09 Mai 2024
Ghassan Abu Sittah é médico cirurgião, britânico-palestino, e reitor da Universidade de Glasgow. Liderou missões médicas na Palestina desde a Primeira Intifada e operou em vários teatros de guerra, Síria, Iêmen, Iraque e Líbano. Depois de meses passados trabalhando como voluntário nos hospitais de Gaza, desde sábado é persona non grata na Europa: uma proibição de um ano em toda a área Schengen.
A entrevista é de Chiara Cruciati, publicada por Il Manifesto, 07-05-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Refugiado, nascido na diáspora. Sua família foi expulsa da sua aldeia na Palestina durante a Nakba pela unidade paramilitar Haganah e se refugiou em Khan Younis, em Gaza. Enquanto conversamos, 100 mil palestinos em Rafah receberam uma ordem de evacuação do exército. Estamos assistindo a uma nova Nakba?
O que estamos assistindo é um genocídio que os países europeus e os Estados Unidos protegem há sete meses para que possa continuar. O que estamos assistindo é o fato dos governos europeus e a UE terem passado sete meses impedindo que o genocídio seja interrompido e aumentando em dez vezes o envio de armas a Israel para que não fique sem munições enquanto mata. Rafah é mais um capítulo desse genocídio, embora os próprios analistas militares israelenses digam que não haverá nenhum benefício bélico, exceto um massacre. Quando falamos que o genocídio é um objetivo de guerra, queremos dizer isto: Rafah é outro exemplo de que o objetivo militar é o assassinato de palestinos.
Desde a Primeira Intifada você levou a sua experiência médica para a Palestina. Fez isso durante todas as ofensivas militares dos últimos vinte anos. Que diferença viu nas práticas militares israelenses do passado e do presente?
É a diferença que existe entre uma inundação e um tsunami. A ofensiva de hoje é diferente em escala, dimensão e intensidade de qualquer outra guerra na história: a diferença está na destruição sistemática do sistema de saúde como parte integrante da estratégia militar. Não tinha sido visto em nenhuma guerra. Já vi muitas e nunca testemunhei à destruição da assistência sanitária como diretriz de todo o projeto. Porque o objetivo é tornar Gaza inabitável.
Em que foram transformados os hospitais? Penso sobretudo no Shifa, o pilar da sociedade palestina e arquivo vivo do drama de Gaza.
Vimos isso em 17 de outubro, quando atacaram o Al-Ahli. Depois destruíram todos os outros hospitais. Transformaram o Shifa em uma vala comum e fizeram o mesmo com o Nasser de Khan Younis. Mataram na prisão o Dr. Adnan Bursh, chefe da cirurgia ortopédica no Shifa.
A destruição do sistema de saúde não passa apenas pela destruição dos prédios, mas também pelo assassinato de mais de 400 médicos, enfermeiros e paramédicos e o encarceramento de centenas deles.
Passa pela sua eliminação nas prisões israelenses. O Shifa, especificamente, é a maior instituição de toda Gaza. É a maior estrutura, o maior empregador. Quando você está em Gaza e se perde, se pedir informações, respondem usando o Shifa como ponto de referência. Representa 30% de todo o sistema de saúde. Foi construído pelos britânicos durante o Mandato, depois foi ampliado pelos egípcios, pela Autoridade Palestina na época de Arafat e depois pelo Hamas. É a instituição mais antiga. Por isso os israelenses fizeram dele uma vala comum.
O Tribunal Internacional de Justiça alertou para o risco plausível de genocídio. A montante está a devastação de toda forma de subsistência e de vida: o sistema alimentar, o setor produtivo, a saúde, as redes elétricas e hídricas, mas também do sistema educacional. Você fala bastante sobre a importância da educação na formação das gerações palestinas, que estão entre os níveis mais altos de formação escolar e universitária, tanto na Palestina como na diáspora. Por que é tão importante?
Para os palestinos, e em particular para a geração do meu pai, aquela que sobreviveu à Nakba, a educação representa a única coisa que ninguém pode tirar de você. Quando a geração do meu pai perdeu tudo, sua rede social, as casas, o status social e se viu refugiada na que antes era uma verdadeira morte social, a educação foi central, ninguém podia tirá-la. E para todas as sucessivas gerações palestinas, a educação foi a área em que se investir. É por isso que, por garantir que os palestinos não tenham o sentido do futuro, que o exército israelense destruiu todas as 12 universidades de Gaza e matou cerca de uma centena de professores e reitores.
No mês passado, você deveria ter participado de uma iniciativa pública na Alemanha para falar do seu trabalho em Gaza. Mas foi detido no aeroporto e deportado. E agora pesa sobre sua cabeça uma proibição de um ano que lhe impediu entrar na França. O que aconteceu?
Quando fui detido na Alemanha, disseram-me, oralmente, que a proibição duraria apenas o mês de abril e apenas para território alemão porque o objetivo era me impedir de participar daquela conferência. Por isso, quando fui convidado para falar no Senado francês, nunca me passou pela cabeça que seria barrado no aeroporto Charles de Gaulle. Fiquei chocado ao ouvir o funcionário do departamento de passaportes dizer-me que a Alemanha tinha imposto uma proibição de entrada em toda a área Schengen até abril de 2025.
Em muitos países europeus, o dissenso é cada vez mais criminalizado, ao ponto de chegar a perigosos extremos de repressão.
Qual é o clima na Grã-Bretanha e na Europa?
Se na Europa são os Estados que praticam a criminalização, na Grã-Bretanha é o aparato de direita que o faz: os jornais de Rupert Mardoch, as organizações pró-Israel e assim por diante. No meu caso, e é a opinião dos meus advogados, a razão pela qual a Alemanha me baniu de toda a Europa é para me impedir de voltar ao Tribunal Penal Internacional de Haia. O procurador Karim Khan, na semana passada, queixou-se da pressão que os governos europeus exercem sobre o Tribunal para não emitir mandados de prisão contra Netanyahu, Gallant e Halevi. Acho que no meu caso o objetivo seja me impedir de chegar à Holanda. Eu já testemunhei, mas me convocarão novamente quando o caso se tornar um processo.
Num artigo recente na Progressive International Wire, você escreve: “Gaza é o laboratório para o qual o capital global olha para a gestão das populações em excesso. (…) As armas que Benyamin Netanyahu usa hoje são as armas que Narendra Modi usará amanhã”.
A indústria militar israelense já está fazendo publicidade dos produtos utilizados no campo. Existe uma famigerada declaração de um dos CEOs de uma empresa israelense em que diz morar a apenas dez minutos do laboratório. O laboratório é Gaza. Israel está na vanguarda não apenas dos robôs assassinos e do software de reconhecimento facial, mas também dos quadricópteros. São os drones usados em Gaza, pequenos e com rifle de precisão, foram usados contra os hospitais. Quando eu estava no Al-Ahli, em apenas um dia recebemos 30 feridos de quadricópteros, que voavam ao redor do hospital e atiravam em qualquer um que tentasse entrar. Essas tecnologias e essa filosofia são usadas contra a população politicamente em excesso, os palestinos de Gaza, mas não só. São as favelas de Mumbai ou de Nairobi e São Paulo ou os refugiados que atravessam o Mediterrâneo. Ou a população de Caxemira, onde a polícia indiana usa cada vez mais as técnicas israelenses. Já houve um aumento nas encomendas de armas israelenses usadas nesta guerra, disse o Ministério da Economia de Israel. Nos próximos anos veremos quadricópteros em outros lugares do mundo para “gerir” a população em excesso, os socialmente indesejados.
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“Nenhum benefício militar em Rafah, o objetivo é o massacre”. Entrevista com Ghassan Abu Sittah - Instituto Humanitas Unisinos - IHU