18 Julho 2023
"Big Data já impacta a condição humana. Avança sobre cérebros e corpos, para vigiar e modelá-los. Gera seres infotecnológicos; reduz experiência a dados; e subjetividade, a avatar. Só imaginação política poderá confrontar a Megamáquina", escreve Christian Ferrer, em artigo publicado por Revista Anfibia e reproduzido por Outras Palavras, 13-07-2023. A tradução é de Maurício Ayer.
Ferrer é sociólogo e ensaísta, ensina filosofia da tecnologia e pensamento contemporâneo na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires.
Daqui a algumas décadas, poucas pessoas, pelo menos nas grandes megacidades, lembrarão como era o cotidiano antes do surgimento e disseminação da Internet – esse grande cérebro interconectado –; e como era a arte de conversar antes da disseminação das redes e outras plataformas de ligação a serem inventadas em breve; e como era compartilhar o mundo com espécies animais e vegetais que agora sucumbem em nome e benefício do desenvolvimento industrial e da expansão das fronteiras agrícolas; e como acontecia a transmissão de bens e tradições antes do estabelecimento massivo da cultura digital. Paisagens inteiras desaparecerão da memória.
A biografia do corpo humano, tecnicamente potencializado, será escrita com outras chaves de interpretação. Os arquétipos e práticas de compreensão e modelagem de nós mesmos serão orientados de acordo com as instruções da representação teatral, e não de uma intimidade cuidadosa e constantemente cultivada. Terá começado – já começou – a era que Flávia Costa chama de “Tecnoceno”.
Não é fácil analisar e descrever a proeminência e o devir das transformações que nos são contemporâneas, porque, embora as consequências sejam duradouras, o processo acaba de entrar em quarto crescente e ainda não desvelou todas as suas potencialidades. Não podemos saber como o mundo funcionará daqui a 50 anos – quem está na infância hoje o saberá –, da mesma forma que os contemporâneos da Revolução Industrial não imaginaram os custos que a natureza e os trabalhadores teriam de pagar no futuro, por causa da poderosa e deslumbrante novidade. Depois, porque a peculiaridade desse processo é a velocidade das mudanças e dos acoplamentos entre indústrias tecnológicas “avançadas”. E mais, porque a face oculta da mutação – de enorme magnitude – não se revela, ao contrário, se esconde da compreensão de quem a está vivenciando em sua própria vida. Nesse contexto, o livro de Flávia Costa é um triunfo. Tecnoceno: Algoritmos, biohackers y nuevas formas de vida (ed. Taurus), conseguiu reunir, com uma escrita serena mas inquietante, as diferentes partes de um quebra-cabeças cujas peças coexistem em contínua e mútua metamorfose.
Capa do livro "Tecnoceno: Algoritmos, biohackers e novas formas de vida" de Flávia Costa. (Foto: Divulgação)
O livro dá conta da instauração de uma “nova ordem informacional” que ocorre pela conversão de tudo o que existe em dados, por sua vez comparados e processados a altíssimas velocidades e numa escala global sem precedentes, e cujo objetivo é modular o comportamento humano e tornar as audiências de massa altamente previsíveis, ao mesmo tempo que antecipa perigos potenciais para a operação do sistema.
Para isso, primeiro é necessário incutir a ideia de que não há nada no mundo que não seja informação. Assim como nos tempos modernos a chave para a compreensão – dos indivíduos, das cidades, das nações – era a produção e o consumo de energia, agora ela está modelando nossas vidas como se fôssemos apenas imagens e números. O que está em jogo é o que Flávia Costa chama de “uma poderosa expansão do campo de batalha biopolítico”. Ocorre que a capacidade de controle deu um salto qualitativo. Assim como a fotografia e as impressões digitais eram novos auxiliares da polícia nos séculos XIX e XX, hoje é a interconexão de computadores e nosso próprio ativismo de computador que fornece instantaneamente dados sobre nossas tarefas, crenças e reações emocionais.
Uma impressão digital deixada no ciberespaço equivale às clássicas impressões digitais feitas pela pele. Portanto, nunca tantas pessoas no mundo estiveram sob constante vigilância e registro em qualquer campo de ação, e nunca foi tão fácil e barato classificar, organizar e regular grandes massas populacionais. Estamos ligados ao mundo por uma teia densa e dúctil de algoritmos vorazes, que podem reunir e sistematizar opiniões e emoções em poucos segundos. Na verdade, os algoritmos dominam as nossas vidas, uma vez que o ambiente técnico em que proliferam – a rede informática, da qual ninguém pode prescindir – parece não ter um exterior e os supostos canais de fuga redirecionam para o sistema qualquer sinal de rebeldia.
Mas Flávia Costa, embora perceba que a digitalização de tudo o que existe, graças à ubiquidade das tecnologias de informação, abre um abismo entre a experiência humana anterior e a contemporânea, ao mesmo tempo entende que a expansão de formas furtivas de vigilância e modelagem é apenas a ponta do iceberg de um projeto muito maior: a transformação de todas as pessoas em “seres infotecnológicos”, o que significa alterar a condição humana. É algo que já está acontecendo, porque “à medida que a política se torna mais biológica, a técnica se torna mais orgânica”.
No nosso cotidiano, a relação com as tecnologias mudou: já não parecem duras e imponentes, mas sim flexíveis e amigáveis, telas de vidro que nos convidam a um mundo de sonho e consumo. Mas, além disso, a reunião de indústrias farmacêuticas, tecnológicas e neurocientíficas está promovendo a aceitação geral de que o corpo é um desenho inacabado e que a possibilidade de aprimorá-lo para “otimizar ou maximizar o desempenho além das capacidades naturais” acaba se tornando uma tentação irresistível. É uma ambição de corte fáustico, a fantasia titânica de homens e mulheres sobrecarregados pelas pressões insuportáveis de viver em um mundo que no final das contas deixa exaustos corpo e alma.
Na parte mais inovadora e perturbadora do livro, somos apresentados ao provável futuro que está sendo criado agora, povoado por “formas de vida infotecnológicas”. Na verdade, do começo ao fim, e passo a passo, Flávia Costa vai abrindo um panorama total das transformações que estamos vivendo e da magnitude dos perigos implícitos. Em princípio, que cada vez mais somos entendidos como conjuntos de dados e que nós mesmos aceitamos tal condição e depois os fornecemos sem pensar nas consequências, ou melhor, estamos cientes das consequências – que existem poderes que usam os dados para conveniência – mas preferimos alimentar nosso narcisismo voraz: “Existo se sou visto”, um lema – angustiante. Tudo se conjuga, conta Flávia Costa, na instalação de um gigantesco “campo de treinamento” da subjetividade, possibilitado pela multiplicação dos dispositivos de produção e transmissão de mensagens e pelo grande aumento – via pandemia – da midiatização dos laços sociais.
Mas a implantação do que Flavia Costa chama de vida “infotecnológica” excede em muito a reivindicação de controle tanto do indivíduo quanto do público de massa. É verdade que agora, como se fosse efeito de uma feitiçaria generalizada, e de acordo com o ambiente técnico-científico da época, adoramos as redes sociais e transferimos nossos dados para grandes corporações como se fossem oferendas diárias a deuses que nos fornecem fluxos de informação, entretenimento e notícias, e que com esses dados se dá forma a uma espécie de holograma pessoal de cada usuário, cuja sobreposição instantânea permite fazer diagnósticos da realidade social e prevenir possíveis ameaças. Mas no livro de Flávia Costa nunca se perde de vista que, para os poderes contemporâneos, a preocupação primeira é “a vida biológica da população”, e por isso as ambições e as ousadias são maiores, o que significa imaginar que é possível entrar no cérebro e nos genes para modificá-los, assim como promover e potenciar a inteligência artificial a ponto de desenvolver dispositivos capazes de “hiperatividade cerebral”, maior do que todos os humanos do planeta poderiam alcançar juntos. Quando o desejo é atingir essa meta, raramente a cautela prevalece sobre a ambição de experimentar com o fogo.
Aspira-se, talvez, fundir o cérebro humano com dispositivos de inteligência artificial e, dado que muitos cientistas e laboratórios trabalham nisso, algo se inventará. Mas nesse ínterim, e há décadas, está em curso toda uma preparação cultural acelerada para que sejam aceitas etapas mais ousadas da evolução do corpo humano. Flávia Costa as identifica e detalha: a habituação com a tecnologia ser “incorporada” por meio de implantes, transplantes e cirurgias estéticas; as buscas das neurociências, que tomam a consciência como mero epifenômeno da atividade química e elétrica do cérebro; os sucessivos e rápidos lançamentos no mercado, pela indústria farmacêutica, de medicamentos destinados a modificar o humor da população; o crescente monitoramento computadorizado da vida mental dos usuários; a expansão de um regime somático que considera o corpo como um objeto que pode ser moldado, até autodesenhado, de modo a facetá-lo como obra de arte para o mercado de aparências do “capitalismo espetacular”; a propagação de uma “biopolítica informacional” que agrega às identificações biométricas a análise e o processamento de material genético.
É a “boa nova” de um “admirável mundo novo” no qual, como sempre, coexistem o mundo da sofisticação técnica e o da pobreza – os salvos e os condenados, os enclaves da riqueza e suas periferias devastadas. Mas se fosse possível produzir inteligência artificial mais alteração genética induzida, isso significaria conceder a certos seres humanos o poder dos deuses – não necessariamente celestiais, pois existem deuses poderosos e irresponsáveis. As coisas sempre podem sair do controle e causar o que Flavia Costa chama de “um acidente normal”, seja um choque de automóveis em uma rodovia ou a liberação de uma nuvem radioativa de uma usina atômica. A probabilidade estatística já está prevista.
Às vezes, o livro de Flávia Costa pode ser lido como um romance de terror, com o leitor se sentindo como uma erva muito frágil – um ser minúsculo – pronto para ser arrebatado por aparelhos superpoderosos ou mobilizado, com ou sem seu consentimento, de acordo com planos que vão se esboçando à medida que se desenrolam, enquanto todos aqueles que não conseguirem se compatibilizar com o novo mundo tecnosférico entrarão em seu ocaso: serão descartados. Mas principalmente o livro consegue estabelecer e esclarecer os mecanismos e a lógica do ambiente que está dando forma a um tipo específico de humano submetido a profundas intervenções da técnica. Esboça a necessidade de uma imaginação política alternativa capaz de questionar os usos abusivos das tecnologias e que, por enquanto, não está sendo promovida por políticos, cientistas ou instituições acadêmicas, mas por artistas, organizadores de ONGs e ativistas em geral. Flávia Costa se pergunta: “Podemos imaginar, através da arte, um mundo mais justo?”. Porém, não é tarefa obrigatória nem para a arte, nem para a filosofia, tentar melhorar o mundo. O diálogo da arte e da filosofia é com a morte, não necessariamente com a justiça, que antes requer coragem ética e política para alcançá-la e garantir que ela permaneça equilibrada.
A força do livro consiste não apenas em dar uma visão abrangente da mutação em curso, mas também em apontar os desafios que devem ser considerados e enfrentados. Enfrentá-los significa, para Flávia Costa, olhá-los de frente, sem se deixar fascinar nem tampouco voltar-se para trás com nostalgia, pois só é possível suportar o presente e criar futuros melhores.
Os desafios a ter em conta são abrir os olhos e ouvidos às forças que promovem “choques de virtualização”, recusar que sejamos considerados meros “portadores de informação previsíveis e moduláveis” e propor políticas comuns que desenhem defesas contra tecnologias que sejam julgadas “perigosas, mas inevitáveis”.
Outro desafio é combater os danos ecológicos que a era do Tecnoceno está causando no ar, na água e na terra. É uma tarefa urgente e quase impossível porque implicaria em deter a industrialização de todo o mundo e o modo de vida que a acompanha. Caso contrário, a alternativa é inexorável: ou eles – extinguir animais, devastar paisagens, contaminar terras e águas – ou nós – “progresso”, industrialismo. Dado que a idealização do progresso, à época, convencia todo o arco ideológico que vai da direita à esquerda, pouquíssimas eram as vozes críticas e, além disso, eram pouco ouvidas. Só que não eram profecias, mas sim análises e alertas sobre o futuro caso não mudássemos nossa forma de estar no mundo. Flávia Costa tem feito o mesmo, com uma garra invejável que sustenta do começo ao fim: observar o mundo como ele é, e não como gostaríamos que fosse… nem aquele que nos é mostrado – e vendido – publicitária e cotidianamente.
O desafio que ela propõe ao leitor é promover uma imaginação alternativa social, cultural e subjetiva diante de uma megamáquina que não para de crescer. No entanto, ao fechar o livro, não temos certeza se contemplamos o verdadeiro relevo desta época ou se apenas nos foi mostrado o rosto da Medusa.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Tecnoceno: saídas à digitalização do humano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU