16 Mai 2024
A inteligência artificial é “apática”, sem pathos, sem paixão. Talvez possa “apagar”, mas não “perdoar”. É um lugar de eficiência (talvez), mas não de liberdade: a menos que cultivemos aquela inteligência viva, aquela inteligência do coração (isto é, integral) que só o humano recebeu como dom.
A opinião é da socióloga italiana Chiara Giaccardi, professora da Universidade Católica de Milão. O artigo foi publicado por Avvenire, 12-05-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais deste ano já tem um título programático em si mesmo: “Inteligência artificial e sabedoria do coração: para uma comunicação plenamente humana”. Sempre corremos o risco – e McLuhan já tinha reconhecido isto ao evocar o mito de Narciso – de nos deixarmos seduzir pela nossa própria imagem cristalizada nas tecnologias, esquecendo o nosso papel e a nossa responsabilidade.
Mas hoje, mais do que nunca, os riscos são múltiplos e ameaçadores. Ao mesmo tempo, existem metáforas enganosas, que nos orientam para más interpretações. Antigamente, fala-se dos “cérebros eletrônicos”, para indicar os computadores, e essa antropomorfização dos dispositivos, depois, reverteu-se na mecanização das faculdades humanas: o cérebro como máquina que processa informações, um reducionismo que mortifica a complexidade da mente.
“Inteligência artificial” também é uma expressão escorregadia, porque a analogia corre o risco de exaltar as máquinas, diminuir a ideia de inteligência ao reduzi-la a uma atividade de cálculo (que transforma tudo em “dado”, em que aquilo que não pode ser contado não importa) e de interiorizar as capacidades humanas: se a inteligência é cálculo, as máquinas certamente são superiores aos humanos!
Talvez não possamos abandonar a metáfora, mas devemos estar conscientes do seu limite e das consequências negativas que derivam do fato de não captar isso. Kate Crawford, cofundadora do AI Now Institute, da NY University, escreveu “Né intelligente né digitale” [Nem inteligente nem digital] (Edizioni Il Mulino) para alertar contra todos os discursos que funcionam como um véu para a compreensão das dinâmicas reais em curso: por exemplo, a indústria da IA é uma verdadeira “indústria extrativa”, que depaupera os recursos da terra, explora o trabalho mal remunerado, contribui de modo relevante para a produção de dióxido de carbono, sem falar que os data centers estão entre os maiores consumidores de eletricidade do mundo.
Não só isso: seu desenvolvimento não é neutro. O que é otimizado, para quem, quem decide são questões que atendem a interesses muito específicos. Os algoritmos nunca são neutros, como o Papa Francisco também afirma na mensagem deste ano, e essa é uma primeira advertência.
Como Jonathan Crary argumentou em sua análise do capitalismo digital [“Terra arrasada”, Ubu Editora, 2023], o funcionamento dos algoritmos baseado na extração e na gestão de dados alimenta e explora o mecanismo de estímulo-resposta para acelerar o fluxo de consumo e comprimir o tempo de reflexão, estimulando uma reação imediata à multiplicidade de estímulos.
Reagir já se tornou a forma comum de ação, com os efeitos desumanizantes que daí derivam, e com o estreitamento cada vez mais preocupante das nossas margens de liberdade – que consiste não em reagir, mas em agir de outra forma.
E, para fazer isso, é preciso ter tempo para pensar! “Quando uma informação expulsa a outra, não temos mais tempo para a verdade”, escreve o filósofo coreano Byung-chul Han.
Não podemos e não devemos demonizar as mudanças, já nos recordava Guardini em suas “Cartas do Lago de Como”: o nosso lugar é no devir. Habitamos a possibilidade, diria Emily Dickinson. Mas, para não sermos esmagados ou seduzidos por ela, e para não nos tornarmos “idiotas tecnológicos”, como escrevia McLuhan, talvez muito hábeis na utilização, mas incapazes de captar o sentido daquilo que fazemos, a consciência é fundamental.
Porque, se deixarmos que os algoritmos decidam por nós, se nos resignarmos ao “dataísmo” que transforma o pensamento em cálculo, o resultado só poderá ser um empobrecimento do nosso conhecimento, uma perda de humanidade e também de liberdade.
Entretanto, é preciso darmo-nos conta da natureza “farmacológica” do novo ambiente técnico. Platão nos ensinou que toda técnica (começando pela escrita, que traduz o pensamento da forma temporal para a espacial) é um pharmakon, ou seja, ao mesmo tempo um veneno e um remédio.
A nossa tentação é sempre oscilar entre o entusiasmo acrítico e a lógica do bode expiatório, enquanto o Papa Francisco nos lembra uma ambivalência inevitável, que só podemos tentar habitar humanamente. Esforçando-nos para conter a dimensão tóxica dos novos ambientes digitais e para potencializar a dimensão curativa no que diz respeito às fraturas do nosso tempo.
E qual é o caminho? O Papa Francisco nos mostra o caminho do coração.
As raízes etimológicas abrem-nos um horizonte de significado precioso: não só “vibrar” (o coração é o centro pulsante da vida!), mas também “domar”, isto é, transformar a experiência em “sabedoria” em vez de nos deixarmos sobrecarregar pelos acontecimentos.
A inteligência do coração é aquela que se desenvolve na concretude do encontro, do envolvimento, da solicitude, do cuidado. É aquela ideia do todo que dá sentido às partes e que nos faz nos sentirmos parte: de uma história, de um mundo comum, de uma fraternidade sempre em risco de fratricídio. Que nos permite nos afeiçoar pela realidade e, desse modo, nos permite ver aquilo que os dados não revelam. “Tudo o que sei, sei porque amo”, escrevia Tolstói.
O amor é o início do pensamento. Platão defendia que a mente não se abre a menos que antes o coração tenha se aberto. Essa é a especificidade do humano, que tem a ver não tanto com o fato de sermos bons, mas sim, acima de tudo, com o fato de sermos sábios. Com o saber-sentir, padecer e compadecer (a compaixão, o padecer-com, também é um caminho de conhecimento, lembra-nos o papa). Com o saber-perdoar, ou seja, libertar o futuro, sem anulá-lo, do peso de um passado que prende àquilo que já aconteceu.
A inteligência artificial é “apática”, sem pathos, sem paixão. Talvez possa “apagar”, mas não “perdoar”. É um lugar de eficiência (talvez), mas não de liberdade: a menos que cultivemos aquela inteligência viva, aquela inteligência do coração (isto é, integral) que só o humano recebeu como dom.
Sem esquecer a advertência de Bergson: “Há coisas que só a inteligência é capaz de procurar, mas que, por si só, nunca encontrará”.
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Algoritmos e inteligência do coração, as especificidades do ser humano. Artigo de Chiara Giaccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU