23 Novembro 2022
O atum Antea disse aos humanos: "Deixe-nos livres e em paz, dois de nós, macho e fêmea; apenas dois por um ano e encheremos o Adriático de filhos, tantos que não haverá mais espaço nem para a água”. Colapesce (personagem de uma lenda siciliana do séc. XII, NT) não estava presente para ouvir a promessa milagrosa do grande animal, uma fêmea que, como nos contos de Calvino, aparecera para oferecer um pacto aos Sapiens do Mediterrâneo. O Adriático, apesar de Antea, não vai se encher de grandes peixes daqui a poucos meses – pouco mais do que o tempo de uma gravidez humana – apesar da simplicidade e razoabilidade de sua proposta: paz em troca de vida e sustentabilidade, para todos. Humanos e seres vivos do ecossistema que estamos destruindo, inclusive com os barcos pesqueiros de atum da tecnopesca industrial que estão levando o atum e outras espécies à extinção.
É o expediente literário - fazer falar os viventes não-humanos como nas grandes fábulas populares – que foi utilizado por Mário Tozzi, cientista, geólogo, grande contador de histórias que brotam da observação científica e apaixonada da realidade. Mediterraneo inaspettato (Mediterrâneo inesperado, em tradução livre, Milão, Mondadori, 2022, 156 p.), na verdade, é a fábula da realidade que poderia ser.
O Adriático, que poderia não ser suficiente para os descendentes de um único par de atuns, assumindo que permaneçam soltos e livres durante um ano, está dentro das possibilidades da realidade. Os habitantes mais antigos do Mediterrâneo, desde os tempos das águas primordiais da Mesogea, são verdadeiramente prolíficos neste ponto. No entanto, 450 milhões de anos depois, estão a um passo da extinção que foi começada, no Mediterrâneo, somente na década de 60 do século passado. Mais alguns anos de pesca selvagem e não haverá mais nem os dois atuns da fábula de Antea. O Mediterrâneo, estreita e caótica encruzilhada de 20% do comércio mundial, reserva pesqueira de flotilhas de várias nacionalidades, está raspando o fundo de suas reservas. Conversamos sobre isso com Tozzi.
A entrevista com Mario Tozzi é de Chiara Graziani, publicado por L'Osservatore Romano, 22-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
No livro você descreve "a imensa 'inteligência da vida' da qual cada ser vivo participa. E o Mediterrâneo, realidade única nascida da globalização da oliveira e da matemática pelo mar - como nos conta - é fruto de uma koinè de seres vivos. Qual é a inteligência da vida? E por que parecemos excluídos dela, como afirmam os não humanos falantes do livro?
Um erro de perspectiva nos leva a nos considerarmos superiores, os únicos senhores da Criação e de todas as outras vidas. Mas não somos. Usamos as tecnologias, é verdade, mas não conseguimos ver que todos os seres vivos participam de uma grande inteligência coletiva; pense no cardume de peixes, milhares de indivíduos capazes de se mover em sincronia como um único animal grande e inteligente composto de tantos cooperados. Aquela também é inteligência que não é algo que nos é exclusivo, não é reservado para nós. Se acreditamos na evolução biológica, devemos também acreditar na evolução dos sentimentos e das emoções, da inteligência e outras características interiores que são de todos os seres vivos.
A inteligência, portanto, está dispersa na vida. Do vírus à planta ao fungo, da árvore à galinha, ao rato ao homem, ao elefante, até nos animais que consideramos mais tolos está a marca da grande inteligência da vida.
Entre as queixas mais frequentes dos habitantes primordiais do Mediterrâneo, peixes, mamíferos, primatas, não Sapiens, está a "estupidez" da humanidade atual.
Sim, porque alguém acreditou, errando e mal interpretando Darwin, que a evolução biológica seja o resultado da prevalência do mais forte. Na realidade, na Natureza não é o mais forte que prevalece, mas o mais apto. E o mais apto é aquele que melhor coopera. Com os indivíduos da mesma espécie, mas também com as outras espécies; na natureza existem muitos exemplos. O Sapiens deu seu salto evolutivo em condições privilegiadas porque soube usar a palavra para fins de cooperação que o tornou apto.
Então, por que não podemos mais acessar essa estratégia de espécie – cooperando com inteligência coletiva – praticada por macacos, ratos, golfinhos? Se nos reunimos para soltar apenas rios de palavras, não conseguimos obter nada. Ainda conversamos, mas não cooperamos mais, ou melhor; cooperamos o mínimo possível. Por quê?
Somos impedidos pelo desejo e vontade de acumular bens. Uma coisa que na Natureza, fora de nós, não existe e que é a verdadeira diferença entre o Sapiens e os outros seres vivos para os quais a acumulação e o desejo de bens são desconhecidos. E quem acumula, sempre gostaria de acumular cada vez mais e, assim, há quem, inevitavelmente, fica com pouco ou nada. Por que não cooperamos? Difícil cooperar com quem tira tudo de você. É muito difícil se por trás de cada palavra falada existe o desejo de prevalecer. Desejo que também usa de astúcia para chegar ao objetivo. Uma das invenções mais eficazes e astutas do mal, como costumo dizer, não foi tanto o plástico como, nos anos 1960, a forma de lançá-lo no mercado.
Um material potencialmente eterno não garantia grandes margens de lucro. Então optou-se por propô-lo como material descartável. Você não pode lucrar muito? Então você o joga fora imediatamente, depois de usá-lo apenas uma vez. E hoje, como nos lembram os outros seres vivos do Mediterrâneo, as ilhas de plástico sufocam o mar. Não há cooperação, mas predação sem futuro.
No livro também fala a elefanta Elly, que acabou com seus semelhantes nas ilhas que se formaram no jovem Mediterrâneo em ebulição vulcânica. Eram grandes, pesados e com pouco espaço e recursos. "Assim, nos tornamos menores, mais leves - conta - e a comida que encontramos foi suficiente para nós." Como podemos ficar menores?
Nós também devemos nos tornar menores, mais leves, como aqueles grandes mamíferos. Somos muito pesados; nós homens do mundo ocidental sobretudo, porque outros ao contrário ainda são muito leves. Temos que nos tornar mais leves porque, por nossa responsabilidade, nos encontramos vivendo com territórios e recursos limitados. Certamente não podemos fazer como os grandes elefantes que passaram por uma evolução muito lenta guiada pela limitação e pelo acaso. Mas certamente poderíamos aliviar nossa pressão sobre um ambiente que não nos sustenta mais. Isso pode ser feito muito mais rapidamente e pode ser traduzido na exortação a não cortar o galho em que estamos sentados e a escolher estilos de vida que consumam menos”.
Assim, tornarmo-nos todos menores, mais leves, resolveria o problema de sermos muitos.
Acredito que não, os recursos são o que são e se os empobrecermos continuamente, o número de Sapiens na Terra torna-se demasiado alto. Pelo menos se todos quiserem viver como os estadunidenses e não, por exemplo, como os indianos. Mas ninguém, especialmente aqueles que estão em melhor situação e consomem mais, está disposto a pesar menos. Vamos pegar os indianos. Se eles quisessem consumir peixe no nível dos japoneses, seriam necessários 90 milhões de toneladas por ano só para eles. Isso é quase tudo que já se pesca e se consome no mundo sem que eles se sentem à mesa. Não funciona, somos demais.
Poderíamos mudar nosso estilo de vida. Poderíamos deixar o atum em paz, por exemplo. Você nos explica que com um ano de trégua, teoricamente, poderíamos repovoar o Mediterrâneo.
Mas não queremos deixar os atuns em paz. Já foi dito de forma muito clara e inequívoca pelos países mais fortes: defenderemos os nossos estilos de vida. Que é uma fórmula que se ouve repetir inclusive quando se justifica a continuação da guerra. Defender os estilos de vida, como são. Trata-se de um modelo de desenvolvimento antieconômico, exceto para poucos, o único que conhecemos. E continuando nesse ritmo, uma crise alimentar poderia assolar em nível global antes da crise energética.
O Mediterrâneo está também se tornando um laboratório da economia azul que visa a regeneração dos ecossistemas e o "cultivo" dos recursos do mar que são resilientes. As alternativas existem.
O sistema econômico que se torna circular, baseado na imitação da natureza, é sempre melhor do que o que temos agora. Mas os recursos continuam sendo limitados, não dá para multiplicá-los. Já cultivamos tudo que pode ser cultivado, pescamos tudo que pode ser pescado. Além de um certo limite, é impossível ir sem colocar em risco os recursos.
Alguém diria, esperemos pela paz com os atuns e o meio ambiente. Não foi por acaso que a COP27 escolheu colocar o Mediterrâneo entre os grandes nós ecológicos e geopolíticos a desatar para resolver a crise climática. Você está confiante?
Não. Os cientistas dão indicações precisas, mas não se vê vontade de traduzi-las em ação política.
Porque ninguém abre mão do que tem. E o mais forte pretende continuar sendo o mais forte. Só grandes catástrofes, infelizmente, criam acordos. Você não vê líderes ou figuras carismáticas com impacto midiático que manifestem isso, aliás, vejo apenas duas. O Papa Francisco e uma garota de tranças. Greta. São os únicos que colocam corretamente a questão a partir das indicações dos cientistas e não de posições ideológicas. A esperança é que consigam acordar alguém.
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Até os outros seres vivos nos pedem paz. Entrevista com Mario Tozzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU