outros poderes e esferas da classe dominante, muitos ex-parlamentares com parentes parlamentares ou nos executivos, as pesquisas genealógicas revelam todas estas antigas e novas redes de poder e de interesses de classe. A justiça é da classe dominante empiricamente pesquisada nos seus privilégios.
Recentemente, faleceu Antônio de Orleans e Bragança, um membro da família que governou o Brasil nos tempos do Império. Esse evento foi noticiado pela imprensa brasileira como a morte de membro da família real, como se ainda tivéssemos uma efetiva. O que quer dizer esse ato falho antirrepublicano?
O Congresso é dominado por centenas de famílias políticas de todos os tipos, uma tipologia mostra das mais antigas, desde o Período Colonial e até mesmo antes nas monarquias absolutas da Europa do Ancien Régime, como o deputado Luiz Philippe de Orléans e Bragança, desta “ex-família real”, parente do que faleceu. Precisamos organizar e atualizar sempre uma base de dados sobre famílias políticas no Brasil, uma forma de um Atlas de famílias políticas por municípios e por regiões, um quem é quem, desde as localidades do poder local, desde alguns herdeiros dos antigos “homens bons” das Ordenanças nas Câmaras, passando pelos cargos estaduais, até os cargos em Brasília, na capital da República.
Com o regime político e social existente no Brasil, os novos na política, os emergentes, tendem a casar com as velhas famílias da classe dominante tradicional do Período Colonial, o que sempre renova as famílias políticas ou permite que o nepotismo das novas famílias políticas criem novas famílias no poder, como as novas famílias Ratinho e Bolsonaro, que defendem a ordem social do passado, ao lado de muitas famílias com séculos de presença no Congresso, como os Andrada, de Minas Gerais e muitas outras famílias políticas com séculos no Estado, encontradas em todas regiões brasileiras.