Humanos em uma nova era. Entrevista com Flavia Costa

Fonte: Pixabay

20 Janeiro 2022

 

Muitas vezes, a história dos livros é a história dos modos como foram imaginados. Em Tecnoceno. Algoritmos, biohackers y nuevas formas de vida [Taurus], de Flavia Costa, doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires, pesquisadora do CONICET, professora e editora, parecem confluir dois caminhos: um de longo alcance, correspondente ao trabalho da autora como pesquisadora, e outro mais breve, consequência da conjuntura pandêmica.

 

Na convergência de ambos, surge um texto muito lúcido que fala de nosso presente e pressagia consequências a curto, médio e longo prazo. Se a história das tecnologias que nos cercam, os efeitos sobre o nosso cérebro, o meio ambiente e as possibilidades futuras nos devolvem uma imagem atemorizante, não é mais do que a consequência sobre o que somos, como também do que podemos chegar a ser.

 

A entrevista é de Ingrid Sarchman, publicada por Clarín-Revista Ñ, 19-01-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Por isso, de qual humano falamos quando falamos do Antropoceno, que “antropos” deixa tal pegada?

 

Em maio de 2019, o Grupo de Trabalho sobre o Antropoceno, na Comissão Internacional sobre Estratigrafia, decidiu por 29 votos a 4 que o Antropoceno constitui uma nova capa estratigráfica no planeta. Nessa reunião, que não é a definitiva, mas um passo importante, datou-se seu início na Era Atômica, pelos isótopos radiativos procedentes dos ensaios nucleares, cujo rastro permanecerá por cerca de 4,5 bilhões de anos.

Essa datação é muito reveladora, e é por ela que me inclino a pensar – como sugeriram antes autores como Peter Sloterdijk, Jean-Luc Nancy e Hermínio Martins – que do que se trata, aqui, é do humano capaz de desencadear tecnologicamente energias poderosíssimas, mas também de alto risco, como a indústria nuclear, as petroquímicas, as biotecnologias e inclusive as infotecnologias.

Quando falo de Tecnoceno, então, ressalto o desenvolvimento técnico, as infraestruturas construídas e os tipos de energia desencadeadas que propiciaram um salto de escala em nossa relação com o mundo ambiente. Não temos mais que nos ocupar somente da escala pessoal, a doméstica, a comunitária, a nacional e a internacional. Agora, estamos envolvidos em ações que transcorrem na escala do sistema Terra. Precisamos construir um pensamento social, cultural e político – do campo que costumávamos chamar de humanidades – que esteja à altura desse enorme desafio. As engenharias e o sistema financeiro levam muita vantagem nisso.

 

No livro, caracteriza a pandemia como um “acidente normal”. O que tal conceito significa?

 

Escrevi a hipótese da pandemia como “acidente normal” em abril de 2020. Lembremos que em 11 de março a OMS declarou que o coronavírus era uma pandemia, e nove dias mais tarde a Argentina entrou em isolamento obrigatório. Era uma situação muito desconcertante: o tráfego aéreo internacional parou quase por completo durante meses, algo que nunca havia acontecido antes. Então, a pergunta chave para mim era em que série nós deveríamos incluir a pandemia para torná-la inteligível.

Essa pergunta me levou a olhar acontecimentos que tinham em comum a escala dos riscos envolvidos e que partiam de um fator desencadeante que podia ser algo relativamente trivial: um animal silvestre comido nas antípodas provocava efeitos em todo o mundo conhecido; ou um experimento de laboratório que havia saltado para o mundo exterior de maneira acidental ou deliberada e havia provocado uma maré imparável de contágios. Entendi que estávamos diante de um acontecimento que tinha como principais características a escala e a complexidade sistêmica: havia se dado interações inesperadas em cascata, que percorreram o mundo em questão de semanas.

Assim, cheguei à tese do sociólogo estadunidense Charles Perrow, que em 1984 escreveu um livro sobre os “acidentes normais” próprios dos sistemas sociotécnicos complexos, intitulado precisamente como Acidentes normais: vivendo com tecnologias de alto risco. Perrow disse que nos sistemas sociotécnicos complexos, os acidentes “sistêmicos” ou “normais”, como os chama, são inevitáveis, porque nunca podemos prever todas as interações potenciais entre elementos. Mas, ao mesmo tempo – e essa é a boa notícia -, são previsíveis, por isso precisamos fazer nossos melhores esforços para prever os potenciais problemas, para minimizar os riscos.

 

Esse “acidente” acelerou processos de virtualização e com eles o fantasma da vigilância por meio da extração de dados. Como pensar seus impactos?

 

Estamos passando de um cenário que os pesquisadores chamavam, até fins do século XX, de “sociedade da vigilância” para uma “cultura da vigilância”. E o primeiro implicava uma ampliação dos imaginários e das práticas de monitoramento em relação ao “antigo” panoptismo estatal de tipo orwelliano e se referia a que, com as novas tecnologias digitais e de telecomunicações, a vigilância começava a se tornar uma experiência social generalizada. A ideia de uma “cultura de vigilância” indica que a vigilância se tornou um modo de vida, na medida em que faz parte de nossa experiência cotidiana em aeroportos e nas ruas da cidade, na entrada e saída dos edifícios e também dentro dos lares e nas redes sociais.

Nessa perspectiva, a vigilância não é apenas algo que nos é feito, mas algo do qual participamos “pelo nosso próprio bem” e até por diversão quando aceitamos termos e condições de um serviço ou quando tiramos uma selfie e a postamos no Instagram. Muitas vezes, assume-se isso sem questionamentos, já como certo ou como exibição. As pessoas estão habituadas a isso como parte de uma nova cultura do eu que se exibe diante dos outros, que treina para construir e lidar com sua própria audiência, e que assume que essa exposição tem riscos e custos.

Entre as formas de lidar com esses custos, aparecem inclusive gêneros ou subgêneros como a humilhação em público. Não me refiro tanto à humilhação involuntária (as “câmeras escondidas” dos anos 1990 já não chamam tanta atenção), mas sobretudo a intencional: os concursos nos quais os participantes estão conscientes de que sabem pouco ou nada acerca da habilidade exigida e participam alegremente diante da chacota de jurados e apresentadores, como na competição de confeiteiros amadores Mandou Bem, ou como os desafios de Roast Yourself, nos quais youtubers famosos riem deles mesmos compondo canções a partir dos comentários mais cruéis de seus haters.

 

No livro, menciona uma técnica de “vigilância biológica” baseada no DNA. Quais são as suas características?

 

Quando o teste de DNA é utilizado em ciência forense, costuma ser considerado irrepreensível. Foi a artista Heather Dewey-Hagborg, ativista biohacker e fundadora do coletivo Biononymous.me, que ressaltou a vulnerabilidade do teste de DNA. Ela é particularmente crítica à técnica de fenotipagem, ou fenotipificação, que é aquela que permite, a partir dos vestígios de DNA contidos, por exemplo, em uma bituca de cigarro ou em uma goma de mascar, criar uma possível descrição da aparência da pessoa que fumou esse cigarro e produzir um identikit.

O que Dewey-Hagborg defende é que, ao menos no atual estágio de desenvolvimento da técnica, sua confiabilidade é muito limitada. Claro, é concebível que essas técnicas continuarão se desenvolvendo e possivelmente, com os atuais bancos de dados, já sejam mais confiáveis que há 10 anos, não só pela informação reunida pelos Estados, agências de Governos e institutos de saúde, mas também pela disponibilidade de imagens e dados que nós próprios entregamos com consentimento, mais ainda a partir da pandemia.

É importante, então, não fazer com que as avaliações dependam apenas da imprecisão, mas também da avaliação que possamos fazer acerca dos benefícios e riscos em utilizar essas técnicas biométricas, para quais fins e com quais limitações, mesmo quando forem muito precisas. Também, e não é um dado menor, são os artistas, designers e as organizações não governamentais que mais visibilizam a pergunta acerca dos usos abusivos dessas tecnologias, em comparação com o silêncio das principais autoridades políticas, acadêmicas e científicas.

 

Não podemos negar que essa advertência convive com a capacidade técnica de nos autotransformar. Considera que o Tecnoceno também implica uma mudança nessa direção? Estamos preparados subjetivamente para alterar algo do que chamamos de natureza?

 

A autotransformação, assim como o desenho de si, são tendências próprias do Tecnoceno, porque justamente graças ao desenvolvimento tecnológico e a lenta, mas constante democratização do acesso às práticas e dispositivos, estão cada vez mais ao alcance as possibilidades de intervir no e sobre o corpo: interpretá-lo como uma espécie de material de trabalho, um work in progress que é possível e desejável modificar de acordo com a autopercepção, o gosto pessoal, as exigências sociais, a conveniência ocasional ou uma mistura mais ou menos estratégica de todas elas.

Sobre isso, a ênfase analítica que hoje considero mais produtiva é a que inclui todas as alternativas – as que seguem a tendência técnica ou as que se opõem a ela, como os diferentes tipos de “retorno à natureza” – dentro do movimento da época. Mais do que pensá-las como antagônicas, observar como o mosaico de alternativas se configura. De fato, nas biografias concretas vemos sujeitos que entram e saem das diferentes possibilidades: operam-se, arrependem-se ou não, tornam-se naturistas, utilizam psicofármacos por meio dos quais buscam “voltar a ser eles próprios”, meditam, passam para a homeopatia, voltam a se operar.

Desde já, parte da tarefa de ser uma comunidade consiste em ampliar as possibilidades de felicidade de todos os membros. Nesse sentido, são muito valiosos os movimentos de reivindicação de belezas “outras”, que de fato expandem e avivam nossa capacidade de desfrutar da enorme diversidade de belezas do mundo. Contudo, o que se observa é que os corpos passam por aí e seguem para outro lado. Como já dizia Deleuze em seu hoje famosíssimo Pós-escrito sobre as sociedades de controle, o modo da época é o fluxo, não o confinamento; a modulação, não o molde.

 

Qual é o principal desafio que o Tecnoceno nos exige pensar?

 

Há muitos: o direito à terra, a agenda ambiental, o “choque de virtualização” para o qual a pandemia nos empurrou. Mas o mais peremptório é minimizar as enormes desigualdades, que o marco neoliberal aprofunda cada vez mais, porque favorecem diferentes tipos de acidentes e contágios.

Para dar um exemplo, em inícios de 2020, antes da abertura do Fórum Econômico Mundial de Davos, um relatório da organização não governamental Oxfam apontava que 2.153 pessoas físicas possuem mais dinheiro do que os 4,6 bilhões de seres humanos mais pobres do planeta, 60% da população mundial. Essa situação não apenas “acontece”, há uma trama jurídica, econômica, política e tecnológica que propicia essa espiral e que precisamos revisar de modo urgente.

 

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