10 Mai 2023
"Em Labirinto Reacionário, Valério Arcary analisa com agudeza crítica os embates estruturais da sociedade brasileira na última década. Disseca como a Faria Lima encurrala Lula – e aponta meios de reverter o ciclo vicioso do financismo", escreve Luiz Eduardo Soares, antropólogo, cientista político, escritor e ex-secretário nacional de segurança pública, em artigo publicado por Outras Palavras, 09-05-2023.
Labirinto reacionário: o perigo da derrota histórica é um livro importante, escrito por um dos principais estudiosos dos desafios políticos contemporâneos, Valério Arcary, cuja maturidade intelectual corresponde à experiência de 49 anos de militância nas lutas populares pelo socialismo. O peso da longa travessia, entretanto – e esse é um dos encantos da obra –, não anula a leveza de quem se recusa a renunciar à esperança. Os capítulos, escritos a um só tempo como intervenções políticas e exercícios reflexivos, mantêm o leitor (relevem o masculino) alerta, mobilizado, inquieto, não raro emocionado e sempre induzido a pensar e repensar com independência e espírito crítico, contemplando o retrato fugaz da conjuntura à luz da história e do horizonte transnacional. Densidade analítica, honestidade intelectual e engajamento coexistem, nos textos de Valério, sem concessões mútuas, o que soaria paradoxal apenas a quem supusesse que envolvimento político-partidário implicasse, necessariamente, negar os processos complexos, cambiantes e contraditórios da realidade social para validar concepções congeladas ou autoritariamente impostas.
Imagem: Divulgação
O pensamento vivo do autor não sacrifica, em nome de compromissos de fé, a indispensável abertura àquilo que, nos fenômenos observados, sendo novo e surpreendente, exige criatividade e flexibilidade, nos planos do entendimento e da ação. De outro modo, não haveria o reconhecimento de erros, as correções de rota, a manifestação de dúvidas e a audácia de indagar, mesmo quando não há respostas. Onde não há dúvida nem admissão de incertezas, não há pensamento crítico. E onde falta reflexão crítica, não há prática política consequente. Portanto, aí está a ousadia maior de um pensador como Valério, cuja estatura como liderança política é inegável e que, ao contrário do que se deveria dizer de muitos postulantes a esse título, merece o adjetivo radical – qualidade que atesta profundidade e consistência, e nada tem a ver com sectarismo.
Radical é seu compromisso com a verdade, essa busca perene, indissociável da imersão na luta de classes sob inspiração do ideal socialista. É assim que, pessoalmente, vejo sua identificação com o marxismo, cujos conceitos e valores matriciais lhe oferecem referências, sem condená-lo a qualquer doutrinarismo. A fidelidade à teoria marxista, na medida em que é marcada pela heterodoxia transgressora associada à tradição trotskista, soa como o outro nome da liberdade, não seu contrário. Por isso, o autor, assim como busca nos clássicos pistas para compreender o presente, enfrenta-o com desenvoltura inovadora, sem pagar pedágio a leituras esquemáticas. O ambiente em que se movem os textos reunidos no livro passa ao largo do culto fetichista a heróis ou da devoção reificadora a crenças. O ar que se respira, de capítulo a capítulo, é o do corpo a corpo com a realidade dura do labirinto reacionário, preâmbulo do abismo fascista. Face à barbárie, olhada nos olhos com crueza, somos convocados a exorcizar ilusões e resistir. Nesse embate, os conceitos são meios e modos de pensar para agir, são recursos da prática, são eles mesmos prática política, segundo mediações singulares. Nada mais distante da monotonia placidamente onisciente das ortodoxias.
Eis-nos, então, virando as páginas do labirinto para penetrar em seus enigmas, cartografar suas dinâmicas visceralmente iníquas e descobrir, ou melhor, construir saídas. O livro nos leva das imensas transformações a que vêm sendo submetidas a sociedade brasileira e a realidade transnacional, desde a primeira década do século, a 2013, e daí à ascensão da direita, ao golpe contra Dilma, e, na sequência, ladeira abaixo, até as manipulações grotescas e midiáticas da Lava-Jato, a prisão de Lula – excluindo-o das eleições de 2018 –, a imposição da agenda neoliberal, devastando direitos dos trabalhadores, e a miséria regressiva e brutal do bolsonarismo. Termina com a vitória extraordinária de Lula, triunfo que não dissolveu o sabor amargo do veneno: a persistência e a força do fascismo.
Importante registrar que, ao contrário da visão unilateral e simplificadora, bastante difundida, inclusive no campo das esquerdas, a interpretação de Valério sobre as Jornadas de Junho nos oferece um quadro muito mais complexo, multifacetado e dinâmico, refratário ao reducionismo. Os milhões nas ruas brasileiras não foram invenção da direita, manipulada pela CIA, berço do bolsonarismo que chegaria mais tarde ao poder. Longe disso, embora a direita e a extrema-direita tenham estado lá, tanto quanto a CIA e seus acólitos, como seria de se esperar. Estava em cena a disputa, estava nas ruas a luta de classes, por mediações bastante específicas. O futuro não estava lá, pronto, acabado e resolvido. O futuro foi produzido por apropriações do que Junho pôs em circulação e pela canalização das energias precipitadas na movimentação das massas. Equívocos no entendimento do que estava em jogo pavimentaram o caminho e deram tração aos empreendimentos reacionários e fascistas subsequentes.
Haveria muito a dizer sobre a leitura fina e sensível que Valério propõe a respeito de cada etapa desse processo, dialogando sempre com os imperativos da ação política. Contudo, nada substituiria o próprio livro. Por isso, prefiro me deter na apresentação sumária de alguns pontos que me parecem decisivos e mais urgentes, na medida em que tematizam os desafios ainda em curso:
A previsão de Valério está se confirmando. O governo Lula está sob cerco, chantageado pela Faria Lima, a grande mídia e a maioria reacionária no Congresso Nacional, sem mencionar os governos estaduais de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e a inacreditável arrogância perversa do Banco Central. A vitória nas eleições foi politicamente gigantesca, mas apertadíssima no número de votos. A sociedade está dividida – fraturada, como diz o autor. A força do fascismo se mantém. Portanto, a hipótese da mobilização popular, embora indispensável, parece insuficiente e distante, sobretudo porque provavelmente dependeria de iniciativas do governo federal em princípio incompatíveis com a política econômica neo-fiscalista adotada. Quão mais o governo cede e recua, mais se afasta dos interesses populares, mais fraco e isolado se torna, menos capaz de mobilizar o apoio popular, mais vulnerável à avidez predatória dos abutres do capital. O círculo vicioso aperta o garrote vil e nenhuma dialética emancipadora parece acenar no horizonte histórico. Claro que uma resenha da obra que irradia esperança não poderia terminar nesse tom sombrio e crepuscular. Pois este adjetivo salva meu empenho em vencer a angústia e o ceticismo: não é a coruja, alçando voo no crepúsculo, que vislumbra o desfecho de um período histórico? A ação política coletiva, sintonizada com os processos em curso, não só no país, pode promover alterações hoje difíceis de prever, reconfigurando a correlação de forças e abrindo picadas inclusive para além dos ciclos eleitorais e das limitações governamentais. Crer nessa hipótese é parte da ação política.
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O Brasil na teia viscosa da chantagem neoliberal. Artigo de Luiz Eduardo Soares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU