16 Janeiro 2023
Os padres passam toda uma existência, desde os anos da formação, imersos em uma “cultura do sigilo”, dentro da qual todas as coisas relevantes da vida íntima, da esfera afetiva, emocional e pessoal são impossíveis de se revelar em público. Para um padre, ser sincero é literalmente impossível e proibido.
A opinião é do sociólogo italiano Marco Marzano, professor da Universidade de Bergamo, na Itália. O artigo é um trecho do livro In segreto. Crimini sessuali e clero tra età moderna e contemporânea (Mimesis, 2022), organizado por Lorenzo Benadusi e Vincenzo Lagioia.
O texto foi republicado em Dopo Domani, 06-01-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A teoria das “maçãs podres”, ou seja, do padre pedófilo como um criminoso inveterado que conscientemente se aproveita da veste que usa para molestar e violentar crianças, não se sustenta às muitas análises sérias que foram realizadas nas últimas décadas sobre seu perfil psicológico.
Os elementos comuns que servem de pano de fundo para os abusos clericais são tantos e tão significativos que nos obrigam a refletir seriamente sobre os aspectos institucionais e organizacionais do fenômeno.
O elemento em torno do qual tudo gira é a instituição do celibato obrigatório para o clero católico. A existência dessa norma e a relevância que ela assume em todo o sistema organizativo e formativo da Igreja têm uma importância gigantesca na questão dos abusos.
Um jovem católico hoje, com certa facilidade, pode não só violar a prescrição da castidade pré-matrimonial, mas também anunciá-lo publicamente, a seus coetâneos e às vezes até ao padre, sem se ver estigmatizado ou punido pelo sacerdote por isso.
No caso de um jovem seminarista, as coisas são diferentes: sua vida é objeto de um constante monitoramento por parte da instituição: todos os momentos do dia são estritamente regulados, e as oportunidades de liberdade, especialmente fora dos institutos, são quase nulas.
Além disso, nos seminários, o bombardeio ideológico em favor do celibato é constante e martelante, e a espada de Dâmocles da expulsão imediata e da interrupção da carreira paira sobre toda transgressão.
No percurso de formação dos seminários, além disso, os temas da castidade e da sexualidade são abordados em uma chave invariável e exclusivamente teológica e racional, ou seja, são assuntos livrescos e doutrinários, nunca tratados em relação à vida concreta dos indivíduos, e a castidade assume sempre o semblante de um supremo ideal normativo a se aspirar, de uma meta que todo candidato ao sacerdócio deve se esforçar para alcançar.
A distância do ideal é fonte, pelo menos para quem recém-iniciou a vida no seminário e obviamente não consegue se manter casto nem sequer nos pensamentos ou na prática da masturbação, de sentimentos de culpa e de inadequação praticamente permanentes.
A solidão é um dos fatos mais evidentes da vida sacerdotal. No momento em que o aspirante a padre entra no seminário, ele atenua ou dissolve completamente todos os seus laços sociais pré-existentes, muitas vezes sem realmente adquirir novos.
Dentro da instituição, as amizades entre iguais são fonte de perigos reais, em primeiro lugar o de confiar em pessoas erradas, de se confidenciar (sobretudo sobre aspectos da vida íntima) a sujeitos que depois se revelam propensos à delação e à traição.
Até mesmo as pessoas fora do seminário raramente podem se tornar verdadeiros amigos, não só pelos riscos que isso implica, mas também porque, fora do corpo eclesial, os padres, pela aura de sacralidade que os envolve, são quase sempre considerados imunes a dificuldades sentimentais e afetivas.
Abrir-se a um leigo, confessar-lhe as próprias mágoas significa para o sacerdote, inevitavelmente, dada a forma como a imagem do padre católico é construída socialmente, renunciar ao próprio status, rebaixar-se à condição de todos os mortais que têm problemas cardíacos, afetivos, emocionais etc.
A vida posterior à ordenação, vivida na paróquia, também é muitas vezes marcada por uma substancial e profunda solidão existencial, fonte de vários sentimentos negativos e de diversos comportamentos nocivos (não só o alcoolismo e várias formas de dependência, mas também os abusos sexuais).
Por fim, a solidão é reconhecida há muito tempo por muitos (até mesmo dentro do próprio ambiente eclesial) como uma das principais causas de infelicidade e de frustração do clero, um dos motivos de descontentamento que leva muitos a abandonar a batina e, depois, a se casar e a formar uma família.
A vida sexual dos aspirantes a padre se desdobra inteiramente nas sombras, cercada de sigilo e, muitas vezes, pelo menos nos primeiros anos de vida dentro da instituição, sob o signo da culpa, do remorso e da inadequação em relação ao ideal apresentado continuamente pela instituição, do medo de ser desmascarado e denunciado.
As primeiras experiências amorosas costumam ser tardias e pouco satisfatórias, assim como a bagagem de conhecimentos sobre a sexualidade é em grande parte aproximativa e incompleta. O resultado é uma marcada imaturidade sexual em relação ao restante da população masculina da mesma idade, um grave atraso no desenvolvimento de uma relação saudável e fisiológica com o desejo sexual e a corporeidade, e uma sistemática associação do prazer sexual com a falta e o pecado.
Em outras palavras, os padres permanecem por muito tempo, nesse sentido, em uma fase infantil e imatura, dominada pela masturbação (muitas vezes obsessiva) e por um castelo de fantasias e de fantasmas, tão atraentes e sedutores quanto repulsivos e assustadores.
Além disso, a imaturidade é um elemento que não diz respeito apenas à esfera da sexualidade e da afetividade, mas a toda a personalidade dos membros do clero. O fato é que, na vida nos seminários, os futuros sacerdotes, todos com pelo menos 20 anos, são sistemática e radicalmente infantilizados, tratados como crianças totalmente incapazes de agir de forma autônoma.
Sua existência é regulada pela instituição em todos os mínimos detalhes, e todas as comunicações dentro e fora do seminário são objeto de uma vigilância constante e muito rígida.
As funções manifestas e os fins explícitos desse regime disciplinar refletem, por um lado, a exigência – que a organização sente como primordial – de controlar escrupulosa e severamente a autenticidade e a profundidade da “vocação” do seminarista; por outro, o desejo de desenvolver na consciência deste um sentimento de dependência incondicional e de total subalternidade à instituição, uma disponibilidade à obediência disciplinada, considerada uma qualidade indispensável para um funcionário da Igreja.
A aptidão à submissão dos seminaristas é testada continuamente no percurso formativo e constitui um dos principais objetivos educativos da formação clerical.
As funções latentes desse dispositivo são numerosas e consistem, por um lado, no amadurecimento nos seminaristas de uma capacidade peculiar de eliminar ou circunscrever em seus comportamentos exteriores e públicos todos os sintomas de pose que não correspondam às expectativas do instituição e, portanto, de mentir e esconder seus sentimentos autênticos (é a dinâmica do jogo entre gato e rato, entre predador e presa: quanto mais a organização se empenha na tentativa de desmascarar os desobedientes, mais os futuros “funcionários de Deus” se esforçam para inventar truques e artifícios para parecer dóceis em público e, ao mesmo tempo, cultivar a própria liberdade, mas apenas na sombra e na escuridão da vida dupla); por outro lado, no fato de que os seminaristas se acostumam a considerar como importante e temível apenas aquilo que vem de cima, de seus superiores, dos diretores da organização e, por sua vez, a considerar irrelevantes as necessidades e os interesses de quem ocupa uma posição inferior à deles na hierarquia e, portanto, em primeiro lugar, os fiéis, as ovelhinhas do rebanho concebidas invariavelmente como criaturas a serem guiadas com sabedoria e firmeza, e não como pessoas a serem correspondidas com responsabilidade e respeito.
Ambas as características desempenham uma parte importante na geração dos abusos até mesmo por vias menos previsíveis e, portanto, não apenas pela óbvia circunstância de que muitos padres se encontram em um estágio de amadurecimento sexual semelhante ao de suas vítimas. Por exemplo, como revelou Kelly, o disciplinamento feroz gera uma raiva profunda e reprimida que às vezes se traduz, além de depressão e tristeza, em uma aspiração de onipotência na relação com o menor abusado.
Aos jovens aspirantes a sacerdote, ensina-se mais ou menos implicitamente que a principal fonte de perigo para a solidez de seu caminho vocacional é a incapacidade de gerir as emoções, o déficit de controle dos desejos e das pulsões.
As emoções incontroláveis tornam-se, aos olhos dos seminaristas, o principal monstro a ser mantido sob controle para poder levar uma existência serena. O problema é que isso – a constante exaltação da racionalidade sobre a emotividade – muitas vezes gera tanto uma manifestação em formas não ortodoxas das necessidades emocionais e sexuais reprimidas quanto uma sistemática incapacidade de aceitar todas as formas de atividade emocional e uma total ausência de empatia, uma estrutural incapacidade de se colocar no lugar dos outros, imaginando o que eles podem sentir também como consequência das nossas ações.
Esse traço da “personalidade clerical” se revela exteriormente no fato de se mostrar sempre de bom humor, disponível, em um estado de espírito invariavelmente distante da agressividade, da raiva, do ressentimento e de outros sentimentos descontrolados. Em suma, revelar as próprias emoções não se enquadra no “estilo clerical”.
Tal “anafetividade adestrada”, no caso dos abusos, manifesta-se como uma incapacidade de se colocar no lugar das vítimas, ou seja, dos menores abusados: o padre abusador muitas vezes não consegue sequer compreender a extensão dos danos que causa no menor, acha que o que está fazendo (o abuso) não terá consequências particularmente negativas para o menino ou a menina que está à sua frente.
A ênfase constante e excessiva na importância de seguir as normas, de permanecer fiel à regra combinada com a dificuldade de aceitar e de lidar com as próprias emoções corre o risco de gerar, em muitos padres, uma atenção quase obsessiva e exclusiva ao respeito das leis da Igreja em detrimento de todo o restante.
Desse ponto de vista, o abuso cometido contra um menor corre o risco de ser interpretado pelo abusador mais como a manifestação de um pecado (a prática de atos impuros) do que como um crime cometido contra uma pessoa real que irá sofrer longamente as suas consequências.
Os padres passam toda uma existência, desde os anos da formação, imersos em uma “cultura do sigilo”, dentro da qual todas as coisas relevantes da vida íntima, da esfera afetiva, emocional e pessoal são impossíveis de se revelar em público. Para um padre, ser sincero é literalmente impossível e proibido.
A vida dupla, no sentido de uma existência privada completamente escondida em público, é a regra, o padrão, e o escondimento é uma necessidade que não pode ser contornada para poder continuar vestindo a carapuça sem renunciar a satisfazer as próprias necessidades emocionais e afetivas.
Naturalmente, todos os riscos que derivam da formação clerical podem ser muito reduzidos e até quase totalmente anulados pelas reações que os seminaristas e os padres põem em prática, durante e após os anos de sua formação, para combatê-los.
Como os indivíduos (e isto vale para todos os contextos humanos) são criaturas inteligentes e não vítimas passivas dos processos de socialização, suas consciências nunca são simples recipientes ou vasos nos quais podem ser simplesmente derramados os pedidos e as exigências da instituição, as expectativas que a Igreja construiu em torno do papel do padre celibatário e casto.
Ao término de um processo natural de amadurecimento humano, que neste caso, pelas razões que expus até agora, pode ser adiado no tempo, a maioria dos membros do clero adquire uma personalidade própria e distinta, uma forma peculiar de ser pessoa e de ser padre.
Esse resultado, quando se produz, obviamente é bom para todos: para o padre, que se salva da tentativa de aniquilação de sua individualidade, implícito na socialização clerical; para a instituição, que certamente faz de tudo para “programar” o sacerdote de acordo com suas exigência, mas que, se conseguisse isso completamente, teria a seu serviço um “cultural dope”, um autômato monstruoso desprovido de autonomia e de inteligência, e incapaz exercer eficazmente o poder pastoral, de fazer funcionar as paróquias e os oratórios; e para as comunidades de fiéis, que podem se beneficiar de um guia equilibrado e humano, e não de um robô telecomandado pela instituição.
O fortalecimento da posição do sacerdote em relação à instituição não é apenas uma consequência logística, digamos, do fato de que ele vive, após a ordenação, em uma casa paroquial, muitas vezes sozinho e, em todo caso, muito distante do clima de clausura do seminário. Há outro elemento que pesa muito em seu favor: o fato de a Igreja considerar um homem ordenado padre como “sacerdote vitalício”.
Em sua pessoa, por efeito do sacramento, produzir-se-ia uma transformação radical, uma alteração irreversível que o acompanhará por toda a vida (e que produz a aura sacra de que goza, junto com toda a instituição, aos olhos dos fiéis). Sua expulsão das fileiras do clero, por isso, é um gesto extremo, uma ação limite, que a Igreja só faz muito raramente e com muita relutância.
Obviamente, esse aspecto fortalece muitíssimo a posição do padre, funcionário por tempo indeterminado, muito além dos limites da aposentadoria.
Os excepcionais resultados de pesquisa obtidos por Marie Keenan ao entrevistar nove padres abusadores mostram que o abuso também pode, infelizmente, ser uma forma não negligenciável de adaptação secundária para uma parcela nada pequena de membros do clero católico. Em primeiro lugar, porque quase nenhum dos abusadores exibe os traços de uma patologia psiquiátrica associada à pedofilia ou a qualquer síndrome antissocial.
Portanto, na grande maioria dos casos, não se trata de “pedófilos”, ou seja, de pessoas clinicamente doentes, irresistivelmente atraídas de modo exclusivo pelo sexo com menores, mas sim de “abusadores”, ou seja, sujeitos (muitas vezes deprimidos, doentes de solidão e sexualmente imaturos, mais do que agressivos e perversos), que, em certo ponto da vida e muitas vezes de uma forma contextualizada com outras relações, abusam sexualmente de menores, muitas vezes simplesmente aproveitando a oportunidade que deriva do contato frequente com eles.
Além disso, nenhum deles parece ter escolhido a carreira clerical para poder abusar, ou seja, para ter uma oportunidade de cometer violência contra os menores; pelo contrário, no fundo da escolha de se tornar padre, há muitas vezes o medo obsessivo do sexo.
Muitos abusadores relatam ter percebido a atenção sexual dirigida aos menores como uma espécie de “compensação” por uma vida demasiadamente plena e dedicada inteiramente ao serviço da instituição. O contato sexual com um menor representa, para alguns deles, uma “pequena alegria inocente”: pequena porque muitas vezes não envolve a consumação de um ato sexual completo e, portanto, pode parecer, aos olhos do abusador, uma espécie de brincadeira e de “delito menor” cometido contra a moral católica.
A pouca relevância atribuída ao gesto também decorre do fato de que muitos abusadores, devido à mentalidade legalista e à anafetividade adestrada, parecem não se dar conta, a não ser após um longo processo terapêutico, do sofrimento que infligiram aos menores abusados.
No momento do abuso, a ausência de uma rebelião explícita por parte do menor foi interpretada por muitos abusadores como uma manifestação de consentimento (e de apreço) por parte da vítima.
Em alguns casos (muitos), os abusadores, por sua vez, foram abusados no passado (às vezes no seminário), mas não foram capazes, pelo menos até o início da terapia, de reconhecer os danos sofridos devido a esses abusos. Se assim for, portanto, o agressor não veria o dano que causa à vítima, porque não vê o próprio dano.
Por fim, muitas pesquisas enfatizaram que, frequentemente, eles se inscrevem nas fileiras dos superconformistas, dos hiperortodoxos, dos fidelíssimos à instituição e, muitas vezes, estão cheios de raiva reprimida (como resultado de uma atitude excessivamente submissa). Não é um fato contraditório com seu comportamento no plano sexual, com os abusos que cometeram. E não é, porque, como mais uma vez demonstram os estudos realizados nesse campo, há uma séria tentativa de muitos deles de permanecerem fiéis ao celibato.
O sexo com um menor, sobretudo quando ocasional, não é acompanhado pela penetração e é seguido pelo recurso ao sacramento da confissão (o que corrobora sua remoção), é imaginado como menos perigoso pelo respeito ao vínculo celibatário.
Um relacionamento estável com um parceiro adulto e perfeitamente consciente poderia representar, aos olhos de muitos abusadores, uma ameaça muito maior. Os menores se encontram em uma condição de subalternidade em relação ao padre, estão submetidos à sua autoridade, é mais provável que se calem e guardem segredo sobre o que aconteceu com eles e certamente não passarão a reivindicar a “saída do armário” ou a ameaçar que contarão tudo ao bispo (como ocorre com os parceiros adultos).
As hierarquias eclesiásticas católicas e os pontífices gostariam muito de eliminar o problema dos abusos sexuais do clero, que lhes causa uma infinidade de problemas de natureza diferente em nível global.
A complicação deriva do fato de que, se eles removessem realmente e na raiz as principais causas, a saber, o celibato eclesiástico e a imposição perpétua de uma vida casta aos clérigos, as lideranças também suprimiriam seu status sagrado, a superioridade de sua classe sobre os leigos e, portanto, boa parte daquilo que legitima seu direito de guiar o povo de Deus como pastores.
A partir desse ponto de vista, a mudança de atitude, que também ocorreu passando do “negacionista” João Paulo II para Bento XVI, e depois para Francisco, não é sequer remotamente suficiente para produzir alguma mudança significativa na situação, pois não afeta de forma nenhuma, além das boas intenções, os fatores “estruturais”.
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O que tem na cabeça dos padres? Artigo de Marco Marzano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU