02 Setembro 2024
"Os pobres, os pequeninhos e pequeninhas, humildes, guerreiros indómitos e pacíficos da Justiça e da Verdade, são os verdadeiros vencedores, à revelia de quem os considera inúteis, massa sobrante e derrotados".
O artigo é de Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em agosto de 2024.
Na atualidade, sem dúvida alguma, as disputas internacionais por hegemonia mudaram o jeito de administrar os conflitos a que estávamos acostumados após o fim da segunda guerra mundial. De fato, por décadas, a disputa mundial pelo poder foi evidentemente conduzida através de intervenções militares. Não faltaram as guerras, mas o confronto era moderado pela estabilidade das regras e da diplomacia. Pensem, como exemplo, como foi tratada diplomaticamente a crise dos misseis em Cuba (1962), um evento que deixou o mundo a um passo do conflito nuclear entre EUA e URSS.
Com certeza, a conjuntura começou a mudar de aspecto com as guerras civis genocidas da ex-Iugoslávia (1991-2001), onde assistimos à incapacidade da comunidade internacional em ‘civilizar’ a guerra sangrenta entre etnias e religiões. Porém, ao menos na fase final, prevaleceu a condenação dos crimes e dos criminosos de guerra.
Hoje em dia, a condenação dos criminosos e dos crimes parece uma proposta ilusória e inviável e assistimos, impotentes e manipulados pela imprensa, à barbárie de Gaza e da Ucrânia, transmitida diariamente, ao vivo, pela mídia internacional. Prevalece a guerra tout court, sem regras, sem a ficção de narrativas racionais, que ‘justificariam’ o uso indiscriminado das armas.
No mesmo tempo, parece-me que a queda do muro de Berlim e do regime soviético contribuiu para o quadro de desgaste e esgotamento ideológico da esquerda internacional, que devia, em grande parte, a sua consistência à polarização ideológica e política da Guerra Fria.
Além disto, em âmbito católico, a Doutrina social da Igreja insiste magisterialmente sobre a necessidade e possibilidade de servir politicamente ao bem comum, apostando no progresso ético e político das sociedades e no devir da história.
Fica, porém, completamente esquecida a dimensão escatológica a ser vivida no “tempo que resta” entre as duas vinda de Jesus, tempo este, que não poderia ser enfrentado como o cenário de um progresso permanente e indefinido. Teríamos um “já e ainda não” reduzido a dimensão cronológica e assim desapareceria o kairós e a espiritualidade do fim do mundo e do juízo universal, que potencialmente se realizam em cada instante do nosso presente.
Estes olhares otimistas sobre as conjunturas dramáticas da história atual chocam-se, perplexos e desarmados, com a brutalidade bélica sem outra ‘razão’ que não seja a firme intenção de destruir o inimigo.
Vale a pena acrescentar, que, apesar da situação atual da Venezuela estar bem distante das guerras europeias e mediterrâneas, temos na Abya Yala os mesmos conflitos e os mesmos atores internacionais daquelas disputas. O temor de catástrofes que poderiam atingir toda a Pátria Grande, não é um exagero paranoico. Até porque isso se dá num contexto de crescimento exponencial das extremas direitas e na correspondente crise de identidade das esquerdas, divididas, num jeito inédito, diante das conjunturas mundiais, em que se misturam leituras campistas, simpatias antiocidentais com a ideologia pan-russa e o islamismo da jihad ou apoio ‘partigiano’ à resistência ucraniana. Em suma, diante da multiplicação dos imperialismos, vinga a ‘compulsão à repetição’ de um único anti-imperialismo datado e obsoleto, porque ignora outros imperialismos concorrentes e igualmente ditatoriais, liberticidas e violentos.
É a partir desta leitura da realidade que recorro ao pensamento e à práxis de Jesus de Nazaré. O que Jesus nos ensina e propõe para a nossa imitação e sequela? Um trecho do Evangelho de João (João 6,1-15), talvez tenha uma inspiração para o discernimento político desta conjuntura da história da Abya Ayala e da Terra.
Temos uma multidão de necessitados e famintos e Jesus, iniciando um processo fraterno de partilha, a partir dos poucos pães e peixes de um menino, faz com que aquela multidão seja povo. Um povo que se constrói pelo seu próprio protagonismo, sem a mediação externa de mediadores autoritários e controladores. Inicialmente aquela massa, que finalmente poderia se reconhecer como um povo livre e dono da sua história, reconhece Jesus como profeta, autor de gestos motivadores e inspiradores, mas, imediatamente, se equivocando – como sempre – quer fazer de Jesus um rei, bondoso e providente. Jesus foge desta armadilha. Foge da tentação de um poder que expropria e domina, comprando a liberdade com a distribuição de pão. Foge da tentação do estado, com o seus palácios, exércitos e templos.
Mais tarde, quando os poderes econômicos, políticos e religiosos decidem de eliminá-lo, porque está ameaçando seriamente a estabilidade do sistema de opressão, dirá a Pilatos: “o meu Reino não é segundo a lógica perversa dos reinados deste mundo” (João 18,36,37).
Com certeza, a postura de Jesus é inequivocamente política, mas não no sentido da construção de uma oposição partidária ao sistema de morte, que visa a conquista do poder e da administração do estado.
A sua proposta é absolutamente nova, inédita, revolucionária, radicalmente alternativa. Central é o anúncio do Reino, que, sem dúvida, é um projeto de transformação fraterna da vida, que requer a práxis dos discípulos e discípulas de Jesus, mas é, sobretudo (e isto nós somos secularmente especializados em ignorar e esquecer) uma semente escondida, mas bem presente na história humana. Reinado, aparentemente insignificante e derrotado, que, porém, antecipa a nossa iniciativa e nos oferece a chance de reconhece-lo presente.
Vou contar uma história para justificar esta perspectiva.
Celebro a Eucaristia numa comunidade da periferia da cidade, quase urbana e caracterizada por um devocionismo tradicional, bem distante da pastoral da libertação, com uma configuração comunitária, que me obriga a identificá-la como ‘de base’, mas que, no mesmo tempo, não corresponde plenamente à nomenclatura das CEBs. Atrás do que é vivenciado no culto, escondida atrás das palavras herdadas do cristianismo colonizador e da cristandade, existe a surpresa de um tecido comunitário vivo e operante. A Igreja, que, quando está na Capela, parece datada e obsoleta é algo que na vida concreta é surpreendentemente excepcional: a comunidade é uma grande família de famílias, que cuidam uns dos outros, nos tempos de dificuldades e acertos, de doenças, de luto, de festa, de memórias. Os jovens, os adolescentes, as crianças aprendem este jeito de viver, sem que existam planejamentos pastorais. O incrível é que eles e elas não sabem da beleza extraordinária do seu jeito de viver a fraternidade. São tão humildes, que não têm tentações autorreferenciais e, na relação com outras formas de religiosidades são compreensivos, mantendo relações respeitosas de convivência e ajuda.
Acredito que é somente a partir de experiências como estas e outras análogas, que podem ser também o testemunho silencioso de santos e santas escondidos no meio do povo, que temos a base para prosseguir na nossa oposição radical ao sistema de morte. Sementes do Reino que está próximo, ao nosso alcance. Acredito também que é necessário fazer memória dos mártires da caminhada, os mártires da terra, homens e mulheres, derrotados, mas indiscutivelmente vencedores em Jesus Messias. Os pobres, os pequeninhos e pequeninhas, humildes, guerreiros indómitos e pacíficos da Justiça e da Verdade, são os verdadeiros vencedores, à revelia de quem os considera inúteis, massa sobrante e derrotados.
A Palavra de Jesus parece-me sugerir que é teologicamente equivocada a escolha de participar da vida política, apostando na vitória e na conquista do estado, porque a política de Jesus nasce das potencialidades do Reino, semente escondida no meio dos pobres, revolução das relações humanas e ambientais, que sustenta o enfrentamento radical dos poderes diabólicos deste mundo.
Em suma, nestes tempos duros e tenebrosos, tem que repensar ao significado político da Cruz e repropor, finalmente, na sua cristalina verdade o "in hoc signo vinces" da traição constantiniana. E enfrentar o Anticristo sabendo que a derrota da Cruz é a única e definitiva vitória.
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A política de Jesus. Artigo de Flávio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU