31 Agosto 2022
"Diante das obscuras ameaças do futuro, é melhor prender-se em torno da figura de um pai onipotente que protege a ordem ameaçada de maneira granítica em vez de pular no vazio. No caso de Putin, essa nostalgia endossa um sistema de poder antidemocrático e autoritário que gera uma psicologia das massas centrada na identificação idealizadora com o líder. Aqui o pai assume a aparência de um Deus que decide não apenas o destino de seu povo, mas também aquele do mundo inteiro", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 30-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "o apelo ao medo, de onde quer que venha, é sempre inimigo do pensamento. Não é por acaso que o binômio medo e nostalgia resulta sempre decisivo: o medo do futuro impele a recuperar nostalgicamente as nossas antigas certezas. Por isso, neste tempo de grandes traumas coletivos e de desorganização do antigo arranjo geopolítico do mundo, a nostalgia parece irresistivelmente dominar o olhar da política".
Em momentos de maior crise e incerteza, a tendência humana é olhar para trás para encontrar no passado uma bússola capaz de orientá-lo no presente. É, como sabemos, o valor da história como lição: a memória do que aconteceu deveria nos ajudar a não repetir mais os mesmos erros eencontrar o caminho certo. Mas às vezes essa tendência compreensível se sobrepõe a outra, mais conservadora, e querendo até mesmo mais patológica, que se caracteriza por uma decisiva disposição nostálgica: se o presente é um tempo de caos e precariedade, a referência a um passado mais ou menos glorioso serve para alimentar a ilusão de que, para sair desse estado de crise, seja possível restaurar a estabilidade de uma ordem antiga.
Isto é o que, por exemplo, está acontecendo de modo evidente na Rússia de Putin. A herança da União Soviética é interpretada como a conservação de um passado glorioso que exige a reafirmação tanto dos grandes valores da tradição quanto das antigas fronteiras territoriais. Neste caso fica claro como a existência de um passado idealizado define completamente uma política de restauração.
O culto da guerra patriótica contra os invasores nazistas se transfigura assim no projeto de desnazificação da Ucrânia. A incerteza sobre o futuro gostaria de ser resolvida com uma regressão nostálgica a uma potência antiga. Não é por acaso que, como bem aponta Sergej Lebedev em Nostalgia e Autoritarismo (Castelvecchi, 2022), Putin pôde afirmar que o colapso da URSS foi “a maior catástrofe geopolítica do século XX”.
Freud definiu essa tendência de encontrar em um passado idealizado o que falta no tempo presente como uma "nostalgia do pai". Diante das obscuras ameaças do futuro, é melhor prender-se em torno da figura de um pai onipotente que protege a ordem ameaçada de maneira granítica em vez de pular no vazio. No caso de Putin, essa nostalgia endossa um sistema de poder antidemocrático e autoritário que gera uma psicologia das massas centrada na identificação idealizadora com o líder. Aqui o pai assume a aparência de um Deus que decide não apenas o destino de seu povo, mas também aquele do mundo inteiro.
Na Itália, Draghi foi a personificação do “lado bom” dessa “nostalgia do pai”. Diante do abalo da pandemia e da ação instável do governo, recorreu-se a um líder que oferecesse competência, reputação e sabedoria aptas a criar um novo campo de unidade nacional.
Na atual campanha eleitoral, porém, o olhar nostálgico para o passado encontra outras expressões que parecem acentuar o lado “ruim” da nostalgia do pai. Na direita evocam o orgulho nacional, o soberanismo, os valores da pátria, da família, a primazia da etnia itálica.
Os neofascistas da Primeira República não eram justamente chamados de nostálgicos? Mas desta vez o apelo aos valores da tradição vem através de uma nova liderança. Não se deveria esquecer que Giorgia Meloni é a primeira mulher a desempenhar um papel de liderança plena na história política italiana. Seria inconcebível em outra época. É como se a potencialidade de um espaço novo – uma liderança finalmente feminina– estivesse repleto de conteúdos antigos.
À esquerda, o olhar nostálgico assume a forma da reproposição do antifascismo como embate de civilizações. Trata-se da recuperação de uma oposição que esteve inclusive na base do nascimento da República italiana: fascistas e antifascistas, defesa da constituição republicana ou desvio autoritário do Estado.
Mas o que se pode notar é que em ambas as narrativas – como acontece com frequência em todas as narrativas nostálgicas – o medo está sempre no centro. Da direita vem o medo do imigrado, da afirmação dos direitos civis, da Europa, das transformações sociais irreversíveis que modificaram a nossa vida coletiva. O uso sintomático da palavra "desvio" revela claramente essa inclinação básica. O desvio, na perspectiva de valor-tradicional da Direita, é fundamentalmente aquela da própria liberdade de poder decidir sobre a própria vida, os próprios afetos e, até mesmo, a própria morte.
É o ponto em que a visão de mundo de Putin se cruza claramente com aquela da direita italiana: família, pátria e Deus. Da centro-esquerda, por outro lado, se acentua o medo em relação a essa mesma direita como se fosse a encarnação de um possível fantasma do fascismo, como se nessas eleições estivesse realmente em jogo a vida e a morte da democracia.
Mas o apelo ao medo, de onde quer que venha, é sempre inimigo do pensamento. Não é por acaso que o binômio medo e nostalgia resulta sempre decisivo: o medo do futuro impele a recuperar nostalgicamente as nossas antigas certezas. Por isso, neste tempo de grandes traumas coletivos e de desorganização do antigo arranjo geopolítica do mundo, a nostalgia parece irresistivelmente dominar o olhar da política.
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Quando a política é nostalgia. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU