04 Abril 2023
"Dom Evaristo, que chegou a Roraima após uma longa viagem de mais de dozes horas de ônibus, parece ter compreendido o chão que pisa. Aos poucos, com o coração largo e generoso, vai bebendo da rica história missionária daqueles que o precederam nesta terra sagrada".
O artigo é de Gabriel Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP - São Paulo/SP) e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE - Belo Horizonte/MG). Membro da Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima, onde vive com os povos Wapichana e Macuxi, na Região Serra da Lua.
“Deus está mais além de nossa fé;
mais além de nossa teologia;
mais além de todas as Igrejas.
Deus está mais além de todos os poderes;
mais além de todos os fracassos;
mais além de todos os possíveis.
Deus está mais além da esperança.
Deus está mais além,
mais aquém Deus está!” [1]
Assim cantou o bispo-profeta Pedro Casaldáliga ao experimentar o Deus dos pequenos nas periferias do mundo. Esse Deus tão bem testemunhado pelos pastores de Roraima nas últimas décadas. Significativo reconhecer que a diocese foi agraciada em sua história com grandes bispos. Homens valorosos e comprometidos com o Reino de Justiça, Paz e Igualdade anunciado por Jesus de Nazaré. Como não se inspirar nas figuras de Dom Algo Mongiano, Dom Roque Paloschi e Dom Mário Antônio? Cristãos que exalaram simplicidade, ternura e profecia por essas terras de Makunaima.
No último dia 25 de março, o décimo Bispo da Diocese de Roraima iniciou seu ministério apostólico com uma celebração eucarística campal às portas da cinquentenária Catedral de Boa Vista. Com alguns anos de experiência na Amazônia, como responsável pela Prelazia do Marajó, Dom Evaristo Spengler, OFM é um missionário de longa data, tendo passado um período em Angola, na África. Nomeado padre sinodal, participou do Sínodo para Amazônia, em 2019, e no ano passado foi escolhido para presidir a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) no Brasil.
Contando com um significativo número de irmãos no episcopado, entre eles o cardeal da Amazônia, Dom Leonardo Steiner, as presenças mais marcantes foram as delegações de indígenas e migrantes que tiveram participação ativa em vários momentos da celebração. Afinal, como diz Dom Evaristo em sua homilia, “mais importante do que o bispo é a Igreja”, “mais importante do que a fortaleza do bispo é a fortaleza da Igreja”. Uma Igreja com rosto indígena e migrante!
Exatamente aí nesses que são historicamente perseguidos e oprimidos, mas que são os amigos mais próximos do Senhor, Deus irrompe em toda a sua graça, como apontou o bispo franciscano:
“Deus não envia o anjo a Jerusalém, não o envia ao Templo! Deus envia o anjo á Galileia, uma região desprezada, refúgio de pagãos. O messias também não vem como um forte guerreiro, como autoridade sacerdotal ou como um grande legislador, tal como alguns grupos de judeus o esperavam. Ao contrário, da mesma forma como sua mãe, que é parte do povo pobre, a vida de Jesus revelou que o Reino de Deus está presente especialmente lá onde todas as pessoas podem circular: nos caminhos dos campos, nas casas, nas ruas da periferia, entre ‘os pobres de Deus’. Estes são os espaços sagrados preferidos por Jesus, esse é o chão no qual Jesus pisa e vive”.
Ao longo das últimas décadas, a diocese entendeu que a sua opção preferencial não pode ser outra do que caminhar junto e apoiar a maior riqueza que possui a região, a incrível diversidade de Povos Indígenas. Yanomami, Yekuana, Patamona, Ingarikó. Povos com suas línguas e costumes próprios. Macuxi, Wapichana, Sapará, Xirixana. Povos dotados de suas cosmovisões e espiritualidades em profundo contato com a Mãe Terra. Waimiri-Atroari, Wai-Wai e vários Povos em Isolamento Voluntário. Povos que, parafraseando Dom Aldo Mongiano, constituem “um privilégio para a sociedade de Roraima”.
Ainda no início da celebração o grupo de indígenas, entoando seus cantos e danças tradicionais, dirigiu-se em direção ao seu pastor envolvendo-o de respeito, confiança e expectativas. Graça a personalidades emblemáticas como os já citados missionário da Consolata, Dom Mongiano e o atual presidente do CIMI, Dom Paloschi, a figura do bispo para os indígenas em Roraima possui uma autoridade inimaginável em outros contextos.
Ademais, incontáveis foram as ocasiões em que os pastores se colocaram ao lado desses povos massacrados pela elite local, sofrendo ameaças e retaliações. Bispos que não se dobraram ao direito da força e da violência, mas souberam reconhecer e acolher a força que vem dos pequenos, como lembrou o presidente da REPAM Brasil:
“A força da Igreja de Jesus se manifesta na humildade, na humanidade, no serviço, na acolhida, no jeito samaritano e acolhedor de ser, e na sua capacidade de ser misericordiosa. Somos convidados a nos colocar a serviço da Palavra, como Maria fez, e a nos empenhar com toda força para superar nossos medos paralisantes”.
Como ensina o teólogo-mártir jesuíta, Ignacio Ellacuría, SJ, habitar um contexto histórico a partir da fé implica assumir uma tríplice dimensão, qual seja, “compreender a realidade, carregar a realidade e encarregar-se da realidade”. Dom Evaristo, que chegou a Roraima após uma longa viagem de mais de dozes horas de ônibus, parece ter compreendido o chão que pisa. Aos poucos, com o coração largo e generoso, vai bebendo da rica história missionária daqueles que o precederam nesta terra sagrada.
Na primeira vez, quando veio rapidamente conhecer a diocese, fez questão de se encontrar com os membros da Pastoral Indigenista. Interlocutor atento, escutou com interesse e preocupação as prioridades e os desafios apresentados pelos indigenistas. Impactado com o que viu, e para a alegria dos missionários, pediu um novo momento, agora com os seus amigos e familiares, no dia seguinte a sua posse. Ciente da profundidade do compromisso de seus antecessores reafirmou com profecia:
“A Igreja de Roraima nunca se deixou pautar por aplausos ou críticas, mas pela fidelidade ao Evangelho de Jesus Cristo. Lembro o Pe. Caleri que, com um grupo de pessoas, deu a sua vida pela causa dos povos indígenas. (...) No momento presente a Igreja não pode silenciar diante da tragédia dos Yanomami, diante de suas terras invadidas pelo garimpo, que lhes rouba o território, a saúde, a paz, os meios de produção de alimentos, enfim, a vida. A Igreja de Roraima reafirma mais uma vez o seu compromisso com os povos indígenas na defesa da sua vida e dos seus territórios”.
Não se pode alcançar a emoção e o significado que essas fortes palavras tiveram nos muitos corações indígenas presentes. Um novo bispo, um desejado amigo, um importante aliado! Só eles carregam em seus corpos as marcas da perseguição e da humilhação sofrida por séculos e ainda tão entranhada na sociedade. Somente a partir desse lugar teológico – dos últimos – é possível intuir o real significado de uma Igreja encarnada e com uma evangelização libertadora. Em comunhão com essa Igreja da América Latina e da Amazônia, moldada pelo Concílio Vaticano II, a partir das Conferências de Medellín e Puebla e os Encontros de Santarém (1972-2022), Dom Spengler renovou seu compromisso:
“Creio numa Igreja aliada e parceira dos pobres, principalmente dos mais esquecidos da sociedade e das políticas públicas: povos indígenas, migrantes, mulheres, jovens, famintos. (...) Creio numa Igreja que busca viver e testemunhar a sinodalidade, onde todos participa, e assumem a corresponsabilidade do sacramento do batismo, fortalecendo os conselhos e instrumentos de participação. (...) Creio numa Igreja profética, que animada pelo Espírito, denuncia toda e qualquer injustiça e opressão e que caminha fiel à Verdade que liberta. Creio numa Igreja responsável pela Casa Comum, que ama, cuida e defende nossa ‘Irmã e Mãe Terra’”.
Bem-vindo à Roraima, Dom Evaristo! Uma terra encantadora, cheio de belezas e sociobiodiversidade, mas também permeada de conflitos e explorações. Que após longo e profícuo ministério pastoral o senhor possa dizer, daqui a alguns anos, como o velho e fiel Bispo Aldo Mongiano, “o período que passei em Roraima foi, com certeza, o mais difícil da minha vida, mas também o mais estimulante, porque pude lançar-me totalmente ao trabalho, ficando perto das pessoas que tinha sido chamado a servir” [2]. Aweré, axé, aleluia!
[1] CASALDÁLIGA, Pedro. Quando os dias fazem pensar: memória, ideário, compromisso. São Paulo: Paulinas, 2007. Pag. 114.
[2] MONGIANO, Aldo. Roraima entre profecia e martírio. Boa Vista: Diocese de Roraima, 2011, pag. 125.
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Dom Evaristo Spengler: um bispo segundo Cristo que aponta para Amazônia. Artigo de Gabriel Vilardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU