13 Agosto 2022
Desde os anos 1980, Nelly Richard (Caen, França, 1948) se tornou uma das vozes mais destacadas da crítica cultural na região, devido a um pensamento que, traduzido em uma extensa obra, hibridiza a filosofia com a teoria da arte, a crítica literária e as teorias feministas.
Em 25 de agosto, receberá da Universidade de Buenos Aires o título de Doutora Honoris Causa, mas esta não é a data que a intelectual, que reside no Chile desde 1970, aguarda com maior expectativa. É que no dia 4 de setembro, será votado em plebiscito o sim ou o não à Nova Constituição do país transandino, processo sobre o qual refletiu via e-mail, neste diálogo com Infobae Cultura, bem como sobre os perigos que espreitam o feminismo, a cultura do cancelamento, o papel da arte nas sociedades atuais e os efeitos da pandemia.
Estudante da Sorbonne de Paris, entre os anos 1970 e 1980, Richard deu forma teórica à Cena Avançada, reconhecida internacionalmente como a principal referência experimental da arte de resistência à ditadura militar. Foi uma das organizadoras do Primeiro Congresso de Literatura Feminina Latino-Americana, em 1987, um dos mais significativos atos de resistência cultural contra o pinochetismo. Mais recentemente, de 1990 a 2008, foi a responsável pela revista de Crítica Cultural, além de posteriormente dirigir o Mestrado em Estudos Culturais, na Universidade ARCIS, em Santiago, e coordenar a Cátedra Políticas e estéticas da memória, no Centro de Estudos Museu Reina Sofia, em Madri.
Entre as dezenas de livros que escreveu, estão títulos como La insubordinación de los signos (cambio político, transformaciones culturales y poéticas de la crisis) (1994), Residuos y metáforas. Ensayos de crítica cultural sobre el Chile de la transición (1998), Crítica y política (2013), Diálogos latinoamericanos en las fronteras del arte (2014), Latencias y sobresaltos de la memoria inconclusa (2017), Abismos temporales. Feminismo, estéticas travestis y teoría queer (2018), e Zonas de tumulto: memoria, arte, feminismo (2021).
A entrevista é de Juan Batalla, publicada por Infobae, 10-08-2022. A tradução é do Cepat.
Como antecipação, quais serão os eixos de seu discurso na Universidade de Buenos Aires? Por que escolheu esses temas?
O texto que compartilharei tem como título Tramas: o político, o crítico e o estético e propõe repassar os nós que me fizeram refletir sobre o lugar da criação e do pensamento crítico nos agitados contextos sociais e políticos que me coube transitar: da ditadura militar à revolta social e à Nova Constituição no Chile. Como sou daquelas que acredita em reflexões “situadas”, pareceu-me honesto forjar o discurso atravessando os espaços e tempos que serviram de contexto para meus ensaios.
Entre a revolta social de 2019 e a Convenção Constitucional, o que mudou no Chile? Qual é a sua opinião sobre a possível Nova Constituição?
A primeira coisa que aconteceu, imediatamente após a revolta, foi a pandemia que nos forçou a passarmos do tempo intensivo da revolta, cujo desejo utópico era mudar tudo, para o tempo detido, sequestrado, das quarentenas que dilataram as perspectivas de futuro, deixando quase tudo em suspenso.
Mesmo assim, o Chile retomou o impulso vital das aspirações da revolta para organizar as forças de mudança que votaram no Plebiscito de 25 de outubro de 2020, aprovando majoritariamente (80%) a iniciativa de redigir uma Nova Constituição. Os 154 membros eleitos por votação popular, com regras de paridade de gênero e cadeiras reservadas aos povos originários, foram os responsáveis por redigir o texto constitucional que deverá substituir a Constituição de 1980, ditada por Augusto Pinochet.
O novo texto é orientado por um claro desejo de transformação que, entre outras definições, propõe uma distribuição descentralizada do poder político, formula um Estado garantidor dos direitos sociais e estabelece mecanismos de inclusão e participação de setores desprezados. São muitas as inovações propostas e essas mudanças, obviamente, assustam aqueles que vivem agarrados à Constituição de 1980, cujo modelo autoritário e excludente de democracia restrita tem beneficiado a elite política e econômica do país.
As pesquisas, até o momento, mostram uma rejeição ao “Aprovo”. Em sua opinião, por que isso acontece?
A ameaça de que a Nova Constituição retire privilégios dos “ricos e poderosos” desencadeou uma brutal investida midiática da direita e da ultradireita contra o “Aprovo”. Por outro lado, existe o conservadorismo cultural e de valores de uma composição do país dominada por um modelo patriarcal e colonial que resiste, entre outros, aos avanços do feminismo, ao reconhecimento do povo indígena e outras ampliações de direitos.
O que está em jogo é a oportunidade histórica de revogar uma Constituição ilegítima (a de Pinochet), viciada em sua origem, substituindo-a por uma proposta de mudança que inclua as demandas majoritariamente expressas durante a revolta social e que projeta uma sociedade não mais baseada no lucro e na ganância como a anterior, mas em valores mais comunitários.
É verdade que, no momento, as pesquisas indicam que o “Rejeito” venceria. Mas sabemos muito bem que as pesquisas, mais do que refletir a opinião pública, a moldam em função dos interesses dos grupos empresariais da direita que controlam a imprensa hegemônica.
Eu confio que os jovens e as mulheres (setores que deram a vitória ao atual presidente Gabriel Boric, em novembro passado) votarão enfaticamente “Aprovo uma Nova Constituição”: uma Constituição cujo texto declara que “o Chile é um Estado social e democrático de direito. É plurinacional, intercultural, regional e ecológico. Constitui-se como uma república solidária. Sua democracia é inclusiva e paritária”.
O exemplo do que aconteceu no Chile deixa claro que, ao contrário do que sustenta certo discurso, o povo nas ruas ainda tem um peso específico no destino do país, como acontecia no século passado. Considera que é um exemplo que pode se repetir em outros países da América do Sul? Por quê?
A gigantesca agitação político-social das estruturas de governabilidade desencadeada pela revolta social de novembro de 2019, no Chile, não teria acontecido sem “o povo nas ruas”. No mais, trata-se de um “povo” cuja força de mobilização e participação, durante os longos anos da transição, foi deixada de lado ao substituir sua categoria pela de “gente”: uma categoria muito mais dócil que designa uma massa anônima disposta a ser moldada por estatísticas de consumo e pesquisas de opinião.
A revolta social devolveu ao “povo” uma carga de energias rebeldes que havia sido desativada pela transição, com sua combinação de Consenso e Mercado como base de sustentação homogeneizadora da “democracia de acordos”. A multiplicidade da revolta popular de outubro de 2019 questionou com veemência todo o aparato político-institucional que, durante a transição, desejou neutralizar a potência contestatória e reivindicatória das organizações sociais.
No entanto, não se trata do mesmo “povo” que os partidos de esquerda tentaram conduzir no século passado: um povo depositário da verdade da história que seguiria de um modo unívoco o caminho da emancipação. Embora seja verdade que, no momento das rebeliões na América Latina e no resto do mundo, é o “povo” que se invoca e convoca como força soberana, já sabemos que o povo não existe - como um substrato ontológico de uma identidade-essência do popular.
Basta ver a disputa conceitual e política entre populismos de esquerda e populismos de direita para saber que a categoria “povo” está em questão por definições e representações e que esse é um dos desafios complexos enfrentados pelos governos transformadores que se propõem redefinir a democracia a partir da(s) esquerda(s).
A revolta começou com uma espécie de rebelião jovem, que se negava a pagar um aumento na passagem do transporte público. Nesse sentido, nos últimos anos, convergem movimentos juvenis em todo o mundo que, a partir da hiperconexão, avançam em reivindicações que até pouco tempo atrás estavam minadas, como o ambientalismo ou as questões de gênero. No entanto, também há jovens e certos espaços da sociedade mais conservadores que enfrentam essas mudanças. Qual é a sua visão do fenômeno?
A Praça da Dignidade foi o lugar em Santiago do Chile onde convergiram todos os corpos, durante a revolta, para protestar contra os abusos do neoliberalismo e formular algumas das reivindicações que você aponta. O que basicamente unia esses corpos era a manifestação coletiva de “ser contra”, sem que necessariamente compartilhassem um programa de mudança política que unificasse suas vontades a médio ou longo prazo. E justamente porque o povo não é “Um” e as multidões são impuras, as identidades que se reúnem nas praças para rejeitar o poder estabelecido podem depois se dispersar ou partir para direções contraditórias.
Os trajetos híbridos de identidade que se reúnem no “nós” da revolta, às vezes, bifurcam-se de modo abrupto devido à fragmentação das demandas dos grupos e comunidades. Dois anos após a revolta social em que todo o Chile parecia ter realizado uma acentuada guinada à esquerda antineoliberal, venceu no primeiro turno das últimas eleições presidenciais um candidato de extrema direita que somou uma votação de 44%. Este é o melhor exemplo de que os estados de ânimo das pessoas, da população e das multidões oscilam velozmente, segundo as emoções (medos, ressentimentos, ódios etc.) que impactam nas subjetividades em estado de crise.
Qual foi o lugar da arte neste momento histórico? Você considera que o ativismo sobre a arte “oficial” (refiro-me aos apresentados em museus ou diferentes exposições etc.) tem, atualmente, maior capacidade para ajudar a mudar a sociedade? Propõe uma mudança de paradigma no papel da arte nas sociedades contemporâneas? Por quê?
Durante a revolta, as ruas se encheram de murais e grafites, com performances de rua que foram celebradas como uma “arte de protesto”. A vitalidade comunicativa e participativa dessas manifestações as fez aparecer em consonância direta com a agitação das ruas e seu slogan “O Chile acordou”. Como costuma acontecer em contextos de efervescência social, ocorre uma valorização do ativismo artístico que dissolve os limites institucionais da arte, recorrendo a meios e mediações socioculturais para que a arte se torne comunitária.
Eu não retiro os méritos dessas estratégias sociais e comunicativas de inserção direta da arte na comunidade, mas devo confessar que, assim como Rancière, desconfio um pouco da fé cega no “modelo pedagógico da eficácia da arte”, como se existisse uma cadeia linear de causa e efeito entre a (boa) intenção do autor, a transmissão explícita da mensagem politicamente comprometida e sua repercussão em massa na sociedade. Não acredito que a relação entre “arte” e “política” deva ser simétrica em sua correspondência de significados, tempos, ritmos e sequências.
Nem todas as obras devem, para serem “políticas”, entrar em diálogo ao vivo e direto com o acontecimento. Podem refletir indiretamente sobre os eventos e acontecimentos, revisitando histórias e memórias através da dissonância e a anacronia. Nem todas as obras que almejam ser lidas como “políticas” precisam ser performances que reivindicam presença para os corpos vitimados de acordo com o roteiro estético e político da representação. Pessoalmente, tenho mais interesse na arte crítica que reflete sobre o regime de visibilidade das formas, desconstruindo o olhar e suspeitando da transparência das imagens.
Nesse sentido, nos últimos anos, as mobilizações feministas foram as que tiveram maior capacidade para colocar em disputa o funcionamento da sociedade em muitos níveis, do cotidiano e doméstico ao macro e, por conseguinte, também despertaram uma contrarresposta que busca deslegitimar. Em sua avaliação, qual é o estado das coisas?
O protagonismo das mobilizações feministas que você ressalta é indiscutível. No caso do Chile, por exemplo, não teria como entender a revolta de outubro de 2019 sem o antecedente da insurreição feminista, de maio de 2018, que colocou em cena uma performatividade dos corpos cuja desobediência de rua questionou todo o simbolismo dos poderes instituídos.
Além disso, assim como na Espanha, na Argentina e em outros países da América Latina, o feminismo soube tornar visíveis as intersecções entre patriarcado e capitalismo de um modo que deveria nos fazer pensar que não é mais possível, para a esquerda, pensar em transformações antineoliberais sem incorporar decisivamente o feminismo em seus projetos.
Em sua opinião, as mudanças vieram para ficar? Quais devem ser os caminhos naturais para que isso aconteça?
Sabemos que nada do que foi conquistado é definitivo e que as conquistas, lamentavelmente, são reversíveis. Basta tomar o peso da recente decisão da Suprema Corte de Justiça dos Estados Unidos, que revogou a proteção do direito ao aborto, aprovada em 1973.
Na Espanha e na América Latina, assistimos hoje como se desencadeia a ofensiva contra a “ideologia de gênero” pela direita e a ultradireita que não estão dispostas a aceitar que sua moral “familiar” se desmorone ou que o binarismo masculino-feminino seja questionado como esquema de classificação anatômica dos corpos sexualizados. O feminismo, com todos os seus avanços, segue sob ameaça.
Qual é a sua opinião sobre os coletivos de mulheres que consideram que o patriarcado não existe?
Para mim, esta afirmação não resiste à menor análise (nem prática, nem teórica), pois é fácil comprovar os modos como a hierarquia do masculino-dominante regulamenta tanto os mundos privados como as estruturas públicas. É exatamente isso que o feminismo expõe.
Falo do feminismo não apenas como um movimento social, mas também do feminismo como uma teoria crítica que reformulou o campo do pensamento contemporâneo em torno de identidades e subjetividades. É esta dupla dimensão que traz a sua força de interpelação.
Vivemos uma época de “cancelamentos” que se articulam através das redes sociais e que, em muitos casos, têm efeito direto sobre a vida das pessoas e nas decisões das instituições. Quais são os benefícios e perigos desse comportamento?
Muito já se escreveu sobre o papel das redes sociais no mundo contemporâneo. Destacou-se sua capacidade – positiva - de conectar sujeitos e comunidades para que interajam horizontalmente entre si ou, ao contrário, seus efeitos – negativos - de degradação da política e a democracia, de exacerbação da agressividade através do insulto camuflado pelo anonimato etc. Seria necessário nos referir ao debate já colocado sobre o capitalismo digital, sobre o impacto das tecnologias cujas redes fabricam comportamentos e subjetividades em série.
Pessoalmente, não sou usuária de redes sociais. Tenho uma relação com a escrita que me leva a apreciar a calma reflexiva, a demora na busca da palavra apropriada e isso, claro, é incompatível com a velocidade do tráfego da troca de opiniões via Twitter, que circula massivamente reações primárias, aproveitando a instantaneidade do momento.
Um dos discursos sociais no auge da pandemia é que “sairíamos melhores”. Qual é a sua opinião a esse respeito? É algo que será visto a longo prazo ou os acontecimentos mundiais já demonstram que foi apenas um slogan carregado de otimismo utópico?
A pandemia suspendeu abruptamente a certeza dos diagnósticos e prognósticos sobre a evolução do capitalismo e o devir social e político do mundo em escala planetária. Foi curioso que, assim que a pandemia começou, pensadores “homens” (Agamben, Zizek, Badiou, Byung-Chul Han etc.) foram os primeiros a reconfirmar a verdade de suas teses a partir das tribunas filosóficas de um saber autorizado. Pareciam não ter percebido que, além de demonstrar a fragilidade da existência humana, a pandemia também afetou os domínios da ciência e da filosofia que proclamavam verdades absolutas.
Durante a pandemia, o feminismo soube desvendar o reverso feminizado-precarizado do produtivismo capitalista da forma como se manifestou no cotidiano do trabalho informal, dos cuidados domésticos etc. Por sua vez, o feminismo questionou os controles (masculinos) daquele conhecimento que busca abarcar tudo olhando de cima, dominando a perspectiva. Todos esses dispositivos de autoridade superiores se tornaram não confiáveis. A pandemia nos ensinou que estamos submersos na incerteza em relação ao futuro e esquecermos essa lição seria pecar por soberba intelectual.
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“Sem o feminismo, não é possível pensar em transformações”. Entrevista com Nelly Richard - Instituto Humanitas Unisinos - IHU