15 Setembro 2007
“A medicina baseada em evidências trouxe, certamente, importantes contribuições. Seu problema se deve à sua indiscriminada aplicação”, relata a doutora em Saúde Coletiva Liana Bastos em entrevista à IHU On-Line. Dando continuidade ao tema da edição 233 da Revista IHU On-Line, Liana fala de seu livro “Corpo e subjetividade na medicina” - o qual já foi tema de uma entrevista sua sítio do IHU -, do movimento em relação à Saúde Coletiva e da formação médica no Brasil hoje. Para ela, “na maioria de nossas escolas médicas, o estudante de medicina é extremamente exigido a adquirir conhecimentos. À graduação de seis anos se somam as residências de três, quatro e cinco anos. Durante todo este período, o estudante é objetivamente informado, mas educação não é apenas informação. Formação se faz privilegiando o sujeito”. A entrevista foi realizada por e-mail.
Liana Albernaz de Melo Bastos formou-se em Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro e fez sua residência médica na Universidade de Brasília. É mestre em Psiquiatria e Saúde Mental, pela UFRJ, e doutora em Saúde Coletiva, pela UERJ. Atualmente, atua como professora da UFRJ.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em seu livro “Corpo e subjetividade na medicina”, você faz uma crítica à abordagem da medicina baseada em evidências, sobretudo à sua dificuldade de trabalhar o que é contingencial. E, ainda, reforça a proposta da medicina baseada em narrativa. Qual é a singularidade deste novo movimento?
Liana Bastos - A medicina baseada em evidências trouxe, certamente, importantes contribuições. Seu problema se deve à sua indiscriminada aplicação. Todo e qualquer paciente é submetido a um protocolo que desconsidera a singularidade de seu caso. O próprio iniciador do movimento da medicina baseada em evidências, Sackett (1), escreveu um artigo em que pede que seu nome seja retirado da abusiva “sackettização” que vem se fazendo. A medicina baseada em narrativa surgiu como uma revalorização da fala do paciente para permitir uma compreensão da complexidade do adoecer. Assim, médico e paciente constroem juntos os sentidos que o adoecimento tem na vida de cada um. O médico deixa de ser um mero aplicador mecanicista do saber médico, possibilitando uma maior eficácia do ato médico.
IHU On-Line - Que traços distinguem os dois paradigmas em curso na medicina ocidental: o modelo hipocrático-galênico e o modelo da biomedicina? Qual é a perspectiva que você considera mais pertinente para responder aos desafios da atualidade?
Liana Bastos - Vivemos numa época de surpreendente desenvolvimento tecnológico. Não podemos e não devemos ignorá-lo. As conquistas conseguidas pela biomedicina são relevantes. Não se trata de retomarmos antigos paradigmas, pois sua superação se deu num dado contexto histórico-social. Minha proposta é que a medicina opere, paradoxalmente, com dois paradigmas: o que atende ao corpo-organismo e o que considera o corpo-sujeito. O primeiro se aplica ao conhecimento médico e o segundo ao encontro clínico. É, sem dúvida, um desafio trabalhar com paradoxos. Psicanalistas que operam com o conceito de objeto transicional – que, concomitantemente, é e não é o seio materno - sabem da riqueza que o paradoxo propicia.
A medicina que aplica conhecimento de tantas outras áreas, como a biologia, a física quântica, a bioquímica etc. muito teria a lucrar com a interlocução com a psicanálise.
IHU On-Line - É correto afirmar que o modelo hegemônico na medicina ocidental não está devidamente instrumentalizado para lidar com o sofrimento e o adoecer?
Liana Bastos - Certamente. Isto se evidencia no clima de profunda insatisfação e mal-estar do qual médicos e pacientes se queixam. Os médicos se queixam da baixa adesão dos pacientes aos tratamentos preconizados, e os pacientes da “frieza” e “impessoalidade” dos médicos. O modelo hegemônico da medicina ao desconsiderar as subjetividades não alcança a eficácia que seu amplo conhecimento poderia gerar. A busca crescente por tratamentos alternativos é sintomática. A meu ver, as dificuldades residem no encontro clínico que o modelo hegemônico atual não contempla. Assim, problemas clínicos simples, mas de grande importância epidemiológica, como a hipertensão arterial, por exemplo, têm cerca de 85% de abandono de tratamento.
IHU On-Line - Como se dá o processo de construção do mundo médico na formação dos profissionais nesta área hoje no Brasil? Você tem destacado que a busca de uma “pureza” e “objetividade” na formação médica tem dificultado a abertura para uma dimensão mais humanística. Como isto se dá em concreto?
Liana Bastos - O problema da formação médica não é simples e há inúmeras variáveis em jogo, sobretudo no Brasil: das pressões do mercado à desqualificação do trabalho médico. O recorte que fiz, sem ignorar outras questões, foi o do paradigma hegemônico da biomedicina, que não considera as subjetividades, tanto a do paciente como as do médico e do estudante.
Na maioria de nossas escolas médicas, o estudante de medicina é extremamente exigido a adquirir conhecimentos. À graduação de seis anos se somam as residências de três, quatro e cinco anos. Durante todo este período, o estudante é objetivamente informado, mas educação não é apenas informação. Formação se faz privilegiando o sujeito. Quando o modelo pedagógico não valoriza esta dimensão, o estudante se forma valendo-se de seus próprios recursos, reproduzindo na sua prática a desvalorização que ele próprio, como sujeito, vive. Lidar com o sofrimento e a morte - tarefa precípua do médico - demanda uma grande capacidade emocional. Uma pesquisa realizada por nós com estudantes de medicina do 1º semestre que iniciavam a prática anatômica revelou o profundo impacto que o cadáver desperta. Este impacto em nenhum momento da formação é considerado. A partir dele, o estudante começa a desenvolver defesas que, na maioria das vezes, termina por se configurar como frieza e impessoalidade. A dimensão mais humanística da medicina deveria implicar numa dimensão mais humanística de todos aqueles presentes no cenário médico, a começar pela formação médica.
Notas:
(1) David Sackett é um dos criadores do movimento da medicina baseada em evidências (MBE). Publicou no British Medical Journal um texto no qual renunciava a escrever, ministrar cursos e atuar como referee em temas relacionados a isto. Esta atitude é justificada por sua frustração com o que considerou efeitos danosos de um alegado excesso de experts no referido campo. Ela foi a matéria-prima para abordar aspectos ligados à definição e escopo das propostas da BEM, assim como correspondentes críticas, enfatizando as estratégias retóricas empregadas por tal movimento.
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Saúde Coletiva: contribuições e debates. Entrevista com Liana Bastos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU