25 Abril 2007
O desconforto, causado pela desumanização dos atendimentos de saúde, vivido pela medicina contemporânea, é o impasse central do livro “Corpo e subjetividade na medicina” (Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 2006), de Liana Albernaz de Melo Bastos. Na obra, Liana enfrenta esse problema discutindo a prática da medicina como ciência e como arte. As origens desta prática estão na objetividade do conhecimento e na subjetividade do encontro clínico, ou seja, do momento de encontro entre o paciente e o médico. A IHU On-Line entrevistou a autora da obra, Liana, por e-mail.
“Corpo e subjetividade na medicina” nasceu da pesquisa que resultou na tese de doutorado, realizado na UERJ, em 2002. Nele, Liana investigou a tensão entre a prática clínica e o conhecimento biotecnológico da medicina ocidental contemporânea, resultando, então, neste livro lançado em 2006. Graduada em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, fez sua residência médica na Universidade de Brasília. Em 1991, concluiu seu mestrado em Psiquiatria e Saúde Mental, na UFRJ, onde trabalhou o tema “O ego e o corpo em Freud”. Liana também é autora de “Eu-corpando: o ego e o corpo em Freud” (São Paulo, Ed. Escuta, 1998).
Atualmente, Liana é professora de psicologia médica do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além disso, é membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais foram os impasses e paradoxos que você encontrou durante a pesquisa para escrever "Corpo e subjetividade na medicina"?
Liana Albernaz de Melo Bastos - Ao longo da minha experiência profissional como médica, psicanalista e professora de medicina, fui identificando inúmeras dificuldades na prática, a exemplo de clínica geradoras de sofrimentos e insatisfações tanto para pacientes quanto para médicos. Ainda que muitas razões estejam presentes nestas dificuldades, recortei, nesta pesquisa, as categorias de corpo e subjetividade por considerá-las centrais na medicina. Assim, no encontro médico-paciente, surgem os impasses: pacientes que se queixam de que os médicos são frios, distantes, “desumanizados”, e médicos que reclamam da “baixa adesão” dos pacientes aos tratamentos. Por outro lado, o grande paradoxo é que a medicina atual dispõe de um incrível arsenal de recursos diagnósticos e terapêuticos e, apesar disso, não apresenta, freqüentemente, os resultados que tal avanço poderia propiciar aos pacientes.
IHU On-Line - Como a medicina pode ser encarada como arte? A arte produzida a partir da medicina é ética?
Liana Albernaz de Melo Bastos - A “arte médica” está na possibilidade de o médico lidar com cada paciente considerando sua singularidade e valendo-se de sua sensibilidade e intuição na sua prática para aplicar o conhecimento médico. Significa que, no encontro médico-paciente, a consideração dos aspectos emocionais são fundamentais para o êxito do atendimento. Desse modo, a prática médica se humaniza e, portanto, se torna ética.
IHU On-Line - A arte produzida por um médico é feito para as multidões ou ela é individualista?
Liana Albernaz de Melo Bastos - Certamente que certas práticas médicas, como a epidemiológica (1), que visa a um universo amplo, não podem ser regidas pela singularidade de cada caso. Uma campanha de vacinação, por exemplo, não é da mesma ordem que uma consulta para controle da hipertensão arterial de um dado paciente. A arte médica se manifesta no encontro singular de cada paciente com um dado médico, isto é, ela está presente em cada consulta. O que diferencia a arte médica daquela feita por um arquiteto, por exemplo, é que o produto deste último é um projeto, tem uma materialidade, e o produto da arte médica é uma melhor adesão e evolução clínica do paciente.
IHU On-Line - Quando o homem em formação médica passa a se desumanizar? Que recursos podem propiciar uma mudança nos futuros médicos?
Liana Albernaz de Melo Bastos - A “desumanização” a que a formação médica conduz advém da matriz epistemológica (2) da medicina que não considera a subjetividade. A matriz do conhecimento médico é objetiva, determinística tratando do universal, isto é, da doença e não dos doentes. Mas não é apenas o paciente que é desumanizado. O estudante de medicina também o é ao longo de sua formação. Ele não é considerado em seus aspectos emocionais. Todas as angústias e aflições que o sofrimento humano e a morte despertam – e todos nós que fizemos medicina sabemos bem disso - não são valorizados nos currículos universitários. Deste modo, o estudante, para não sofrer, vale-se dos recursos defensivos de que dispõe e, muitas vezes, estas defesas - as tais “frieza e distância” - não são adequadas, não protegem o estudante das agruras da formação médica, nem o qualificam como um bom médico. Currículos que, de modo integrado com as várias disciplinas, permitissem a discussão e a reflexão por parte dos estudantes de suas emoções, os ajudariam a compreender o humano em si e nos outros e, deste modo, a serem melhores médicos.
IHU On-Line - Quando o médico deixa de considerar seu paciente como apenas um corpo, ele pode vê-lo de que formas?
Liana Albernaz de Melo Bastos - Um médico nunca pode esquecer o corpo do paciente. É nele que o paciente situa seu mal-estar e incômodo. O problema é que a medicina trata apenas do corpo anátomo-fisiológico, isto é, do corpo-maquínico. Em algumas situações específicas, por exemplo, num ato cirúrgico, esta abordagem do corpo é suficiente. Contudo, mesmo um paciente cirúrgico no pré e no pós-operatório carrega em seu corpo outras dimensões, além da anatômica e da fisiológica, que devem ser consideradas.
IHU On-Line - Como pode a medicina, evoluindo em termos de recursos tecnológicos e farmacêuticos, estar passando por tamanha tensão, como você explicita no livro? De onde vem essa tensão?
Liana Albernaz de Melo Bastos - A medicina é, como qualquer atividade humana, fruto de seu tempo. Nosso tempo é o de um avanço tecnológico surpreendente, mas, também, de grande esgarçamento e fragmentação sociais. Muitos valores, como a preocupação e cuidado com o outro, têm sido relegados a um plano secundário. O individualismo exacerbado e a busca de sucesso pessoal a despeito dos demais presidem nossa sociedade. Na medicina esta situação se expressa na tensão entre os muitos recursos tecnológicos e a dificuldade em cuidar do sofrimento humano. Não por acaso, as especialidades médicas que podem propiciar mais lucro e sucesso e menos envolvimento com os pacientes têm sido mais procuradas pelos jovens médicos. Não se pode culpá-los na medida em que eles, como tantos outros, apenas atendem a um apelo social. Assim, a discussão da medicina atual passa necessariamente por uma crítica social.
IHU On-Line - Você expõe que, muitas vezes, o paciente é visto apenas como um corpo, é reduzido a seu organismo. Que tipos de mudanças você propõe?
Liana Albernaz de Melo Bastos - Ao lado do corpo-máquina, o corpo-sujeito também se apresenta. Na relação médico-paciente estes dois corpos estão presentes. As mudanças nos currículos universitários podem contribuir para uma melhor formação médica ao valorizar ambos os corpos. Ao fazê-lo, a formação médica possibilitaria um atendimento humanizado.
IHU On-Line - Que tipos de impasses, a partir dos conceitos de corpo e subjetividade, você expõe?
Liana Albernaz de Melo Bastos - A medicina contemporânea ao considerar apenas o corpo como um organismo abole outras dimensões do corpo apagando o sujeito. Isto significa dizer que nossa subjetividade não está fora do corpo, somos todos sujeitos-encorpados. O médico, no encontro clínico, não pode esquecer que o corpo também é história, sexualidade, emoções. Os impasses surgem porque na consulta clínica o que se apresenta ao médico é um sujeito doente, doença esta que afeta, por certo, o corpo-organismo, mas cujas repercussões se dão no sujeito, na sua vida e nas suas relações.
IHU On-Line - Qual o impacto emocional do jovem estudante de medicina que se depara pela primeira vez com um cadáver?
Liana Albernaz de Melo Bastos - O estudante de medicina ao se deparar com o cadáver é apresentado à morte. Mesmo para o estudante que, por alguma razão, já tenha vivido esta experiência, a morte se reveste, no curso médico, de novas perspectivas: além do aprendizado fundamental da anatomia, o estudante de medicina aprende que ela fará parte integrante da sua vida profissional e que dele dependerá, em muitos momentos, a responsabilidade pela vida do paciente. Assim, para o estudante de medicina, a morte que o cadáver lhe apresenta tem um impacto maior. O cadáver é, de certo modo, o primeiro paciente do estudante e se constitui num ritual de iniciação à carreira médica (3).
Notas:
(1) Epidemiologia é uma ciência que estuda quantativamente a distribuição dos fenômenos de saúde/doença, e seus factores condicionantes, nas populações humanas. Alguns autores também observam que a epidemiologia permite ainda a avaliação da eficácia das intervenções realizadas no âmbito da saúde pública.
(2) Epistemologia, ou teoria do conhecimento, é um ramo da filosofia que trata dos problemas filosóficos relacionados à crença e ao conhecimento. Podemos dizer que a epistemologia se origina em Platão. Ele opõe a crença ou opinião ao conhecimento. A crença é um determinado ponto de vista subjetivo. O conhecimento é crença verdadeira e justificada. A teoria de Platão abrange o conhecimento teórico, o saber que. Tal tipo de conhecimento é o conjunto de todas aquelas informações que descrevem e explicam o mundo natural e social que nos rodeia. Este conhecimento consiste em descrever, explicar e predizer uma realidade, isto é, analisar o que ocorre, determinar por que ocorre dessa forma e utilizar estes conhecimentos para antecipar uma realidade futura. Há outro tipo de conhecimento, não abrangido pela teoria de Platão. Trata-se do conhecimento prático, o saber como. A epistemologia também estuda a evidência, isto é, os critérios de reconhecimento da verdade.
(3) A maioria dos alunos que recém entrarou no curso de medicina descobre-se frente ao um cadáver somente durante a disciplina de Anatomia. Esta ciência trata da descrição e estrutura dos organismos animais ou vegetais através de um exame meticuloso. Segundo uma pesquisa do médico André Vianna, do Hospital Universitário de Brasília, realizado com 81 estudantes da fase pré-clínica e 139 da fase clínica do curso de medicina, 52 médicos e 54 professores da Faculdade de Ciências da Saúde, antes de iniciar o curso médico 41,8% tiveram algum contato com cadáver. No entanto, 55,5% experimentaram algum grau de dificuldade para tratar do tema.
Nota: Cuidado e cuidador: os vários sentidos dessa relação é o tema do ciclo Cinema e Saúde Coletiva promovido pelo PPG de Saúde Coletiva em parceria com o IHU. Confira a programação nesta página.
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Corpo e subjetividade na medicina. Entrevista especial com Liana Albernaz de Melo Bastos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU