01 Março 2023
"O povo Xukuru-Kariri e todos os povos indígenas em luta pela retomada de seus territórios, com o apoio das forças vivas da sociedade, seguem construindo um domingo de ressurreição com justiça socioambiental e respeito à natureza, caminho necessário para frearmos as mudanças climáticas, impedirmos a 'queda do céu' (expressão do xamã Davi Copenawava) e os eventos climáticos extremos que cada vez estão se tornando mais frequentes e letais", escreve frei Gilvander Moreira.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em filosofia pela UFPR; bacharel em teologia pelo ITESP/SP; mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; professor de teologia bíblica no Serviço de Animação Bíblica – SAB, em Belo Horizonte.
Por volta das três horas da tarde, de 20 de fevereiro de 2022, guiados, em sonho, pelo Grande Espírito e todos os encantados, dezessete famílias (57 parentes) do povo indígena Xukuru-Kariri, oriundos de Alagoas, após peregrinarem e lutarem por território durante várias décadas, com apenas a roupa do corpo, mas com muita coragem, união, com a garra de um povo guerreiro e com a força de um sonho inabalável que dizia “aqui é o território sagrado que o Grande Espírito nos indica”, chegaram à fazenda Bruma, ao lado da Fazenda Flor da índia (onde tem uma estátua de uma índia de uns seis metros, com um bezerro no colo, ao lado da estrada asfaltada). O cacique Carlos Arapowana, o vice-cacique Pedro e o pajé Sr. Paulo disseram: “Aqui é a terra que o Grande Espírito nos mostrou. Estamos com sede de água, de terra, de natureza; e as crianças, também.” Ao lado de uma lagoa e de uma casa grande toda devastada, arrancharam e, passo a passo, foram construindo suas barracas de lona preta e estão se enraizando no território há mais de um ano.
Os Xukuru-Kariri ocuparam uma das 127 fazendas compradas pela mineradora Vale após o crime-tragédia, que iniciou-se dia 25 de janeiro de 2019, continua impune, se reproduzindo cotidianamente e se multiplicando. Por exemplo, em quatro anos e um mês aconteceram inúmeros suicídios em Brumadinho. O povo está adoecido e o consumo de ansiolíticos pela população aumentou em mais de 70% e muita gente – incluindo crianças – está com metais pesados circulando no sangue, por causa da contaminação das águas, da terra, do ar e dos alimentos, segundo pesquisa da Fiocruz.
A fazenda Bruma estava totalmente abandonada, ociosa e sem cumprir sua função social. A casa grande da sede da fazenda estava destelhada e com todas as portas e janelas arrancadas. Era lixo e entulho por todos os lados. Assim a Vale S/A tem feito em todas as fazendas compradas. Compra a fazenda, arranca o telhado, as portas e as janelas das casas e deixa tudo abandonado, em claro indício de que só lhe interessa o território para ampliar exploração minerária.
Dia 25 de fevereiro último (2023) aconteceu, das 9 às 16 horas, a celebração de um ano de luta pela conquista do território de 156 hectares, que segue sob disputa judicial. Um encontro festivo maravilhoso, inesquecível, com cerca de 500 pessoas, indígenas e lideranças da grande Rede de Apoio à Aldeia Arapowã Kakyá.
Em uma linda sinfonia, os parentes Xukuru-Kariri acolheram a todes cantando e dançando toré com cantos lindos, partilhando com todes um pouco da sua entusiasmante mística e espiritualidade, em cantos, tais como “a terra é nossa mãe, nós somos filhos dela ...”, “Somos povo Xukuru-Kariri, povo de tradição ...” ecoaram pela Aldeia. Teve apresentação do Bloco Carnaval Ambiental, de Casa Branca, em Brumadinho; Roda de Conversa com a palavra partilhada pelo cacique Carlos Arapowanã, o vice-cacique Pedro, o pagé Sr. Paulo, cacique Merong (do Povo Kamakã Mongoió) e outras lideranças de outros Povos Indígenas presentes; Muitas lideranças da Rede de Apoio também usaram o microfone para saudar o Povo Xukuru-Kariri e renovar compromisso com a causa justa e legítima da Retomada do Território. Teve almoço comunitário solidário para todes. Jogos indígenas, disputa de tiro de flecha etc. E muita convivência alegre e festiva.
Nos primeiros meses, o Povo Xukuru-Kariri enfrentou o bloqueio da entrada e saída da Retomada por uns quinze seguranças armados da Vale S/A. Não deixavam entrar nenhum automóvel e dificultavam ao máximo a entrada de pessoas da Rede de Apoio, ameaçando que iriam fazer B.O, chamar a Polícia Militar, alegando que ali era propriedade privada da Vale SbA e que ninguém poderia entrar. A Vale S/A chegou ao absurdo dos absurdos de jogar vários caminhões caçamba de terra em outra entrada que os parentes Xukuru-Kariri tinham feito em mutirão, com suor e muito trabalho, para acessar a estrada. Até que um dia, pleno 19 de abril de 2022, Dia dos Povos Indígenas, uma criança Xukuru-Kariri quase morrendo, precisando de inalação por problemas respiratórios, foi impedida de ser levada ao pronto socorro do SUS na cidade de Brumadinho. Tomado por ira santa, os guerreiros Xukuru-Kariri resolveram desbloquear na marra a entrada de acesso à comunidade, derrubando cercas e portão.
Neste primeiro ano de muita luta podemos enumerar várias conquistas: os seguranças armados da Vale foram expulsos; hortas comunitárias foram construídas, o que melhorou a alimentação da comunidade; a água chegou à sede da Aldeia e a energia elétrica em todas as 17 casas de taipa (de pau-a-pique e barro) construídas em mutirão e autoconstrução com apoio da Rede de Apoio; O Ouricuri, que é a casa sagrada, foi construída no meio da mata, onde a comunidade cultiva sua mística e espiritualidade; sistema agroflorestal está em curso com o plantio de mais de duas mil mudas de árvores nativas do cerrado e da Mata Atlântica; uma escola estadual Xukuru-Kariri, com quatro salas de aulas de taipa construídas, onde dezenas de crianças, adolescentes e jovens estão estudando a Educação Infantil, os Fundamental I e II, o Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA), tendo o assunto sustentabilidade como tema central no ano de 2023, desde as instâncias micro às macrovitais; agora são reconhecidos pelo Poder Público do Município, de onde já são, inclusive, cidadãos eleitores; nasceu o primeiro guerreirinho Xukuru-kariri no território retomado!; a Rede de Apoio só cresce; a produção de artesanato indígena de uma exuberante beleza segue como um dos meios de cultivar e divulgar a mística indígena e também como meio de autossustento.
Além dos anfitriões da Retomada, os parentes Xukuru-Kariri, na festa do 1º ano da Retomada, estavam presentes indígenas de várias outras etnias (Kamakã Mongoió, Puris, Aranã, Pataxós, Quéchua do Altiplano Andino etc) e lideranças da Comissão Pastoral da Terra (CPT/MG), do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), do Centro de Documentação Eloy Ferreira (CEDEFES), do Comitê Mineiro de Apoio aos Povos Indígenas, do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB); Coletivo Amor, Coletivo Resistência; deputada Andreia de Jesus, assessoria do deputado Padre João, da deputada Célia Xakriabá e da deputada Beatriz Cerqueira, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI); Bloco Carnaval Ambiental de Casa Branca; militantes de Partidos de esquerda (UP, PSOL, PT); Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FAE/UFMG); Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG); Quilombo de Marinhos (Sr. Antônio Cambão); pequenos agricultores interessados em aprender tecnologia agrícola sustentabilista tradicional indígena; antropólogos da Itália, França e Brasil; apoiadores do município de Brumadinho e de cidades vizinhas; Brigada Carcará de combate a incêndios florestais; artistas diversos e cineastas mineiros, cantores/as, artistas etc.
As centenas de pessoas que participaram da celebração do primeiro ano de luta da Retomada Indígena Xukuru-Kariri na Aldeia Arapowã Kakya saíram de lá certos de que a mineradora Vale S/A com a cumplicidade do Estado segue fazendo uma brutal sexta-feira da paixão na região de Brumadinho, em Minas Gerais, no Pará e em 32 países. O povo Xukuru-Kariri e todos os Povos Indígenas em luta pela retomada de seus territórios com o apoio das forças vivas da sociedade seguem construindo um domingo de ressurreição com justiça socioambiental e respeito à natureza, caminho necessário para frearmos as mudanças climáticas, impedirmos a “queda do céu” (expressão do xamã Davi Copenawava) e os eventos climáticos extremos que cada vez estão se tornando mais frequentes e letais.
A causa indígena é totalmente coerente com a necessidade urgente de mudança radical dos modos de produção e da economia capitalista hegemônica. É uma causa de fato altamente justa e revolucionária. O povo indígena Xukuru-Kariri é de luta, povo com uma cultura maravilhosa, multimilenar. Gratidão a todes que estão se somando na Rede de Apoio aos Povos Indígenas. E quem ainda não entrou na roda desta luta tão justa, sagrada e necessária, sejam bem-vindos/as/es! Demarcação, já, sem marco temporal!
No YouTube, no canal “Frei Gilvander luta pela terra e por direitos” há mais de 40 videorreportagens sobre a Retomada Indígena Xukuru-Kariri da Aldeia Arapowã Kakyá, em Brumadinho/MG. Quem ainda não assistiu, assista e divulgue para reforçar esta luta tão justa e necessária.
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Retomada Indígena Xukuru-Kariri, em Brumadinho/MG: um ano de muitas conquistas. Artigo de Gilvander Moreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU