29 Mai 2024
Nove dos 16 parlamentares que integram a comissão já defenderam abertamente o garimpo na Amazônia em 15 ocasiões na Câmara. Além disso, 14 dos membros do grupo fazem parte da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), o principal bloco de oposição à pauta indígena no Congresso. Contraponto é representado por Célia Xakriabá, nomeada após questionamentos a Lira sobre a escolha dos nomes.
A reportagem é de Fábio Bispo, publicada por InfoAmazonia, 27-05-2024.
A maioria dos parlamentares nomeados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para integrar a comissão que investigará a crise Yanomami, já discursou na tribuna da Casa contra os direitos indígenas e a favor do garimpo, segundo análise exclusiva feita pela InfoAmazonia. Entre 2019 e 2024, foram identificadas 15 ocasiões em que nove dos 16 deputados escolhidos se manifestaram contra leis de proteção dos povos indígenas ou foram favoráveis ao garimpo em áreas protegidas da Amazônia.
A comissão foi criada em 14 de maio, por ato de Lira, para investigar a crise humanitária gerada após aumento da presença do garimpo ilegal no território. O grupo é coordenado pela deputada Coronel Fernanda (PL-MT) e é formado pelos 16 deputados de cinco partidos (MDB, PL, Republicanos, União e PSOL). Serão realizados trabalhos externos e diligências para subsidiar um relatório com sugestões de encaminhamentos.
São os deputados que integram a comissão:
Abilio Brunini (PL-MT)
Capitão Alberto Neto (PL-AM)
Célia Xakriabá (PSOL-MG)
Coronel Assis (União-MT)
Coronel Chrisóstomo (PL-RO)
Coronel Fernanda (PL-MT)
Cristiane Lopes (União-RO)
Dr. Fernando Máximo (União-RO)
Gabriel Mota (Republicanos-RR)
Gisela Simona (União-MT)
José Medeiros (PL-MT)
Lucio Mosquini (MDB-RO)
Nicoletti (União-RR)
Pastor Diniz (União-RR)
Silvia Cristina (PL-RO)
Sílvia Waiãpi (PL-AP)
Desses, 15 foram favoráveis à lei 14.701/2023, que institui o marco temporal para a demarcação das terras indígenas, que permite também a exploração de recursos naturais e a instalação de projetos de infraestrutura nos territórios sem consultas às comunidades. Além disso, pelo menos 14 fazem parte da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), principal bloco de oposição à pauta indígena no Congresso.
A Hutukara Associação Yanomami (HAY), a Urihi Associação Yanomami (URIHI), a Associação Parawami Yanomami (Parawami) e a Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume), todas da Terra Indígena (TI) Yanomami, se manifestaram contra as indicações de Lira para a comissão e classificaram a atitude como “mais uma ação truculenta da Câmara dos Deputados” para defender “garimpo e a mineração em territórios indígenas”. A nota de repúdio recebeu apoio de 78 organizações.
Desde o ano passado, o presidente Lula (PT) determinou a retirada dos invasores da região, e as forças de segurança estão atuando no local.
O levantamento das declarações foi realizado pela InfoAmazonia por meio da API da Câmara dos Deputados, a partir de uma seleção de palavras relacionadas ao tema, que realizou a busca de discursos arquivados nos Diários da Câmara. (Veja aqui o código utilizado para a pesquisa)
Entre as declarações detectadas, estão as do deputado Nicoletti (União-RR). Ele pediu celeridade, em 6 de junho de 2022, para aprovação do PL 191/2020, que tentava legalizar a mineração e o garimpo em terras indígenas. Na ocasião, ele cobrou a criação de um grupo de trabalho para discutir o tema na Câmara, alegando que a falta da regulamentação da exploração de “ouro, diamante e cassiterita” não rende impostos para o Estado. O parlamentar chegou a afirmar, na tribuna, uma suposta vontade dos indígenas em participar dessa exploração, o que as comunidades locais da TI Yanomami negam:
“A maioria dos povos indígenas querem sim fazer a exploração de recursos hídricos e de diversos minerais, nós precisamos ter esse grupo de trabalho, esse grupo de estudo e colocar a questão em discussão aqui na Câmara dos Deputados”, declarou na época.
Nicoletti é um dos principais defensores do garimpo no Congresso, tendo apresentado diversos projetos de lei para o setor. “Garimpeiro pra mim não é criminoso”, declarou em audiência pública, em 2022, onde voltou a defender mineração em terras indígenas.
Em janeiro de 2023, após intervenção do governo federal para retirada dos invasores do território Yanomami, Nicoletti pediu que os garimpeiros fossem tratados com “respeito e dignidade”. Na semana passada, o deputado postou um vídeo nas redes sociais afirmando que, se for eleito prefeito de Boa Vista, capital de Roraima, implantará programas para ajudar os garimpeiros.
Cristiane Lopes (UNIÃO-RO), também da comissão, diz ser “filha do garimpo”. A deputada defende que é necessário regulamentar a atividade para que os impostos gerados contribuam com o país. “Exijo respeito ao povo do garimpo”, disse em discurso, em fevereiro de 2023.
Na mesma linha, o Pastor Diniz (UNIÃO-RR) disse que a Amazônia tem grandes reservas de nióbio que não podem ser exploradas, atribuindo a isso a ausência de estrutura no Estado, como de rede interligada de energia elétrica. Ele afirmou que as mesmas ordens dadas agora, para acabar com o garimpo na região, foram dadas no governo Collor (1990-1992): “O estado de Roraima, um estado bonito, rico, ainda não pode, por falta de políticas públicas sérias, desfrutar do que possui”.
Gabriel Mota (Republicanos-RR) também se manifestou em junho de 2023 durante as operações recentes do governo federal na região e disse que os garimpos em Roraima são ocupados por venezuelanos, que, segundo ele, “foram para matar a fome”.
“O estado de Roraima já tem nas suas terras, caros amigos, 75% do território demarcado: 47%, terras indígenas; o restante é formado por parque nacional, área de preservação”, manifestou Gabriel Mota no mesmo discurso.
O garimpo ilegal na TI Yanomami é apontado como principal motor da situação de emergência no território. Além da destruição ambiental que provoca, com a contaminação dos rios por causa do uso do mercúrio na separação do ouro, as alterações e soterramentos nas bacias hidrográficas e o desmatamento, a atividade também impôs alterações sociais, muitas vezes violentas, na comunidade Yanomami.
Segundo o governo federal, o garimpo tem a participação do crime organizado, atraindo facções criminosas que praticam lavagem de dinheiro. A atividade avançou especialmente nos anos do governo Bolsonaro: entre 2019 e 2022, a área ocupada pelo garimpo disparou, saindo de 365 hectares para 3.202 (ha), segundo dados da organização MapBiomas.
Após pressão do movimento indígena sobre a composição da comissão para investigar a crise Yanomami, o presidente da Câmara, Arthur Lira, nomeou a deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) para fazer parte do grupo.
“Era contraditório eu ser uma parlamentar indígena e não fazer parte dessa comissão que diz se preocupar com a condição dos Yanomami. Tem que ter os dois lados”, disse Xakriabá. A parlamentar afirma que a composição da comissão tem viés “para criminalizar o povo Yanomami ou quem é que esteja realizando ações lá.”
Xakriabá deve ser uma das únicas vozes dissonantes entre os parlamentares da comissão. Todos os demais deputados se declaram alinhados ao ex-presidente Bolsonaro, exceto Gisela Simona (UNIÃO-MT), que diz ser independente.
Entre eles, estão José Medeiros (PL-MT) e Lúcio Mosquini (MDB-RO), dois defensores do agronegócio. Medeiros criticou ações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) que multaram produtores rurais em terras indígenas no Mato Grosso e disse que os indígenas são “usados” para defender minorias.
Mosquini, que é um dos defensores da lei do marco temporal, presidiu a sessão que aprovou a matéria na Câmara em maio do ano passado. Além disso, recentemente afirmou ter conseguido articular, junto à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a revisão de limites da TI Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, onde a produção de gado é sobreposta aos limites do território.
A reportagem entrou em contato com os deputados Nicoletti, Cristiane Lopes, Pastor Diniz, Gabriel Motta, José Medeiros e Lúcio Mosquini, mas nenhum deles quis se manifestar.
Outro defensor do garimpo, Coronel Chrisóstomo (PL-RO) declarou, no plenário da Câmara em 14 de fevereiro de 2019, que “índio não gosta de terra” e que “é muita terra para pouco índio”. O discurso ocorreu durante votação de projeto que tratava de outro tema, um acordo educacional entre o Brasil e o governo da Federação de São Cristóvão e Névis, país do Caribe.
Já em 2021, na Comissão de Minas e Energia, Chrisóstomo defendeu a mineração em terras indígenas em um requerimento de audiência pública para discutir o PL 191/2020, onde argumenta: “O PL regulamenta atividades que, na prática, já ocorrem na clandestinidade, o que gera inúmeros problemas e conflitos não só para os indígenas, mas para a sociedade como um todo”.
No início de 2023, o deputado tentou capitanear um embarque da direita para a Frente Parlamentar Indígena, afirmando que iria “falar a verdade sobre o que são os povos indígenas”, alegando que a base do governo Lula estaria protegendo “Yanomami venezuelano”. Filho de indígenas da etnia Tukano, Chrisóstomo tem usado a ascendência para reivindicar espaço para falar em nome dos indígenas, mas encontra uma alta rejeição entre organizações indígenas do país.
No Congresso, o deputado é relator do projeto de lei 5.822/2019, que propõe a liberação do garimpo em Unidades de Conservação na Amazônia. Em seu parecer, o deputado afirma que a lavra garimpeira de pequeno porte utiliza “técnicas de baixo impacto ambiental” e defende que seja “realizada pelas populações tradicionais que ocupam essas áreas”, como as comunidades extrativistas.
Contatado pela InfoAmazonia, o deputado Coronel Chrisóstomo não quis se manifestar sobre sua indicação para a comissão.
A deputada Silvia Waiãpi (PL-AP), que foi secretária especial de Saúde Indígena (SESAI) na gestão do ex-presidente Bolsonaro (PL), e que também integra a comissão, usou a tribuna em fevereiro do ano passado para criticar o governo Lula (PT), que havia decretado emergência sanitária na terra Yanomami.
Waiãpi disse que o governo estaria usando “o sofrimento para fazer palco político” e defendeu “exploração sustentável de terras indígenas pelos indígenas”. “Queremos que nossas terras sejam exploradas de forma responsável, respeitando os limites da natureza e das comunidades que nelas vivem”, discursou a deputada em 19 de abril de 2023.
A parlamentar, que também é indígena, do povo Waiãpi do Amapá, agora está incumbida de investigar denúncias que também recaem sobre a própria pasta que atuou entre 2019 e fevereiro de 2020, a SESAI. Durante a sua gestão, houve redução no número de profissionais de saúde na terra Yanomami.
Em novembro do ano passado, o Tribunal de Contas da União (TCU) publicou parecer sobre auditoria na gestão da SESAI e no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y). O órgão identificou diversas irregularidades na aplicação dos recursos destinados à saúde indígena entre 2019 e 2022, incluindo a falta de transparência nos contratos e convênios firmados, além do fechamento de unidades de atendimento de saúde.
O desvio de medicamentos para os indígenas é investigado pelo Ministério Público Federal (MPF). Em uma inspeção, em julho de 2022, o MPF constatou que “a empresa contratada para fornecer o vermífugo albendazol entregou o fármaco em quantitativo bastante inferior ao que constava em nota fiscal” e que o proprietário dessa empresa já “teria participado de outros esquemas fraudulentos de desvios de recursos destinados ao combate à Covid-19 no âmbito da Secretaria Estadual de Saúde de Roraima”.
Apesar de fornecerem os medicamentos em quantidades inferiores às contratadas, os empresários receberam os valores integralmente. O caso segue sob investigação.
Em janeiro de 2023, a reportagem da InfoAmazonia revelou que lotes de medicamentos para tratamento de malária comprados pelo SUS e que deveriam atender os indígenas estavam sendo vendidos nos garimpos, para tratar os garimpeiros que atuam na região.
Silvia Waiãpi deixou a SESAI sob forte protesto do movimento indígena. Na época, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) declarou que a gestão de “envergonha os povos indígenas do Brasil ao se colocar a serviço de interesses escusos de quem quer que seja e de um governo declaradamente anti-indígena”.
Procurada, a deputada Silvia Waiãpi não atendeu aos pedidos de entrevista.
A Coronel Fernanda (PL-MT), que será a coordenadora da comissão que vai investigar a crise Yanomami, tem um longo histórico de disputa com as comunidades indígenas no Mato Grosso, estado que a elegeu para a Câmara.
Sem citar casos específicos, em 8 de agosto do ano passado, a deputada comentou o processo de demarcação da Terra Indígena Kapôt Nhinore, que abriga três povos: Mebengôkre Kayapó, Yudja e a comunidade isolada Capot/Nhinore.
“Não queremos nada que seja de índio, mas queremos ser respeitados. Não podemos permitir que nosso povo produtor seja despejado, como aconteceu em outra região daquela área. Pais de família cometeram suicídio porque não tiveram uma resposta do poder público”, disse a parlamentar durante as breves comunicações na Câmara.
No ano passado, a deputada entrou com um mandado de segurança que pedia a suspensão do processo de demarcação do território. O pedido chegou a ser aceito, mas foi revisto e a proibição para demarcação foi suspensa. A terra em questão é o território onde nasceu uma das maiores lideranças indígenas do país, Raoni Metuktire, e onde os estudos antropológicos apontam uma série de elementos que confirmam a presença e o uso da área pelos indígenas.
A parlamentar apontou, na Comissão Externa sobre a Delimitação da Terra Indígena Kapôt Nhinore da Câmara dos Deputados, na qual também atuou na coordenação, que identificou indícios de irregularidade no procedimento de demarcação da TI Kapôt Nhinore. A deputada pediu uma CPI sobre a demarcação do território.
A terra indígena onde os pais do cacique Raoni estão enterrados, que é oficialmente reivindicada desde pelo menos 1981, está em processo de demarcação. No ano passado, o perímetro do território foi delimitado. Os próximos passos agora incluem a publicação da declaração da terra pelo Ministério da Justiça e a homologação pela Presidência.
Procurada pela reportagem, a Coronel Fernanda não quis se manifestar.
A recém-criada comissão externa para investigar a crise Yanomami já é a terceira criada para este fim. Em 2022 e 2023, foram constituídas duas comissões especiais no Congresso Nacional para acompanhar a situação na TI Yanomami. Elas concluíram que o descaso e omissão intencional do Estado brasileiro, principalmente durante o governo Bolsonaro, contribuíram para o aumento do garimpo.
Um estudo recente da Fiocruz com indígenas do subgrupo Ninam, na TI Yanomami, mostrou que todos os participantes da pesquisa estão contaminados por mercúrio. Os maiores níveis de exposição foram detectados em indígenas que vivem nas aldeias localizadas mais próximas aos garimpos ilegais de ouro.
Segundo a Organização das Nações Unidas, os garimpos são, atualmente, os maiores responsáveis pela poluição do meio ambiente por mercúrio em todo o mundo desde a assinatura da Convenção de Minamata, em outubro de 2013, quando mais de 140 nações se comprometeram a reduzir o uso de mercúrio. Em 2022, o relator especial sobre tóxicos e direitos humanos da ONU, Marcos Orellana, pediu o fim do uso do mercúrio nos garimpos.
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Maioria dos deputados nomeados para comissão que investiga crise Yanomami já discursou a favor do garimpo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU