26 Outubro 2022
“Nas últimas décadas do século XX, vimos dois avanços marcarem a medicina e as práticas sanitárias: a crescente incorporação tecnológica e, em aliança a isso, a saúde como participe decisiva das economias nacionais”, escrevem Luiz Vianna Sobrinho, médico, doutor em Bioética e Saúde Coletiva pela Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, e Leandro Modolo, sociólogo da saúde, doutorando em Saúde Coletiva pela Unicamp, em artigo publicado por OutraSaúde, 25-10-2022.
“Tudo que é sólido se desmancha…” em dados.
“O que está em jogo aqui é um condicionamento do presente pelo futuro, pelo que ainda não é.”
G. Simondon
Comecemos recontando uma história, mas de uma outra forma que há 10 anos [1] – pois o futuro parece estar sempre a nossa espreita.
‘Uma bela e jovem Rainha foi gravemente ferida e encontra-se sobre risco de perder seu bebê e até mesmo sua própria vida. Resgatada de uma batalha, é rapidamente conduzida para uma sala branca e envidraçada, de aspecto asséptico e estética futurista – embora diga o script da ficção, tudo se passou há milhares de séculos atrás, “numa galáxia distante”. Nesta sala, em uma maca suspensa no ar; seu corpo, todo envolvido num camisolão branco, é percorrido por um aparelho em forma de anel que emite um feixe luminoso, ‘scaneando’ toda a sua extensão, dos pés até a cabeça. Assim, nesse momento, estamos assistindo a uma cena em um hospital. Mas em uma concepção paradigmática de nosso século e de nossa galáxia. Seus entes próximos e queridos observam, do lado de fora da sala estéril, através de um visor de vidro, o desenrolar da propedêutica na mesma expectativa de todos nós: receber um diagnóstico da situação de saúde da Rainha. Uma cena típica em todos os filmes de nossa época, onde há atendimento médico de emergência. Ao final do exame, a porta de vidro se abre e de lá de dentro se aproxima um ‘ser’ levitando, com a aparência aproximada de um liquidificador. Este acompanhava todo o procedimento no interior da sala e vindo em direção aos familiares, deixa nestes a mesma expectativa que tem todos os que estão assistindo ao filme: algo será dito (seja um diagnóstico ou prognóstico) que será indubitável. Isso é o que sempre se espera da medicina. E ali, naquele ser, está a/o médica/o da cena.
O pequeno ser se aproxima e dá um veredito.
Pronto. Foi dado o diagnóstico da lesão e, logo a seguir, a sua gravidade e o potencial de recuperação. O ser não titubeia ao falar, sua fala é de certeza absoluta. Os familiares da jovem rainha não ficam com dúvida, nem tampouco todos nós que assistimos o desenrolar da novela ficcional.
Mesmo que não tenhamos visto mais nada do filme em que a cena se encontra, há algo nela que nos interpela a uma urgente reflexão. Tudo ali representa um “perfeito” hospital, tão preciso, tão asséptico e tão cientificamente parametrizado que provavelmente a maioria de nós ficamos satisfeitos e sentimo-nos confiantes e seguros de que nele está presente tudo que um ato de cuidado médico necessita para sua exatidão. Não é exatamente isso o que hoje já se espera de uma médica/o e da medicina em momentos de aflição junto a um familiar ou ente querido? A precisão técnica de um scanner na leitura de nossa estrutura física; o processamento de informações em um cérebro digital, onde estão todas as respostas possíveis. A certeza da fala. A certeza do diagnóstico. A cura indubitável. Não é exatamente o que sempre buscamos nós mesmos nesses momentos. Não são estes os nossos interesses e desejos? E não será isso que a medicina hoje nos faz desejar de sua própria atuação? E não é para isso que aprimoramos métodos de investigação por imagens, que rastreamos composições químicas, que descemos às profundezas microscópicas das moléculas de nossos genes e outras proteínas? Na hora da nossa dor, do nosso medo, do enfrentamento com a morte, não buscamos a certeza das equações?
Se assim for, qual é o sentimento quando nos vemos experimentar o cuidado com uma médica/o robô, numa sala totalmente (e friamente) automatizada? Será essa a realização da precisão científica, da certeza matemática, da ausência de falhas, da total assepsia, justamente o que esperamos para o cuidado e a cura? Ou não, em verdade, quando nos transferimos pela imaginação a uma cena de cuidado e cura ideal, nosso setting de filmagem tem nos cincos sentidos que animam os afetos da confiança, segurança e esperança um papel central? O olhar, o toque, o respiro e a fala de quem nos acolhe é decisiva? Ao fim, talvez a interpelação central da cena da Rainha adoecida seja oriunda do medo ou esperança dos possíveis futuros convocados pelo médico-robô e daí a pergunta que subjaz o sentimento tocado na verdade seja “Por que não?”.
Essas perguntas nos levam a inúmeras questões que nos coloca a experiência do cuidado médico como um problema a refletir com o paciente – e não (apenas) como uma solução. E um conjunto delas se refere ao atual cenário da “transformação digital” da saúde, em particular, da medicina.
Michel Foucault tratou do nascimento do hospital moderno e, à beira do leito, do nascimento “não [d]a medicina empírica, […] mas o valor, na medicina, da experiência como tal” [2]. A experiência é o ponto diferencial da formação e do olhar clínico. Aos olhos de jovens médica/os, observar os conhecidos e vividos profissionais era, além de um exemplo de destreza do tirocínio propedêutico, olhar para formas de saber acumulados na e pela experiência. Num passado recente não era incomum o comentário: “O Dr. Fulano tem mais de 20 ou 30 mil fichas de pacientes em seu consultório!”, sentença que anunciava o valor da experiência como conhecimento confiável e seguro no encontro médico-paciente. Tratava-se, portanto, de uma forma de saber e agir que não podia prescindir da experiência individual produzida nestes encontros, pois eram justamente as histórias experienciadas entre erros e acertos com o paciente que o conferia valor. Ademais, a experiência individual acumulada e transmitida era o cerne da autonomia da decisão. Como diria a Jorge L. Bondía “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca.” [3]
Nas últimas décadas do século XX, contudo, vimos dois avanços marcarem a medicina e as práticas sanitárias: a crescente incorporação tecnológica e, em aliança a isso, a saúde como participe decisiva das economias nacionais. Se por um lado o poderio das tecnologias na área médica respondeu às expectativas com ganhos em eficácia terapêutica nunca vista; do outro, foi justamente o uso desse poderio ao sabor do mercado que o tornou um dos maiores problemas sanitários nos países desenvolvidos – o caso estadunidense é paradigmático.
Nesse processo todo, contudo, o encontro médico-paciente não foi modificado exatamente pela existência deste ou daquele “objeto técnico”. O uso da ressonância magnética nuclear não diferiu em quase nada do uso do estetoscópio no encontro clínico. No entanto, o mesmo não pode ser dito da racionalidade que passou a governar os saberes e fazeres dos médico/as. O “gerencialismo” [4], conformado pela abstrata evidência epidemiológica, mudou mais o pensar e fazer médico e sua autonomia do que os três séculos de descobertas de novos objetos técnicos que nos separam da medicina medieval.
No período de restruturação do mercado privado de saúde no país, a partir da década de 1990, assistimos à chegada da Medicina Baseada em Evidência (MBE) paralelamente à importação de mecanismos regulatórios de custo – o managed care. As estruturas de gestão passaram a adotar o referencial teórico da MBE como suporte de legitimação de mecanismos regulatórios dos custos com interferência direta na decisão do caso clínico. Dentro do contexto da fundamentação científica para prática compreendeu-se que estava havendo um aperfeiçoamento, ou maior aproximação das evidências. No bojo da atuação, esteve a consequente orientação de tornar o juízo médico/a uma forma menos válida de saber e fazer – uma experiência menor.
A gestão corporativa, trazendo para as metas contábeis aquilo que fora antes sedimentado como princípio [5] – como “valor” –, assume então o controle, com chancela científica e moral, da condução das decisões e do próprio ethos médico. A gestão corporativa embaralha-se à clínica; e num processo de simbiose os valores que passam a orientar na prática – e em última instância – o saber e fazer se submete ao caráter consequencialista que compõem as metas clínico-financeiras. Nesse ponto, para que tudo se adeque à liquidez “realista” do gerencialismo, torna-se fundamental que adotemos então uma única matriz básica para inteligir e operar a dinâmica dos processos clínico-financeiro em alta performance. E esse ponto em comum para a gestão financeira e a nova medicina subordinada à lógica do valor é o dado. São os dados, digitalmente objetivos e evidentes, que pode então transitar, sem perdas ou impedimentos, diretamente das raias da gestão corporativa até os processos correlatos na clínica.
Com efeito, confirmando essa transformação, Eric Topol, notável professor de cardiologia e consultor em saúde, já em 2012 nos dava o vaticínio: “A medicina está prestes a passar pelo seu maior abalo na história. […] É porque, pela primeira vez na história, podemos digitalizar humanos”.
No centro do esquema apresentado por Topol está a objetividade total do modelo em que poderá ser enquadrado o processo saúde-doença com a chegada da transformação digital. Reforçando as suas críticas de longa data à configuração “maximamente imprecisa” da MBE em busca de um modelo individualizado com precisão genética; Topol apresenta o que seria a “disrupção” para as práticas médicas rumo a futuro: a imensa e exponencial capacidade de armazenamento e processamento de dados computacionais; a universalização de conexão da população global através da internet e das redes sociais; e a onipresença de smartphones conectados em velocidade de banda larga. Tudo isso permitiria a coleta e leitura de dados a partir de biossensores remotos; o sequenciamento genético individual cada vez mais barato; o armazenamento e processamento de imagens diagnósticas e um poderoso sistema de troca de informações. Ao fim, com a transformação digital teremos uma cobertura ampla que, segundo o autor, estará toda à disposição em smartphones e cia, dando condições concretas a mais nova modalidade de encontro de alta precisão entre médico e paciente.
A digitalização do humano preconizada por Topol, contudo, indica também outros possíveis. Se por um lado, diversos trabalhos já dispõem de resultados comprovando a acurácia das tecnologias digitais para o diagnóstico e acompanhamento de doenças, através por exemplo da análise de bancos de imagens diagnósticas etc. Por outro, a medicina de dados caminha para se inclinar [6] sobre uma representação digital da dor na forma de dados digitais, e o paciente em sofrimento como uma trama complexo de “valores” digitais sobre os quais poderemos ter tanto um risco quanto uma probabilidade, ou uma tendência, ou, ainda, uma função.
Sob a sombra bioestatística da MBE já percebíamos a possibilidade de se extinguir de vez o aspecto subjetivo da clínica, transformando em parâmetros objetivos todo o encontro clínico – o ato médico tornava-se o operar protocolos. Hoje, a transformação digital da medicina indica um novo e mais alto vôo: o que dará unidade (transparente) entre mundo vivido na experiência e o modelo explicativo será menos a anatomopatologia e mais (muito mais) os dados digitais. Desse modo, chegaremos ao ponto em que pensar e fazer medicina será pensar e trabalhar dados científicos e financeiros. E com dados todos podem lidar: mentes, grupos, processos de trabalhos, gestores, mercados e programas automatizados.
A medicina de dados caminha para tornar obsoleto o modelo epistêmico da anatomia-patológica, tal como o acesso e o processamento desses dados digitais farão da experiência individual desenvolvida pelo e para o juízo clínico algo descartável. Ao fim, quando a manipulação de dados, por um sistema autômato de IA, chegar ao diagnóstico e às decisões necessárias para cada caso, eliminaremos um sujeito do encontro – a/o médica/o. E, consequentemente, quando o tratamento dos dados do outro sujeito do encontro, o paciente, pelo algoritmo de machine learning se consolidar, pouco restará que não seja objeto – mesmo as características psíquicas, comportamentais ou sociais serão dados digitalizados, e o sofrimento serão bits descorporificados.
Voltando a cena do médico-liquidificador, o futuro já nos trouxe a ficção para o real. As tramas em que transformação digital envolveu a vida contemporânea já nos apresentaram os variados robôs, cabines e chatbots em funcionamento no atendimento médico ou ‘entrega de serviços de saúde’ [7]. Este serviço de entrega tem forte apelo e embasamento científico, digamos ser um modelo epistemologicamente potente: algoritmos de deep learn que processam mais de 20 milhões de artigos científicos atualizados, inclusive cruzando e balizando seus resultados nas métricas da MBE. Assim, nosso fictício encontro médico-liquidificador-paciente acaba de se tornar real e o Xiaoyi enfim é aprovado na prova escrita para certificação profissional na China… em sua segunda tentativa [8].
Nesse ponto é que poderemos perceber o que significa a ausência da medicina clínica no que se apresenta como a medicina de dados. Um modelo de medicina que permanecia por quase dois séculos, parece chegar ao seu ocaso. E é preciso observá-la e pensar o que faremos e seremos nós, humanos. Nesse momento de imprevisão sobre o que será da condição humana, a ciência parece nos apresentar com intenso brilho que “tudo que é sólido se desmancha… em dados”.
1. Descrição da cena do filme Stars Wars III – Revenge of the Sith. Parcialmente comentada no livro Medicina financeira, a ética estilhaçada (Vianna Sobrinho, L. Garamond, 2013)
2. M. Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
3. Notas sobre a experiência e o saber de experiência, Revista Brasileira de Educação, Campinas, nº 19, 2002.
4. Para mais, ver: Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo: Ideias & Letras, 2007.
5. Fulford, K.M.V., Medicine and moral reasoning. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
6. Creative Destruction of Medicine: How the Digital Revolution will Create Better Health Care. New York: Basic Books, 2012.
7. Lembremos que etimologicamente a palavra clínica, do grego antigo klinike, designa uma atividade que se exerce junto ao paciente acamado, como um ato de inclinar para observar.
8. Ao estilo Amazon, da Alexa, autorizada pela agência norte-americana para prestação de serviços de saúde (FDA).
9. Disponível aqui.
Ciclo de Estudos sobre Saúde Digital
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Um breve ensaio sobre a medicina em devir - Instituto Humanitas Unisinos - IHU