06 Fevereiro 2023
A morte de Bento XVI reabriu a questão da renúncia papal enquanto se completam dez anos, desde 11 de fevereiro de 2013, quando o Papa Ratzinger anunciou em latim perante um grupo de cardeais e prelados que deixaria o pontificado às 20 horas do dia 28 de fevereiro seguinte. Naquela quinta-feira, às 17h38, da loggia do palácio papal de Castel Gandolfo, quis repeti-lo com as suas últimas palavras públicas – “este meu dia é diferente dos anteriores; não sou mais o sumo pontífice da Igreja Católica: até as oito da noite ainda o serei, depois não mais" - despedindo-se com uma bênção e palavras muito normais, como que para diluir a densidade do que estava para acontecer: "Obrigado, boa noite! Obrigado a todos!"
A reportagem é de Giovanni Maria Vian, publicada por Domani, 05-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sobre a decisão do papa bávaro, aliás inédita, multiplicaram-se as intervenções, pela excepcionalidade do gesto e pelas possíveis consequências para o papado romano. E nos últimos dias, o próprio Francisco voltou a abordar a questão, também tratada pelo cardeal Gerhard Müller no recente livro entrevista escrito por Franca Giansoldati.
No entanto, essas não são as primeiras renúncias da sé de Roma, mesmo que a decisão de Bento XVI seja realmente sem precedentes. No ano 235 o bispo Ponciano foi condenado e enviado para a Sardenha junto com seu rival Hipólito – um teólogo proeminente, considerado o primeiro antipapa - e renunciou, antes que ambos sucumbissem às duras condições da deportação, tanto que os dois logo foram considerados mártires. No entanto, o gesto marcou tanto que, talvez não por acaso, nos anos da história de Ponciano e Hipólito é colocada em um texto do século XI a lenda da renúncia e do martírio de Ciríaco, um papa que nunca existiu.
As renúncias ou deposições de papas (e antipapas) aumentam na Idade Média, e teólogos e canonistas começam a escrever sobre a renúncia papal. Uma mudança de ritmo ocorre em 1294 com o breve e infeliz pontificado de Celestino V, o monge Pietro del Morrone, considerado o mítico "papa angelical", mas na verdade manipulado por Carlos II de Anjou. Após cinco meses, o papa de oitenta e cinco anos decide renunciar para voltar a ser eremita, mas seu sucessor Bonifácio VIII - em um contexto turbulento - o aprisiona no castelo de Fumone, onde morre dois anos tarde.
Uma história intrincada e famosa é a de Celestino V, já canonizado em 1313. De alguma forma a antecipou Raimundo Lúlio em 1283, imaginando a aventurosa história de Blanquerna, papa santo e reformador que renuncia para se dedicar à vida contemplativa. Algumas décadas depois, é Dante que faz alusão a isso com reprovação, encontrando no terceiro canto do Inferno " a sombra conheci daquele / Que a grã renúncia fez ignobilmente". Permanecido na memória, o gesto do monge medieval está no centro dos dramas de Ignazio Silone e, primeiro, de Reinhold Schneider, que imagina estas palavras dirigidas a Pedro: “O mundo não esquecerá aquele que foi elevado a tal alto escalão como o seu”.
As renúncias forçadas sucederam-se a partir de 1378, quando se fragmenta a Christianitas ocidental, que durante quarenta anos se divide entre dois e até três papas em conflito entre si, com consequências até a abdicação em 1449 do antipapa Félix V, um Savoia. Séculos depois, surge o problema de uma eventual renúncia de Pio VI, que morre após a proclamação da República Romana em 1799 deportado para a França, depois Pio XII em 1943 por uma ameaça semelhante planejada por Hitler, mas nunca implementada, e João XXIII nas últimas semanas de vida devido à doença que o levaria à morte.
Tudo muda com Paulo VI, que sabe se confrontar com a modernidade e ao mesmo tempo reflete sobre a enorme responsabilidade confiada ao sucessor de Pedro. Em 30 de junho de 1965 escreve o seu testamento, mas dois meses antes, em 2 de maio de 1965, em três páginas manuscritas – onde usa a primeira pessoa do plural – declara, no caso de “enfermidade, que se presuma incurável, ou de longa duração, e que nos impeça de exercer suficientemente as funções do nosso ministério apostólico; ou seja, no caso em que outro impedimento grave e prolongado a isso seja igualmente um obstáculo, renunciar ao nosso ofício sagrado e canônico, tanto como Bispo de Roma quanto como Chefe da mesma santa Igreja Católica”. Mas essa "renúncia, que só o bem maior da Santa Igreja nos sugere", não acontecerá, porque o papa morrerá quase repentinamente em 1978, ante de completar os oitenta e um anos.
Em 15 de fevereiro de 1989, João Paulo II transcreve as mesmas palavras do documento de Paulo VI, mas na primeira pessoa do singular. Textos semelhantes são assinados por Bento XVI em 2006, segundo seu secretário Georg Gänswein no livro entrevista com Saverio Gaeta, e por Francisco poucos meses depois da eleição, como revelou o próprio papa em entrevista ao jornal espanhol Abc de 18 dezembro, especificando ter entregue a carta ao secretário de Estado Tarcisio Bertone, que no outono de 2013 foi substituído por Pietro Parolin.
A decisão de Ratzinger amadureceu em abril de 2012, após a viagem ao México e a Cuba que esgotou o pontífice, e foi preparada em segredo durante aquele ano. Mas Bento XVI já em 2010 havia dito a Peter Seewald, no livro de entrevistas Luz do mundo, que "quando um papa chega à clara consciência de não estar mais física, mental e espiritualmente em condições de realizar a tarefa que lhe foi confiada, então ele tem o direito e em algumas circunstâncias até o dever de renunciar".
Mais de trinta anos antes, Ratzinger, que era cardeal há pouco mais de um ano, havia celebrado a missa em 10 de agosto de 1978 para Paulo VI, que acabara de falecer. O Papa Montini – disse o arcebispo de Munique e Freising – “lutou intensamente contra a ideia de se aposentar. E podemos imaginar o quanto deve ser pesado o pensamento de não poder mais pertencer a si mesmo. Não ter mais um momento privado. De estar acorrentados até o fim, com o próprio corpo que cede, a uma tarefa que exige, dia após dia, o uso pleno e vivo de todas as forças de um homem”. Paulo VI, sobretudo, "não sentia prazer nenhum no poder", e por isso a autoridade, vivida como serviço, "voltou a ser grande e credível". Sem saber, o prelado de 51 anos estava descrevendo o seu futuro.
Foram novidades, portanto, a renúncia de Bento XVI e a coabitação de dez anos no Vaticano com seu sucessor, no geral pacífica, mas não isenta de incidentes, provocados sobretudo pelas respectivas torcidas de Ratzinger e Bergoglio, aliás muito diferentes entre si. Uma situação que, com algum exagero, foi descrita pelo Cardeal Müller – crítico da decisão de Bento XVI e claramente contrário aos Papas eméritos – como “um dualismo não codificado” que “alimentou a desorientação”, ainda que depois afirme, desta vez com razão, que não se pode "fazer um regulamento sobre as renúncias, também porque o papa é sempre livre e pode modificá-lo como quiser".
Soluções jurídicas, ao contrário, são propostas com vivacidade no livro Papa, non più papa (Viella), por Geraldina Boni, a partir de prolongadas consultas internacionais entre os colegas. Editado pelos historiadores Amedeo Feniello e Mario Prignano, o volume confronta oportunamente distintos pontos de vista, mas é novo e interessante sobretudo por dois esquemas que visam regulamentar a “sé romana totalmente impedida” devido à grave doença do pontífice - basta pensar nos cenários de um papa em coma evocados nas duas famosas e sugestivas séries de Paolo Sorrentino – e a “situação canônica” do papa emérito: talvez o primeiro esquema seja plausível, o segundo decididamente menos, pelas razões expostas por Müller.
Sobre a coabitação com Bento XVI e sobre uma eventual regulamentação da renúncia papal, no entanto, o Papa Francisco voltou a falar em uma longa entrevista em espanhol com Nicole Winfield, da Associated Press, em 24 de janeiro passado. “A convivência foi, eu diria de sua parte, heroica. Porque não é fácil inventar uma convivência assim depois de mil anos". Se eu renunciasse - disse então o pontífice, evocando uma eventualidade totalmente improvável - seria "bispo emérito de Roma" e iria para a "casa do clero de Roma". E um regulamento para disciplinar o papado emérito? No se me ocurrió, "não pensei a respeito", respondeu, repetindo o que havia dito na entrevista à "Abc" um mês antes: "Pode ser que o Espírito Santo não tenha interesse que eu trate dessas coisas".
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A grande renúncia e os dez anos do Papa Francisco. Bento XVI revolucionou a história das renúncias papais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU