14 Junho 2023
"A definição do sexo feminino (e reciprocamente, do sexo masculino) não pertence às tarefas últimas do magistério. Com razão, ao longo da história, a palavra autorizada dos bispos e do bispo de Roma usou não apenas a palavra bíblica, mas os entendimentos que os mundos judeu, grego, romano, visigodo, franco, lombardo, saxão e depois americano, indiano, russo, africano e asiático ofereceram sobre o sujeito feminino e o sujeito masculino", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado em seu blog, Come Se Non, 12-06-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando se estudam as questões que dizem respeito ao tema do “ministério ordenado”, não é difícil encontrar uma distinção razoável nos manuais, mas que merece uma releitura mais cuidadosa. Costuma-se dizer que a questão da "ordenação de homens casados" é uma questão de natureza disciplinar, enquanto a questão da "ordenação de mulheres" é uma questão de natureza doutrinal. Essa distinção deveria ser discutida. Porque me parece que, considerando a tradição, a exclusão das mulheres da ordenação não é um conteúdo "de fide", mas um tema "de moribus". Os costumes, no entanto, podem mudar sem com isso mudar a fé. Sobre isso, penso eu, não se deve duvidar. Empenhar o magistério definitivo (ou mesmo o magistério infalível) em questões que podem mudar conforme a história e a consciência parece um procedimento não só arriscado, mas contraditório em relação à tarefa de “confirmar” que o magistério deveria garantir.
O magistério nunca pretendeu utilizar a função de confirmar, em seu nível mais alto, sobre temas que estão sujeitos à mudança histórica. Não faria sentido empenhar o magistério definitivo em juízos sobre a astronomia ptolomaica ou copernicana, em juízos sobre a geografia europeia ou americana, em juízos sobre a antropologia civilizada ou primitiva. Ninguém jamais sonhou em vincular a Igreja a um juízo contingente, embora tenha havido, ao longo da história, juízos fortemente limitados expressos por homens da Igreja. O magistério protege um "depositum" que não é uma enciclopédia com todas as definições em seu lugar. Também o Catecismo, exercício magisterial notável, mas não definitivo, não pode ser considerado um manual para resolver todas as questões, mas uma abordagem autorizada para orientar o olhar, sempre sujeito a novas evidências possíveis e também a correções necessárias.
A definição do sexo feminino (e reciprocamente, do sexo masculino) não pertence às tarefas últimas do magistério. Com razão, ao longo da história, a palavra autorizada dos bispos e do bispo de Roma usou não apenas a palavra bíblica, mas os entendimentos que os mundos judeu, grego, romano, visigodo, franco, lombardo, saxão e depois americano, indiano, russo, africano e asiático ofereceram sobre o sujeito feminino e o sujeito masculino. Nessa complexidade não existe doutrina completa sobre a mulher e sobre o homem. Dizer isso não significa que não existam linhas interpretativas autorizadas, ricas e fundamentais sobre a relação humana e a relação sexual, da identidade humana e da identidade sexual, mas que não fecham o perfil interpretativo do masculino e do feminino, que depende sempre também do contexto cultural no qual e graças ao qual a experiência do feminino e do masculino se configura, toma consciência e forma historicamente uma consciência de si e do outro de si.
Se observarmos a tradição, não é difícil perceber como o tratamento do "sexo feminino", tanto do ponto de vista da criação como do ponto de vista da redenção, conheça uma argumentação que não pode ser definida como "doutrinária" em sentido estrito. A tradição não quis construir uma "doutrina do feminino" completa, mas assumiu, de tempos em tempos, concepções culturais disponíveis e autorizadas no contexto comunicativo da pastoral ou da pesquisa teológica.
Vejamos dois casos clássicos: Tomás de Aquino e João Duns Scotus. Em ambos a consideração do "sexo feminino" encontra um fundamento considerado "revelado", por ser assentado numa interpretação da criação e da vontade de Cristo, fundada também em evidências de natureza antropológica, mediadas pelo pensamento filosófico, por meio das quais é lida a tradição bíblica. De fato, por um lado, a criação da mulher, tirada "do lado de Adão", não é reconhecida nem como senhora nem como escrava, mas como "parceira".
Mas uma compreensão da mulher marcada por "natural sujeição" a devolve a um horizonte de "escravidão insuperável". Dessa confusão dos planos, que atribui à criação um desígnio de subordinação estrutural da mulher ao homem em termos de "auctoritas", deriva a conclusão de que, segundo Tomás, os impedimentos à ordenação são de dois tipos: ratione praecepti, por serem superáveis, e ratione sacramenti, por serem insuperáveis. Mas a "ratio" dessas duas rationes não depende da revelação, mas da antropologia e da sociologia do tempo de Tomás. A ideia de que a mulher não possa “se emancipar da escravidão” é o guia teorético de Tomás, que não pode mais sê-lo nem para nós nem para o nosso magistério. E o magistério sabe disso.
De maneira diferente, João Duns Scotus procede a uma releitura da tradição com a preocupação de não perder a relação da doutrina cristã com a “lei natural”. Embora Duns Scotus coloque resolutamente a questão do fundamento cristológico da exclusividade masculina, porém baseado em uma curiosa exegese dos textos paulinos, ao chegar às conclusões de seu raciocínio chega a uma síntese bastante interessante. Efetivamente, ele afirma:
"quantum ad gloriam consequendam et ad gratiam habendam, non est distinctio in lege Christi inter foeminam et masculum, quia tantam gratiam habere et tantam gloriam attingere potest illis, sicut iste; sed quantum ad gradum excellentem habendum in Ecclesia, bene decet esse distinctionem inter virum et mulierem in lege Christi, quia hoc consonat legi naturae” (Johannis Duns Scoti, Quaestiones in librum quartum sententiarum, d. XXV, q. II).
O "grau mais alto a ser ocupado na Igreja" exige uma "diferença entre homem e mulher", na qual a "lei de Cristo" exige uma consonância com a lei natural. Também nesse caso, a consonância com a lei natural não depende do prejulgamento, mas do juízo. Esse juízo encontrou, na razão que apreende o direito natural, uma evolução decisiva nos últimos dois séculos.
Se a lei natural fosse pensada como um dado imutável, a sociedade não poderia ter se tornado "aberta", mas seria estruturalmente "fechada". Uma lei natural que fixasse de uma vez por todas o perfil do feminino e do masculino estaria em contradição com o desenvolvimento dos costumes que o último século viu afirmar-se, também na Igreja. Esse desenvolvimento permite, algo antes inaudito e escandaloso, que as mulheres possam realizar tarefas "públicas" antes consideradas inadequadas, indecorosas ou até mesmo "infames". Que uma mulher hoje possa ser "promotora pública", "ministra da República", "cardiologista", "advogada", "taxista”, “policial” ou "caminhoneira" é uma mudança da lei natural com que a lei de Cristo só pode concordar.
De alguma forma, nos deparamos com uma redefinição do que é considerado “natural” para a mulher. A ideia de que a Igreja está privada da possibilidade de aceder a essa consonância - e que, portanto, a "reserva masculina" do ministério ordenado segue uma "lei" incompatível com a lei natural atualizada (segundo Duns Scotus), ou com o novo reconhecimento da eminência na autoridade (segundo Tomás de Aquino) - é a hipótese que a doutrinação do "sexo feminino" introduziu no catolicismo, indiretamente com o Código de 1917, diretamente com Inter Insigniores e com Ordinatio sacerdotalis.
É claro que essa forma de argumentar constitui uma descontinuidade significativa com o estilo clássico e implica uma "separação" da experiência eclesial da autoridade, que não consegue mais encontrar consonância nem com as evidências antropológicas nem com as normas jurídicas extraeclesiais.
Se o sexo feminino ainda é percebido como um "impedimento", é difícil entrar em consonância com o sinal dos tempos da mulher reconhecida abertamente como livre sujeito (e não necessariamente ou dogmaticamente sujeita) "in re pubblica".
Daí a forte dissonância entre uma Igreja que clama justamente pelos direitos das mulheres fora de si e não vê a discriminação que alimenta com a declaração de "não ter a faculdade de integrar a mulher no ministério ordenado", algo que se traduz, infelizmente, em reconhecer para si o direito de excluir a mulher do ministério ordenado. Que uma oportunidade continue a ser julgada como um impedimento não é algo bom, nem para a mulher nem para a Igreja. E não basta confessar a própria suposta impotência para deixar o coração tranquilo.
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O sexo feminino como impedimento ou como oportunidade: é mesmo uma questão doutrinária? Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU