26 Janeiro 2024
"Se pode divisar um forte sinal de esperança na vitória da tese de que os direitos indígenas, originários, pré-estatais, não podem sofrer restrições ou reduções ainda que legais", escreve José Geraldo de Sousa Junior, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB, professor e ex-reitor da mesma instituição, em artigo publicado por Jornal Brasil Popular, 24-01-2024.
O ano começa com esse tema interpelante e desafiador para contextualizar a disputa em curso no País, envolvendo os Poderes, sobre como realizar a Constituição. A questão da demarcação das terras indígenas e de seus direitos ancestrais, originários, pré-colombianos e pré-cabralinos, portanto anteriores ao direito estatal, positivo e legal, se faz politicamente crítica nesse cabo de guerra.
Já agora em janeiro, num bem posto artigo – Os Povos Indígenas e o Marco Temporal, o advogado e professor Melillo Dinis do Nascimento, afirma categoricamente que, “para os povos indígenas, para a maioria dos especialistas, para parte dos constitucionalistas, a tese do ‘marco temporal’ é um absurdo”.
Ele lembra que “há uma proteção constitucional a estas terras tradicionais, anteriores e posteriores à promulgação da Constituição (outubro de 1988 – a data da alegada hipótese de um marco no tempo), tudo na forma do seu artigo 231. Essa foi a conclusão do STF, em tese fixada em 13 pontos consensuais no referido julgamento, válida para todos”.
Todavia, o “Congresso Nacional, por grande parte dos parlamentares, sequer esperou a decisão do STF assentar-se. Quase que de forma imediata aprovaram a Lei nº 14.701/2023, ressuscitando o “marco temporal”, dentre outras normas com relação às terras indígenas. Após o rito de submissão ao Poder Executivo, para sua aprovação, retornou ao Legislativo com um veto parcial (nº 30/2023) do Presidente Lula. Ainda em dezembro do ano passado, os Senadores e Deputados devolveram à lei o trecho que batizou a proposta, ao definir que as “terras indígenas tradicionalmente ocupadas” são aquelas “habitadas e utilizadas” pelos indígenas para suas atividades na data da promulgação da Constituição, sob o argumento frágil de não permitir a insegurança jurídica”. Uma legalização da grilagem e uma rendição à violência do agrobanditismo.
Melillo argumenta com a pertinência, além de advogado e professor, de ser assessor jurídico com incidência política da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil) e membro da Comissão de Análise de Conjuntura da CNBB.
Meu colega há mais de 30 anos, desde os bancos acadêmicos na Faculdade de Direito da UnB, os pressupostos filosóficos e teológico-sociológicos de Melillo, guardam pertinência com o agir humano, de que fala o padre Henrique Claúdio de Lima Vaz, SJ, no texto com que brindou, aos organizadores e aos participantes do Seminário Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário[1].
Esse o tema de um artigo que ofereci ao livro A constituição da democracia em seus 35 anos[2], exatamente para marcar a continuidade estruturante da Constituição movida por essas injunções democraticamente legítimas.
No meu artigo, no livro, refiro-me a essas interpretações realizadoras construtivas, que expandem o alcance da promessa constitucional em sua disposição de realizar direitos e ter cumpridas as suas promessas. Certamente para a compreensão dessa possibilidade é indispensável abrir-se a exigências próprias da disputa narrativa de realização da Constituição e de categorias que dêem conta de aferir as aberturas que a política proporcione para projetar as disposições constitucionais para o futuro.
E aprofundo esse entendimento, no sentido preciso de compreender a decisão do Ministro Fachin um dos coordenadores da obra, para repensar a dimensão política da função judicial e reconhecer que “são os sujeitos coletivos que conferem sentido à soberania popular”, e que, afirmam uma ‘participação política da comunidade [indígena]’ expressão dessa subjetividade coletiva que se faz titular de direitos em perspectiva inter-sistêmica, juridicamente plural”, conforme seu voto no TSE (segundo semestre de 2022), por ocasião do julgamento do Recurso Especial Eleitoral (Processo Número: 0600136-96.2020.6.17.0055 – Pesqueira – Pernambuco).
Considero que a hermenêutica encaminhada pelo ministro Fachin, completa um entendimento, agora valendo-se de consideração sobre, diz ele “a dimensão política da função judicial, apontada por Antônio Escrivão Filho e José Geraldo de Sousa Junior[3]” para, não só afastar “o mito de neutralidade e buscando processos de democratização da justiça a partir, inclusive, da sua reorientação aproximada da realidade brasileira”, mas para afirmar, nesse passo, que são os sujeitos coletivos que conferem sentido à soberania popular”, e que, afirmam uma “participação política da comunidade [indígena]” expressão dessa subjetividade coletiva que se faz titular de direitos em perspectiva inter-sistêmica, juridicamente plural.
Direitos são promessas, mas não podem se tornar promessas vazias, e o apelo democrático do artigo 5o leva a essa consciência, ou seja, a de que é a cidadania protagonista, ativa, insurgente, achada na rua, o núcleo de uma subjetividade coletiva (sujeitos coletivos de direito), em movimento (movimentos sociais emancipatórios), a razão legitimadora do processo político e realizadora contínua do processo de afirmação de direitos já conquistados e de criação de novos direitos. E essa compreensão ficou ainda mais nítida, na relatoria do Ministro Fachin, acolhida com apenas duas defecções, no julgamento concluído no Supremo Tribunal Federal. Conforme consta da página oficial do STF, que traz um bom resumo dos elementos da decisão[4]: “O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou, nesta quinta-feira (21), a tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Por 9 votos a 2, o Plenário decidiu que a data da promulgação da Constituição Federal (5/10/1988) não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional da terra por essas comunidades. A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral (Tema 1.031).
Por isso Melillo sustenta em seu artigo que a nova Lei editada voluntaristicamente no Congresso, “viola a Constituição, pois uma Lei não pode modificar o texto constitucional, muito menos dar interpretação a uma decisão do STF, exatamente pelo fato de que o sistema jurídico brasileiro não permite. No final de dezembro de 2023, a lei foi publicada. E em janeiro de 2024, a batalha jurídica recomeçou. Até o momento, há um conjunto de ações que pedem ao STF o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei”.
Assim que, muitos de nós, eu próprio, em minha coluna O Direito Achado na Rua publicada no Jornal Brasil Popular, somei com essa posição. No meu argumento, escrevi (aqui), “Quem luta por superar as desigualdades profundas do experimento capitalista-colonial, e a exigência política para vencer o abismo que esse experimento cria na forma de exclusão e de opressão, não deve ter dúvida do lado a tomar. O Presidente Lula, em fidelidade a seu discurso e da prática que ele traduz, não deve ter dúvida de seu lado político na História, para conduzir sua promessa de uma governança que enfrente a miséria, a pobreza e a fome e não se renda às injunções que afrontam a Constituição para criar obstáculos à reforma agrária e querer subtrair dos povos indígenas originários seu direito próprio e o reconhecimento desse direito a seus territórios e a seu modo de existir e de preservar seus usos e tradições sociais e culturais. O Presidente não deve ter dúvida e, se tiver, deve ficar ao lado dos pobres e dos povos indígenas. Deve vetar esse projeto emulativo de cizânia no plano institucional e extremamente perverso no plano político, em tudo antagônico ao conteúdo ético de sua proposta programática”.
Agora, para apoiar e preservar o entendimento do STF há muita matéria organizada que sufraga a boa tese firmada pelo Tribunal. Veja-se, a propósito, a riqueza de material reunido no livro Povos Indígenas no Brasil 2017/2022[5].
Sobre essa obra afirmei que se pode divisar um forte sinal de esperança na vitória da tese de que os direitos indígenas, originários, pré-estatais, não podem sofrer restrições ou reduções ainda que legais. Conforme matéria publicada na página do Àwúre, (um projeto conjunto do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) [6]).
Precisamos conferir muito apoio à iniciativa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o PSOL e a Rede ingressaram com a ADI nº 7582. O PV, PT e PCdoB entraram com a ADI nº 7583 e o PDT ingressou com ação semelhante (ADI nº 7586), na qual afirma que a lei impõe graves limitações ao exercício dos direitos fundamentais dos povos originários, sem o amparo de qualquer norma constitucional. Em contrapartida, PP, Republicanos e PL solicitaram ao STF a validação da mesma lei por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 87, ações que foram distribuídas ao ministro Gilmar Mendes.
[1] cf. VAZ, Pe. Henrique C. de Lima. Ética e Justiça: Filosofia do Agir Humano. In PINHEIRO, Pe. José Ernanne; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de; DINIS, Melillo; SAMPAIO, Plínio de Arruda (orgs). Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a Reforma do Judiciário. Petrópolis: Editora Vozes, 1996.
[2] (Orgs) Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Belo Horizonte: Fórum, 2023.
[3] Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2016
[4] Ver aqui.
[5] RICARDO, FanyPantaleoni (Ed.), KLEIN, Tatiane (Ed.); SANTOS, Tiago Moreira dos (Ed.). São Paulo: Editora: Instituto Socioambiental, 2023 (Ver aqui).
[6] Ver aqui.
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Na Constituição brasileira não existe um “marco temporal” para a demarcação das terras indígenas. Artigo de José Geraldo de Sousa Junior - Instituto Humanitas Unisinos - IHU