Pesquisadores propõem que presidente aproveite ida a Pequim para estabelecer cooperação em Inteligência Artificial para o SUS. É o caminho para atualizar a Reforma Sanitária e evitar a captura de novas tecnologias pela medicina de negócios.
A entrevista é de Antonio Martins, publicada por Outra Saúde, 06-03-2023.
Poderão Brasil e China trocar conhecimento para revolucionar o Sistema Único de Saúde com o uso de tecnologias digitais? Esse foi o tema da entrevista concedida pelo médico e pesquisador Luiz Vianna Sobrinho. A ideia surge de uma inquietação de Vianna e dos membros da Estratégia Latino-Americana de Inteligência Artificial (ELA-IA). “O Brasil dispõe de um imenso banco de dados populacionais e na área de saúde e um dos maiores prontuários eletrônicos do mundo, mas ainda não conseguimos utilizar essa riqueza de informação para gerar políticas públicas”, sintetiza o pesquisador.
E a China – que embora não tenha um sistema único, tem programas de saúde com cobertura de 300 milhões de habitantes – pode ter muito a ensinar. Na última década, o país empregou intensamente a inteligência artificial (IA) como parte de sua estratégia para resgatar centenas de milhões de pessoas da pobreza absoluta. E, mais recentemente, tem desenvolvido estratégias para o uso de dados de sua população para o cuidado da saúde. O exemplo mais conhecido foi o sistema inventado para conter a pandemia. Ele informava via celular, aos cidadãos, caso houvessem compartilhado espaços públicos com alguém doente de covid – e orientava como deveria ser feito o isolamento social. A China foi o país que enfrentou a crise sanitária com maior sucesso: se seguisse a média mundial, milhões teriam morrido. Mas foram menos de 88 mil.
Vianna explica o êxito chinês: “A concepção da Governança Baseada em Dados [Data-based Governance], com o uso de tecnologias digitais como o Big Data, por exemplo, foi o que possibilitou a construção de grandes bancos de dados para, através de indicadores territorializados e administração descentralizada, identificar as famílias-alvo e suas necessidades específicas, permitindo então adaptar as políticas públicas a cada território e os programas de assistência a cada perfil de família”. Lula inicia, em 24/3, uma viagem à China. O governo brasileiro estaria disposto a firmar parceria com o país para empreitadas semelhantes? É o que espera o pesquisador.
Enquanto nada acontece, o Brasil caminha muito atrás do resto do mundo, no que diz respeito à Saúde Digital e ao uso de inteligência artificial para o benefício da população. Mas a saúde privada está de olho: “O mercado privado de saúde do país tem imenso interesse em trabalhar com esses dados, não apenas para gestão de risco de planos de seguro privado, mas pela possibilidade de venda de serviços de assistência aos programas de APS com modelos de plataforma e machine-learn”, comenta Vianna.
Para ele, chegou a hora de uma Reforma Sanitária Digital. Mas por que não falar em revolução? “Curiosamente, ainda hoje evitamos falar que necessitamos de uma revolução sanitária e social – embora desejemos – mas não há pudor algum em falar de ‘revolução digital’. Ora, é exatamente essa potência que temos de trazer para nosso pensamento sobre a reforma sanitária hoje.” A visita do presidente pode ser ideal para o Brasil dar esse passo, aposta o pesquisador.
“Então traçamos, como prioridades, três pontos chaves que nos parecem promissores na experiência chinesa para organização do nosso programa baseado em IA, e que estão de acordo com as recomendações da Organização Mundial de Saúde para a transformação dos sistemas de saúde na América Latina”, explica Vianna. A lista é a seguinte: “primeiro, um sistema de governança baseada em dados, IA e Big-Data, que organize e lidere a transformação da saúde digital; isso possibilitará o desenvolvimento de um ecossistema digital público e soberano com participação da sociedade; e, por fim, algo muito importante na experiência chinesa – a concepção de uma forte governança estatal sobre o investimento privado em saúde”. Lula aproveitará essa chance?
A Estratégia Latino Americana de Inteligência Artificial (ELA-IA), uma rede de pesquisadores que busca examinar criticamente as novas tecnologias e influir em seu sentido está vendo com esperança a viagem de Lula à China – e uma possível parceria envolvendo Saúde e erradicação da pobreza. Por quê?
Nós vemos como muito promissora essa oportunidade, porque pensamos que há grande interesse de Estado de ambos os lados. Sabemos que, estrategicamente, é importante para a China a difusão de sua expertise em tratamento de dados através das tecnologias de Inteligência Artificial. Eles a utilizaram para direcionar as políticas de combate à miséria e já são líderes mundiais no desenvolvimento das mesmas para aplicação na saúde. O Brasil é um parceiro importantíssimo, por vários motivos: primeiro porque o governo tem agora um real interesse político em combater a pobreza, de atuar sobre o problema social que se agravou ainda mais nos últimos anos; depois, porque necessitamos de estruturar os pilares de um programa robusto de saúde digital que esteja no nosso nível de desenvolvimento, que dê a direção central ao nosso modelo, e comece pelo resgate da cidadania da grande maioria da população, pois não estamos no primeiro mundo. Nesse ponto, os grandes centros tecnológicos do país já desenvolvem inúmeros projetos de ponta, mas nossas necessidades se parecem mais com as da China de décadas atrás, até pela nossa dimensão com muitas diferenças territoriais. Além disso, esse seria um bom caminho para fortalecer novamente as parcerias com os BRICS, e o Brasil poderia ser um hub para desencadear esse ingresso da saúde digital em toda a América Latina.
Em seus livros – principalmente em “O ocaso da clínica”, você aponta ao mesmo tempo o risco e as enormes possibilidades positivas abertas pela medicina baseada em evidências e, mais recentemente, em dados. Poderia expor a síntese desta oposição?
Há no meu livro uma tentativa de exposição de um ponto de vista que tem a ver com as transformações da prática médica e da relação entre os sujeitos – médico e paciente – com a chegada da inteligência artificial. É uma questão que está em aberto, porque está acontecendo agora, enquanto discutimos isso. Essa nova revolução tecnológica não trouxe apenas um instrumento mais poderoso – embora muitos abordem apenas assim – mas sim um novo “sujeito” para essa relação. Enfim, a máquina poderá fazer o trabalho característico do humano; não mais um esforço maquínico sob supervisão, ou trabalho de força animal, mas assumir o lado caracteristicamente criativo e intuitivo do nosso pensamento. E esse novo sujeito da IA tem uma autonomia que não é abstrata, não está num espaço virtual; essa autonomia tem dono, interesse e controle que, até o momento, só tem um nome – o grande capital. Podemos acompanhar o debate contemporâneo, num novo ramo da filosofia da ciência, que se dedica à técnica. E é nesse ponto que ponho em questão a antiga divisão dentro da prática médica entre techné e poiesis.
O que me parece é que a IA caminha para ampliar seu potencial de atuação na medicina, saindo apenas do lidar com o acúmulo de dados e conhecimento (techné) e assumindo as decisões que necessitam da reflexão criativa (poiesis). Paralelamente a isso, os médicos parecem fazer o caminho contrário: sujeitos à regulação e subordinação cada vez maior das metas da gestão clínico-financeira (vide a difusão das premissas da Medicina Baseada em Valor), estão restringindo sua abordagem sobre o paciente aos limites do que pode ser traduzido em dados. Isso é fundamental para o controle do capital financeiro. No entanto, isso vai moldar a forma de pensar e agir do médico na relação de seu trabalho com essa nova tecnologia; é o que Bernard Stiegler nos expôs com o conceito de epifilogênese. Estamos nos transformando; e esse novo modelo de médico será totalmente superável pela IA.
Você tem argumentado que, como consequência, o SUS precisa entrar na disputa pelas novas tecnologias – em especial, agora, a Medicina de Dados e a Inteligência Artificial. Que isso pode aportar à Saúde Pública? E o que a ameça, se ela fechar os olhos para as mudanças?
A Medicina de Dados é a leitura da medicina contemporânea, que muda seu núcleo epistemológico, por mais de um século fundamentado na anatomia patológica, para os dados. Como exemplo, posso dizer que agora olharemos para curvas de tendências, probabilidades e riscos – tudo baseado em dados – de um paciente ou grupo de pacientes e tomaremos decisões e intervenções terapêuticas, sem haver um substrato antomopatológico que corresponda ou as justifique. E isso se estende para além da medicina, em toda a inserção social da nossa vida. Já sabemos da datificação da sociedade, das concepções de capitalismo de vigilância e capitalismo de plataforma etc. Não somente o SUS, mas o tratamento dos dados sendo considerados como o novo petróleo nos impõe a necessidade urgente de se descolar do domínio das grandes plataformas das Big-Techs. O mercado privado de saúde do país tem imenso interesse em trabalhar com esses dados, não apenas para gestão de risco de planos de seguro privado, mas pela possibilidade de venda de serviços de assistência aos programas de APS com modelos de plataforma e machine-learn. Um mercado de mais de 150 milhões de habitantes, com financiamento do Estado, para a venda e transação de dados de saúde como commodities.
Parte da aposta do ELA-IA numa parceria com a China apoia-se no sucesso deste país ao empregar a inteligência artificial como apoio às políticas de combate à pobreza absoluta. Quais as bases desta experiência, como ela se desenvolveu na prática e o que alcançou?
A China projetou há algumas décadas um programa de desenvolvimento econômico, focando em ações contínuas contra a pobreza. Para alcançar resultados sólidos e sustentados foi fundamental a governança do investimento privado pelo Estado, mas com o interesse público sendo de fato o orientador do planejamento estratégico. E o governo chinês entendeu precocemente que as políticas públicas poderiam funcionar como um motor importante de desenvolvimento de sua infraestrutura digital e um ótimo terreno para inovações tecnológicas. As políticas chinesas de erradicação da pobreza extrema caminharam totalmente neste sentido e, em 2020, atingiram a meta de seu 13º Plano Quinquenal (2016-2020). A concepção da Governança Baseada em Dados [Data-based Governance], com o uso de tecnologias digitais como o Big Data, por exemplo, foi o que possibilitou a construção de grandes bancos de dados para, através de indicadores territorializados e administração descentralizada, identificar as famílias-alvo e suas necessidades específicas, permitindo então adaptar as políticas públicas a cada território e os programas de assistência a cada perfil de família. E tudo isso dependeu da construção de datas centers, digitalização dos dados, integração digital de departamentos e instituições, a construção de uma plataforma nacional de compartilhamento de informações, desenvolvimento de novas soluções digitais em big data, inteligência artificial etc. Em suma, dependeu do desenvolvimento de um robusto ecossistema digital e sua infraestrutura. Dito em outras palavras, a responsabilidade com o combate a fome, a pobreza e a desigualdade tornou-se motor de desenvolvimento nacional.
Os impactos da Inteligência Artificial estão se tornando um tema corrente, que extrapolou os ambientes acadêmicos e é debatido por parcelas cada vez mais amplas da população. Você também se tornou um estudioso dos princípios éticos e políticos adotados pelos chineses em relação à IA. Quais são eles? Por que podem ser importantes para um país com o Brasil?
Um dos maiores problemas da questão chinesa é se fazer observações críticas ao modelo de governança social pelo Estado, que utiliza a IA nos sistemas de vigilância e controle do comportamento social, sem considerar que estamos falando da China. Uma nação milenar, que precisa ser compreendida em termos da cultura, ideologia e opinião pública do próprio país. Uma ética de tradição confuciana, mais voltada à responsabilidade social e às relações comunitárias, sem a herança individualista do iluminismo ocidental. O trunfo foi ver esta nação retirar 600 milhões de cidadãos da linha da pobreza em três décadas; o ônus é acomodar esse contingente de habitantes em um novo modelo de assistência sanitária, que ainda integre e supere a também milenar medicina chinesa em plena transformação tecnológica. Curiosamente, os estranhamos mais do que o modelo das práticas liberais dos EUA; que muitas vezes copiamos e que perpetuam iniquidades imensas, onde a oferta de serviços na lógica de mercado torra a maior fatia do maior PIB do mundo, e tem conduzido aos resultados coletivos mais medíocres da OCDE. E somente quem não conhece, subestima a vigilância e o controle que estão inseridos no domínio das grandes plataformas das Big Techs ocidentais; algo que já vem sendo tratado como colonialismo de dados. Ou seja, o Brasil precisa aprender muito nesse campo e encontrar o seu caminho.
Você tem falado em Reforma Sanitária Digital. O que isso significa, em termos de homenagem a um movimento que marcou a Saúde Pública brasileira e foi essencial às lutas pela democratização? De que forma é preciso atualizá-lo?
A Reforma Sanitária nasce, nas últimas décadas do século XX, almejando alcançar as mudanças sociais que não foram possíveis em tentativas revolucionárias frustras de décadas anteriores. Não foi por acaso que os militantes que embarcaram nesse projeto, ainda no governo militar, usaram o termo reforma. Curiosamente, ainda hoje evitamos falar que necessitamos de uma revolução sanitária e social – embora desejemos – mas não há pudor algum em falar de “revolução digital”. Ora, é exatamente essa potência que temos de trazer para nosso pensamento sobre a reforma sanitária hoje. Então vamos continuar na briga política voltada à gestão e sustentação financeira do SUS? Essa é a meta que nos resta hoje? Ou vamos buscar na Revolução Digital a potência de uma Reforma Sanitária que recupere as metas amplas de mudanças sociais que eram as bandeiras de sua fundação? A Reforma Sanitária Digital pode ser a revolução social de fato se conseguir projetar os programas sanitários direcionados para as questões mais fundamentais da maioria da população.
Como você imagina, concretamente, uma parceria entre Brasil e China para o uso de novas tecnologias, medicina de dados e em especial da inteligência artificial na Saúde?
Nós debatemos um modelo de parceria estratégica onde devemos, antes de tudo, reconhecer que estamos saindo com muito atraso no domínio e desenvolvimento dessas tecnologias. Logo, penso que teremos muito a ganhar; e a nossa contrapartida será das experiências relacionadas à força de nossa política de saúde, desenvolvida em torno da universalidade e integralidade. Não sei qual tamanho essa força-tarefa poderá resultar, isso vai depender do interesse real de desenvolver um projeto de vulto nacional; mas imaginamos, por exemplo, a criação de uma Câmara Brasil-China de Governança de Dados em Saúde. Então traçamos, como prioridades, três pontos chaves que nos parecem promissores na experiência chinesa para organização do nosso programa baseado em IA, e que estão de acordo com as recomendações da OPAS/OMS para a transformação dos sistemas de saúde na AL: primeiro, um sistema de governança baseada em dados, IA e Big-Data, que organize e lidere a transformação da saúde digital; isso possibilitará o desenvolvimento de um ecossistema digital público e soberano com participação da sociedade; e, por fim, algo muito importante na experiência chinesa – a concepção de uma forte governança estatal sobre o investimento privado em saúde.
Vocês falam em intercâmbio e parceria. De que forma a experiência brasileira na construção do que é hoje o maior sistema de saúde pública do mundo, poderia ensinar algo à China?
É muito interessante e estimulante pensar nessas duas grandes realidades, com territórios e características populacionais tão distintas, trocando experiências que tenham como finalidade o bem comum, e a transformação social; e não apenas com a visão de estímulo ao mercado para o desenvolvimento de produtos e startups. O sistema de saúde chinês é fragmentado e não é universal, mas há programas com participação do Estado que dão cobertura a mais de 300 milhões de habitantes, o que por si só já dá a dimensão da complexidade que a IA é capaz de trabalhar e organizar. Como vimos em entrevista recente com nosso grupo da ELA-IA, o Brasil dispõe de um imenso banco de dados populacionais e na área de saúde e um dos maiores prontuários eletrônicos do mundo, mas ainda não conseguimos utilizar essa riqueza de informação para gerar políticas públicas.
Ao ser um dos fundadores do ELA-IA, você parece estar iniciando uma luta de longo prazo. Como vê as perspectivas para a inteligência artificial num Brasil que precisa se reinventar e num mundo em crise civilizatória?
Particularmente, penso que foi fundamental a OPAS/OMS abrir o documento de princípios para a transformação digital dos sistemas de saúde da AL, conclamando o poder público dos Estados a garantir a defesa dos Direitos Humanos e promover a real materialização desses direitos. Pois este me parece o campo onde se travará a luta ética e política com a chegada da inteligência artificial e é o meu objeto de estudo atualmente. A tão celebrada autonomia das tecnologias de machine-learn está nos trazendo para uma fronteira onde estará em jogo a própria definição do que é o humano e o que lhe cabe de direito. Eu vejo a crise civilizatória a que você se refere como uma confluência de quatro grandes balizas: o rearranjo geopolítico com o fim do colonialismo de império único; o estágio atual do capitalismo a galope do neoliberalismo; a inexorável crise ambiental do antropoceno e a revolução da informação, encabeçada pela Inteligência Artificial (IA). O Brasil está saindo da escuridão e retornando ao século XXI para encarar essa crise, e a abordagem dos Direitos Humanos me parece a mais poderosa e necessária para garantir os benefícios dessa revolução tecnológica sem borrar ou ferir os limites que nos separam daquilo que não somos nós.