09 Dezembro 2022
Na festividade que, em Éfeso, aclama Maria como theotokos, também é preciso ler o prolongamento daquele fio dourado que pede uma dicção equilibrada ao falar de Deus, também em perspectiva de gênero.
A opinião é da teóloga italiana Cettina Militello, presidente da Sociedade Italiana para a Pesquisa Teológica (Sirt). O artigo foi publicado no caderno Donne Chiesa Mondo do jornal L’Osservatore Romano, de dezembro de 2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na noite de 11 de outubro de 431, uma multidão festiva com tochas acesas acolheu os Padres que, reunidos em concílio em Éfeso, ainda que com modalidades questionáveis para a nossa sensibilidade, haviam condenado o patriarca de Constantinopla, o antioqueno Nestório, réu por ter contestado a atribuição a Maria de Nazaré do título de theotokos (aquela que gera Deus).
Para Nestório, era preferível chamá-la de anthropotokos, ou seja, genitora do homem Jesus, pois uma criatura humana não poderia gerar Deus. Sua preocupação era a de não fazer dela uma deusa...
A fim de dirimir a controvérsia, ele também havia proposto de chamá-la Christotokos (aquela que gera Cristo). Mas isso também parecia insuficiente e inadequado para o fanático e briguento Cirilo, patriarca de Alexandria. Ele havia pilotado o concílio e, com um golpe de mão, na ausência dos legados do patriarca do Ocidente, atrasados por motivo de uma tempestade, obtivera a excomunhão de Nestório. Os legados, finalmente chegados, endossaram suas decisões.
Hoje, existe a propensão a libertar Nestório do manto em que Cirilo o havia enredado. Provavelmente, neste como em outros casos, a distância era nominal, mais do que teológica. Em suma, mais do que um problema doutrinal, o que os opunha era um vício de vocabulário.
Por outro lado, literalmente, theotokos, traduzido para o latim com deipara, não significa “mãe de Deus”. E, para dirimir a impossibilidade de a criatura ser um sujeito ativo, havia as teorias que consideravam a mulher absolutamente passiva no processo da geração. Como São Bernardo diria séculos depois: Maria era um simples “canal”, um puro meio. Digamos, também, uma espécie de incubadora que havia se prestado à concepção, ao crescimento e ao nascimento da humanidade do Verbo.
Como a teóloga norueguesa Kari Børresen mostrou brilhantemente no livro “Maria nel Medio Evo” [Maria na Idade Média], se o dogma mariano prestou atenção a Maria chamando-a de “theotokos” e “sempre virgem” ou, depois, no segundo milênio, definindo-a como “imaculada” e “assunta”, não era para celebrá-la, mas sim para celebrar o Filho, valendo-se, aliás, de teorias genéticas ou de sugestões antropológicas, hoje decididamente superadas.
São dois os problemas que surgem. O primeiro está ligado a Éfeso, a cidade do concílio e ao pathos com que se seguiram suas vicissitudes. O outro, mais importante, mas correlato, diz respeito ao dogma cristológico, ou seja, a necessidade de a comunidade crente confessar Jesus de Nazaré como verdadeiro homem e verdadeiro Deus.
Há algum tempo, inquietou-me um filme destinado a mostrar como Maria de Nazaré, depois da ressurreição do Filho, seguiu o discípulo João, estabelecendo-se com ele em Éfeso. Uma espécie de reportagem detalhada sobre suas viagens era proposta a partir da “Vida de Maria”, de Katharina Emmerick, uma mística alemã que viveu no século XIX.
O jesuíta e teólogo alemão Karl Rahner interveio nos anos 1970 em relação a profecias e visões. Certamente, embora sincero e de boa fé, a vidente dá corpo à sua experiência, respeitando os clichês culturais, a piedade e o sentimento de seu tempo. Só assim se justificariam certas afirmações de Emmerick relativas a práticas piedosas – Via Sacra, “viático”, celebrações solenes presididas pelo apóstolo Pedro – em uso séculos depois, não à morte de Maria, que, segundo a vidente, ocorreu aos 62 anos de idade... E, em todo o caso, as visões de quem quer que seja nunca são assumidas como prova em relação a eventos ou a afirmações de fé.
Uma gama robusta de apócrifos, chamados de “assuncionistas”, ao dar conta disso, situa a morte de Maria em Jerusalém. Esta tradição literária, que se tornou um patrimônio comum por volta do século V, parece hoje sustentada também por evidências arqueológicas.
Mas por que ainda hoje a chamada “casa de Maria” é visitada em Éfeso? Talvez seja preciso lembrar que, precisamente naquela cidade, havia sido erigido um templo muito venerado dedicado à deusa Ártemis.
Os Atos dos Apóstolos atestam que a nova religião pregada por Paulo parecia perigosa às pessoas que viviam de seu culto, a ponto de suscitar, com o grito: “Grande é a Ártemis dos efésios”, aquele tumulto que forçou o apóstolo a deixar a cidade apressadamente. E como o troféu do apóstolo João sempre foi objeto de veneração em Éfeso, parecia óbvio associar seu túmulo ao local onde ele teria vivido com Maria e onde a própria Maria teria morrido.
Realmente, Éfeso era um dos lugares onde mais era palpável a sugestão do feminino “divino”, ou seja, uma representação da divindade segundo simetrias de gênero, um epígono, apesar de tudo, daquela religião matriarcal da deusa tão difundida na bacia do Mediterrâneo.
Eu acrescentaria que as religiões do Livro são fortemente patriarcais. Sua figuração de Deus o torna univocamente masculino, e, onde algo escapa ou permanece, eis a fúria como no caso do Alcorão em relação aos chamados “versos satânicos”, sombra remota de um culto feminino.
Ártemis, no Panteão greco-romano, é uma divindade lunar. Próxima da Diana dos latinos, ela é uma caçadora solitária e ousada, deusa virgem indiferente à sedução.
O simulacro da deusa de Éfeso ainda hoje não tem uma interpretação certa. Ela é coberta até a cintura por protuberâncias arredondadas, interpretadas tanto como seios quanto como testículos de touro. Certamente, evoca um feminino poderoso e sensual.
É, portanto, nessa cidade que se desenvolve uma particular devoção a Maria. Provavelmente, aquela que é visitada e venerada como a casa dela era uma igreja a ela dedicada. De fato, desde cedo, tendo se tornado um culto reconhecido e admitido pelo império, o cristianismo também dedicou locais de culto à mãe do Senhor. Muitas vezes, os templos dedicados às antigas deusas experimentaram aquilo que na antropologia cultural se chama de “transculturação”.
Em outras palavras, ao excluir as mulheres do divino, de alguma forma era preciso remediar isso. Quem melhor do que a mãe de Jesus poderia sublimar essa reivindicação? Como não entrelaçá-la com aquele sentimento mediterrâneo órfão e epígono da Grande Mãe? E como não adquiri-la para esse fim, potencializando-a desmedidamente? Não foi talvez a menina de Nazaré que gerou o Filho de Deus na carne? E não é a maternidade que dá sentido às mulheres? E quem mais do que ela pode oferecer uma representação poderosa disso? Os epítetos de Cibele, antiga deusa da natureza da Anatólia, e da divindade egípcia Ísis não transpassaram para ela?
Certamente, na festividade que, em Éfeso, aclama Maria como theotokos, também é preciso ler o prolongamento daquele fio dourado que pede uma dicção equilibrada ao falar de Deus, também em perspectiva de gênero.
Neste ponto, parece que a necessidade de um corretivo para o patriarcado vê a teologia e o sentimento popular em sinergia. Na realidade, não é assim. A teologia interioriza e sublima o patriarcado. Chamar Maria de theotokos não a indica em seu poder materno, mas sanciona sua relação funcional com o Filho, cuja encarnação, como “nascido de mulher”, ela garante. Se o Verbo não tivesse sido gerado na carne, não poderíamos falar de encarnação e de redenção.
Obviamente o discurso não é simples. Os Evangelhos sinóticos indicam Maria como a mãe de Jesus.
Locução que encontramos também em João que, porém, não nos dá seu nome. O Evangelho de Lucas, acima de tudo, a delineia de acordo com o cânone mais autêntico do discipulado. Em seu Evangelho da Infância, afirma-se que Maria guardava em seu coração os eventos, comparando-os. No entanto, como corretivo do elogio dirigido a ele por uma mulher não identificada – “Bem-aventurados o ventre que te gerou e os seios que te alimentaram!” — Jesus contrapõe a maternidade física ali exaltada aos valores do discipulado: acolher a palavra de Deus e pô-la em prática. São precisamente as atitudes que, segundo Lucas, caracterizam Maria de Nazaré.
Como provam os Evangelhos e os apócrifos da infância, a atenção à mãe de Jesus não é imediata. Em um primeiro momento, o centro é a boa nova de Jesus de Nazaré, que anunciou o Reino de Deus. Ele, crucificado e ressuscitado, está agora no coração do Evangelho que recolhe suas palavras e seus gestos.
A compreensão dele, filho de Deus, nascido de mulher, porém, justifica a atenção àquela que o gerou e às modalidades que caracterizaram seu nascimento. Na verdade, os Evangelhos nos falam pouco sobre Maria. Eles atestam uma espécie de ruptura entre Jesus e a família de origem e nos oferecem muito poucos elementos voltados a nos dizer quem é essa família, quase para mostrar a incongruência entre aqueles a quem ele pertence, os gestos que ele faz e as palavras que ele profere.
Portanto, é o dogma cristológico que põe Maria em campo. Contra a gnose e sua desatenção à corporeidade, é preciso afirmar que o nascimento de Jesus é verdadeiro, inscrito no poder de Deus, sem concurso de um homem. Daí sua leitura em chave virginal, embora, precisamente em chave antignóstica, ainda no século III, alguns Padres afirmem como virginal a concepção de Jesus, mas não seu nascimento.
No esforço de enuclear o nó cristológico, o epíteto theotokos custa a ser acolhido. Basta constatar sua ausência ou sua escassa recorrência nos Padres. Como poderia a natureza humana gerar o divino? E, por outro lado, afirmar que Maria gera somente a humanidade de Jesus corre o risco de contrapor ou justapor humanidade e divindade. É o perigo subjacente aos termos anthropotokos e christotokos, cada um em sua unilateralidade.
Não entro em detalhes sobre o mérito das diferentes posições. A controvérsia cristológica envolveu as Igrejas ao longo dos séculos III e IV. É um florescimento de heresias que visa a minimizar a relevância da humanidade em detrimento da divindade ou da divindade em detrimento da humanidade. Para Cirilo de Alexandria, somente o termo theotokos garante a copresença de humanidade e divindade na única pessoa do Verbo. No entanto, Cirilo cavalga o nervo exposto de uma devoção primitiva e incondicional, de uma ênfase que já toca a mãe do Senhor pelo menos no imaginário popular.
No pano fundo – repito – estão o culto de Ísis e de Cibele. Quer nos agrade ou não, são esses elementos culturais que animam uma querela teológica muito controversa, que, por outro lado, não foi resolvida no Concílio de Éfeso, mas no de Calcedônia (451).
Aqui, de fato, apesar da distinção entre as duas naturezas, considera-se legítimo atribuir à humanidade aquilo que conota a divindade e vice-versa. Por essa razão, Maria de Nazaré, a mãe de Jesus, pode ser chamada de theotokos. Título que, pela primeira vez, é solenemente recebido a uma definição conciliar. Nela, ensina-se que o Filho perfeito na humanidade e perfeito na divindade, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, da mesma substância do Pai segundo a divindade e da nossa substância segundo a humanidade... para nós homens e para a nossa salvação foi gerado por Maria virgem, genitora de Deus (theotokos).
A partir desse momento, Maria seria venerada e cantada como theotokos, impulsionando, porém, a expressão para além da letra ao chamá-la de meter theou, “mãe de Deus”. Mas nisso há uma coerência com o ditado de Calcedônia, isto é, com a possibilidade de usar indiferentemente expressões e atributos, não para confundir humanidade e divindade, mas para afirmar sua copresença na única pessoa do Verbo.
O fato de a torrente em pleno fluxo da devoção ter se dirigido depois para certos desvios enfáticos é outra questão. Mesmo assim, a menina de Nazaré oferece um misericordioso corretivo para uma religião que corre o risco de remover o feminino.
Apoiamo-nos no Vaticano II, na constituição Lumen gentium e no seu capítulo VIII, intitulado “A bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreja". Encontramos nela uma visão equilibrada de Maria, nunca deusa ou criatura a meio caminho entre o humano e o divino, mas nossa irmã no esforço cotidiano do crer, nossa companheira na “peregrinação da fé”, bem-aventurada porque acreditou “no cumprimento das palavras do Senhor”.
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Maria, a Theotokos. Artigo de Cettina Militello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU