31 Julho 2024
"Um dos maiores desafios do mundo atual encontra-se justamente na necessidade de se promover uma regulação e uma regulamentação das atividades financeiras e das chamadas 'big techs'"
O artigo é de Paulo Kliass, Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, publicado por Outras Palavras, 30-07-2024.
Cada vez mais, o financismo globalizado tenta tornar-se um ser autônomo da economia real, às custas de crises frequentes. Movimenta valor maior que 26 PIBs dos EUA. E conecta-se ao poder das Big Techs, hoje as maiores empresas do mundo. Como regulá-lo?
Ao longo das últimas décadas temos assistido a um movimento crescente de aprofundamento do processo de internacionalização e de financeirização dos mais diferentes setores da economia. Desde o início do capitalismo observa-se uma tendência histórica a mudanças nas relações entre os antigos ramos, relativamente estanques, do capital industrial e do capital bancário. Naquele período, as funções deste último restringiam-se a ser um provedor recursos ao primeiro, por meio da coleta de valores tomados por quem estivesse interessado em aplicar dinheiro poupado.
No entanto, a evolução do próprio capitalismo levou a um processo de integração destes dois ramos em torno daquilo que passou a ser denominado como capital financeiro. O economista alemão Rudolf Hilferding escreveu ainda em 1910 uma obra que se tornou um clássico a respeito do assunto. Em seu O capital financeiro estão esboçados os traços da tendência à articulação mais integrada entre os interesses dos bancos e das indústrias, caminhando para uma estratégia de quase fusão dos mesmos sob a nova forma de organização do capital.
Passado mais de um século, a mundialização e o aprofundamento da hegemonia da dimensão financeira do capital apontaram para novos desafios da ampliação do espaço de sua acumulação em escala global e para novos modelos de configuração da nova ordem da financeirização. Isso tem significado uma elevação da autonomia da esfera do financismo em relação aos movimentos da chamada economia real. Tal descolamento do capital improdutivo em relação à dinâmica da produção material de bens configura um dos elementos que reforçam a instabilidade estrutural do sistema e contribui para a eclosão mais frequente de crises.
A evolução acelerada mais recente rumo à internacionalização e à financeirização promoveram mudanças importantes na distribuição do volume de capital pelo mundo afora. Além disso, deu-se também um movimento de ampliação do estoque de capital financeiro em particular. O Banco Internacional de Compensações (BIS) deveria operar como uma espécie de “banco central dos bancos centrais”, mas suas atribuições ficaram muito aquém de tais intenções iniciais. Tal restrição se deu por razões ligadas à necessária preservação de autonomia dos países membros na definição de políticas nas áreas monetária, financeira e creditícia. Mas também pela pressão exercida pelos interesses do financismo contra toda e qualquer tentativa de normatização e regulamentação do sistema.
De toda a forma, apesar de tal insuficiência estrutural, o órgão conta com um potente sistema de estatísticas e informações a respeito do universo financeiro mundial. O levantamento do total de aplicações financeiras na modalidade de derivativos reflete um incontrolável volume de recursos que pode circular pelas diferentes praças de operações. Trata-se de inversão em títulos que guardam pouca ou quase nenhuma vinculação com o lado real da economia. São “papéis” (denominação bastante distinta do avanço tecnológico ocorrido no mundo digital) que apontam para uma natureza fortemente especulativa e que não contam com nenhum tipo de resguardo de medidas regulatórias.
De acordo com os boletins estatísticos do BIS, em dezembro de 2023 haveria um estoque total de US$ 667 trilhões aplicados em tais títulos espalhados pelo mundo. Para se ter uma ideia de comparação, o Fundo Monetário Internacional (FMI) estima o valor do PIB global para o mesmo período, em US$ 110 tri. Assim, a economia mundial contaria com uma alavancagem financeira equivalente a seis vezes o valor da base material da economia real do conjunto dos países do planeta. É importante registrar, além disso, que estas estatísticas não contabilizam toda a enorme quantidade de capital que opera no submundo das práticas ilegais, a exemplo do tráfico de armas, drogas e minerais valiosos.
Ao longo das duas últimas décadas teria ocorrido um aumento relativo da participação dos derivativos no PIB mundial. Segundo as mesmas agências multilaterais, as aplicações especulativas foram de US$ 190 tri em 2003, ao passo que a estimativa do produto global aponta para US$ 40 tri. Ou seja, há 20 anos atrás a alavancagem era menor: equivalente a 4,5 vezes.
A existência de tal quantidade de capitais com possibilidade de migração sem controle nem antecipação prudencial coloca o conjunto das economias do globo a descoberto, com elevado risco de exposição. Uma informação também relevante a respeito da volatilidade desse estoque de dinheiro refere-se ao prazo de maturidade dos títulos. Ainda de acordo com o BIS, mais de 75% dos derivativos têm vencimento inferior a um ano. Ou seja, mais de US$ 500 tri podem flutuar pelos mercados financeiros globais em menos de 12 meses. Esta característica reforça o elemento de especulação e eleva a incerteza quanto aos modelos de previsão de comportamento dos detentores de tal tipo de riqueza financeirizada.
Por outro lado, esse movimento de financeirização também provocou o surgimento de grandes grupos empresariais que se especializaram na chamada “gestão de ativos”. Trata-se de conglomerados financeiros que promovem a aplicação de somas espantosas de recursos pelo mundo afora. Ainda que seja, em grande parte, a gestão de recursos de terceiros, as operações desenvolvidas por tais fundos contam com razoável grau de autonomia quanto à tomada de decisões. Os 10 maiores de tal universo são responsáveis por ativos que totalizam US$ 48 tri, ao passo a soma do patrimônio dos 20 maiores atinge US$ 66 tri. Para termos algum padrão de comparação, o PIB dos Estados Unidos é de U$$ 27 tri e o do Brasil atinge US$ 2,3 tri.
Junto com a impressionante ascensão das grandes corporações globais vinculadas à atividade digital e à exploração comercial de dados e conhecimento, esse movimento de financeirização redefine a paisagem das aplicações do capital no mundo contemporâneo. O ranqueamento das maiores empresas internacionais deixou de apresentar os grupos produtores de bens materiais, como ocorria no passado com automóveis, eletroeletrônicos e outros produtos industriais.
Um dos maiores desafios do mundo atual encontra-se justamente na necessidade de se promover uma regulação e uma regulamentação das atividades financeiras e das chamadas “big techs”. Tendo em vista o avançado grau de internacionalização das transações econômicas, toda e qualquer medida deve contar com supervisão dos organismos internacionais e com mecanismos de pressão sobre os Estados nacionais para que os mesmos se comprometam com tais procedimentos prudenciais e de controle.
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Estados nações: A ameaça do capital improdutivo. Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU