Esperava-se da Suprema Corte dos Estados Unidos uma revogação do direito ao aborto, mas não desse modo. O preço que o país paga é uma divisão sem precedentes desde os tempos da Guerra Civil há 160 anos: uma divisão entre cidadãos em Estados diferentes, entre os dois partidos políticos, entre culturas, entre Igrejas e religiões.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado na revista Il Regno, julho de 2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O sonho do movimento pro-life, de quase 50 anos de idade, se tornou realidade. No dia 24 de junho de 2022, com a publicação da decisão Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization sobre a proibição do aborto após 15 semanas no Mississippi, a Suprema Corte Federal dos Estados Unidos efetivamente revogou o direito ao aborto nos Estados Unidos, assim como ele havia sido instituído pela sentença Roe v. Wade de 1973 e modificado pela sentença Planned Parenthood v. Casey de 1992. É uma data histórica para os Estados Unidos e particularmente para a Igreja Católica.
Dobbs era uma sentença esperada, especialmente depois que o esboço das motivações elaboradas pelo juiz Samuel Alito havia sido vazado para a imprensa e publicado em 2 de maio pelo Politico. A excepcionalidade dessa sentença reside não apenas no tema, o mais controverso na política estadunidense nos últimos 50 anos, mas também porque consiste em um caso raro de completa inversão de um precedente – o de Roe v. Wade –, que os três juízes nomeados por Donald Trump para a Suprema Corte (Samuel Gorsuch, Brett Kavanaugh, Amy Coney Barrett) também haviam afirmado nas audiências ao Congresso que consideravam intocável.
Esperava-se dessa Corte uma revogação do direito ao aborto, mas não desse modo. A maioria dos juízes por trás dessa decisão, de seis votos a favor e três contrários, reflete as relações de força atuais dentro da Corte entre os partidos republicano e democrata, dos presidentes que os nomearam.
Mas, na realidade, também poderia ser lida como uma sentença de cinco votos a favor e quatro contrários. De fato, o chief justice da Corte, John Roberts, nas suas motivações de apoio à maioria, distanciou-se das decisões dos cinco colegas conservadores, por exemplo, quando afirmou que a sentença poderia ter se limitado a modificar a Roe v. Wade, colocando limites ao direito ao aborto a partir do momento em que o feto pode sobreviver fora do útero.
Em vez disso, os cinco juízes (todos católicos e de formação católica, assim como Roberts) optaram em maioria por devolver aos Estados individuais a possibilidade de legislar sobre o aborto, negando que motivações de igualdade constitucional imponham à legislação federal competência sobre a questão. A dissidência contra a sentença, formulada com uma linguagem muito dura, partiu dos três juízes da minoria liberal, nomeados pelos presidentes democratas (Elena Kagan, Stephen Breyer e Sonia Sotomayor).
Dentro do front conservador, Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization sanciona a derrota das tentativas do católico moderado Roberts de impedir o extremismo dos outros cinco juízes nomeados por presidentes republicanos.
Essa sentença foi condenada por todas as maiores associações médicas e sanitárias, e também pelo mundo empresarial, em um sistema como o estadunidense em que a assistência à saúde por meio de seguros privados faz parte dos contratos de trabalho (enquanto muitas vezes falta aos trabalhadores de baixa renda uma assistência à saúde eficaz e oportuna). Grandes empresas como Amazon, Apple, Disney e Netflix ampliaram os benefícios para incluir as despesas para os funcionários e suas famílias que precisassem viajar para ter acesso a uma série de procedimentos médicos, incluindo o aborto, o planejamento familiar e a saúde reprodutiva.
A decisão cria uma situação de grande disparidade entre cidadãos estadunidenses, com alguns Estados controlados pelo Partido Republicano (especialmente no Sul e no Centro-Oeste) que já acionaram leis que tornam o recurso ao aborto um crime (Kentucky, Louisiana, Arkansas, Dakota do Sul, Missouri, Oklahoma, Alabama), e outros Estados que farão isso em breve (Mississippi, Dakota do Norte, Wyoming, Utah, Idaho, Tennessee, Texas). Salvo intervenções in extremis das Cortes, o aborto se torna ilegal em muitos desses Estados.
Estão previstas exceções nas leis dos Estados individuais para proteger a vida da mulher, mas permanece em aberto se a Constituição exige exceções à proibição ao aborto para proteger a vida ou a saúde da mãe, para as vítimas de estupro ou incesto, ou por deficiência fetal.
A sentença da maioria observou que a lei do Mississippi prevê exceções para patologias específicas ou emergências e anomalias fetais, mas não afirmou que tais exceções são necessárias. Sobre isso, a sentença da Corte poderia ter imposto exceções aos Estados, mas optou por não fazê-lo.
Os Estados com governadores e parlamentos com maioria do Partido Democrata tornam-se “santuários” para o direito ao aborto para as mulheres que vêm de Estados onde o aborto se tornou ilegal. Califórnia e Connecticut submeterão ao voto a proposta de inserir nas suas Constituições o direito ao aborto. Está prevista uma série de consequências imediatas em nível nacional, como recursos às Cortes contra leis que pretendam ajudar as mulheres a viajar para outros Estados onde o aborto ainda é legal e um aumento do recurso ao aborto farmacológico.
A relutância de alguns procuradores distritais (a maioria dos quais são eleitos por sufrágio universal direto) a abrirem processos penais contra quem pratica o aborto já está complicando o panorama legal em alguns Estados. Nacionalmente, a revogação da Roe v. Wade poderia pressagiar um ataque em um futuro próximo a outras sentenças constitucionais de grande relevo. Não é teoria da conspiração: encontra-se no parecer escrito pelo juiz Clarence Thomas, que pediu que a Corte reveja os precedentes das sentenças Griswold (sobre a legalidade da contracepção, 1965), Lawrence (sobre as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, 2003), e Obergefell (a favor do casamento homossexual em nível federal, 2015).
A Roe v. Wade havia disposto que não houvesse restrições ao acesso ao aborto no primeiro trimestre de gravidez e até a viabilidade do feto; no segundo trimestre, impunha limites visando à proteção da saúde da mulher; para o terceiro trimestre, permitia que os Estados proibissem o aborto sob a condição de que houvesse exceções em favor da proteção da vida e da saúde da mulher.
De 1973 até hoje, essa sentença havia posto a legislação sobre o aborto nos Estados Unidos em uma posição particular em relação a outros países, até mesmo no Ocidente, como uma das mais liberais e libertárias, com notáveis diferenças até em relação à lei 194 na Itália, sob muitos pontos de vista: do procedimento (papel central das Cortes e do sistema federal nos Estados Unidos, e do Parlamento na Itália), da cultura jurídica e das motivações morais (um direito constitucional nos Estados Unidos; na Itália, a defesa do direito à saúde da mulher em um sistema voltado a limitar o número de abortos) e, em geral, do sistema socioeconômico em que a questão se insere (a falta de um sistema nacional de saúde pública e de apoio à maternidade nos Estados Unidos, começando pela licença parental, mesmo para quem trabalha para instituições católicas).
No espectro das diferentes opções legais possíveis, entre a proibição em nível constitucional por um lado e o direito ao aborto inserido na Constituição por outro (entre as outras opções intermediárias: ilegal mas descriminalizado, ou legal mas limitado e desencorajado), a Roe v. Wade havia fundamentado a interrupção voluntária da gravidez sobre o direito constitucional à privacidade, indo até mesmo além das expectativas dos ativistas pro-choice da época.
Agora, com a sentença Dobbs, o pêndulo volta a oscilar para o extremo oposto em muitos Estados dos Estados Unidos, com a Suprema Corte restituindo-lhes o seu direito de legislar – poucos dias depois que a própria Corte havia negado ao Estado de Nova York o poder de fazer isso acerca do direito de portar armas.
A sentença foi celebrada e deplorada com manifestações de rua dos lados opostos, em Washington e em outras cidades, a maioria sem incidentes. Mas isso é apenas o começo. Outras sentenças da Corte de maioria republicana destes últimos anos trazem a marca de uma defesa da religião no espaço público (o direito de rezar em eventos esportivos de escolas públicas, o financiamento público para escolas cristãs): uma Corte que lembra os Estados Unidos dos anos 1950 e que sinaliza uma derrota epocal para o front laicista e separacionista.
É uma nova época de ativismo judiciário, não mais de sinal progressista (como lamentavam os republicanos até alguns anos atrás), mas de sinal oposto: é a vitória do movimento legal conservador, alimentado em grande parte por católicos presentes nas faculdades de Direito, nas salas do Congresso e dos parlamentos dos Estados, e nos círculos intelectuais próximos a bispos e financiadores orgânicos do Partido Republicano.
Não é o fim da história do direito ao aborto nos Estados Unidos, mas, mesmo assim, uma etapa fundamental na longa marcha que durou 50 anos, tendo chegado a esse sucesso epocal graças à presidência de Donald Trump. O movimento político-religioso pro-life adotou uma estratégia de extremo pragmatismo, tornando-se, a partir da eleição de Ronald Reagan em 1980, a espinha dorsal do Partido Republicano e adotando, de vez em quando, com o objetivo de derrubar a Roe v. Wade, este ou aquele líder político, mas sem se entregar para sempre a nenhum deles.
Ao mesmo tempo, desde os anos 1990, a participação do catolicismo conservador nas guerras culturais iniciadas pelo protestantismo evangélico facilitou uma mutação do movimento antiabortista: de um movimento popular, de manifestações de rua, a um movimento de elite que transformou a classe política do Partido Republicano e se inseriu no mundo intelectual e acadêmico (especialmente nas faculdades de Direito).
Uma lei que codificava o direito ao aborto em termos libertários foi derrubada; para o conservadorismo religioso, termina uma distopia estadunidense, enquanto o mundo liberal-progressista denuncia o início de uma distopia de signo oposto. A questão da defesa da vida se reabre.
Mas, nos Estados Unidos de hoje, isso ocorre na ausência daquelas instituições que poderiam ajudar a encontrar uma solução para um dilema moral que, na era da biopolítica, se entrelaça com as ameaças ao direito à privacidade digital e, nas Igrejas, à disputa sobre o gênero, sobre a inclusão de católicos LGBT e sobre as violências e os abusos sexuais.
O preço que os Estados Unidos pagam é uma divisão sem precedentes desde os tempos da Guerra Civil há 160 anos: uma divisão entre cidadãos em Estados diferentes, entre os dois partidos políticos, entre culturas, entre Igrejas e religiões. Há muito tempo, o Congresso é incapaz de legislar eficazmente, com raras exceções (como o financiamento do envio de armas para a Ucrânia).
A Suprema Corte perdeu a sua autoridade e legitimidade como instituição super partes e é vista como um superpoder, expressão das relações de força entre os dois partidos, desequilibrados agora e pelas décadas por vir (devido à nomeação vitalícia de juízes ainda relativamente jovens) em favor de um Partido Republicano cada vez mais trumpiano, qualquer que seja o futuro político de Donald Trump.
Antes da sentença, no contexto da situação econômica internacional e nacional (com uma inflação nos níveis mais altos há 40 anos), esperava-se uma vitória dos republicanos nas eleições de meio termo de novembro de 2022 e um governo Biden órfão da maioria do Congresso. A sentença da Suprema Corte pode dar uma vantagem eleitoral aos democratas, cada vez mais identificados como o partido do aborto, também devido à inospitalidade e à hostilidade do partido para com o pessoal político que se distancie da ortodoxia pro-choice.
São cada vez mais insistentes os descontentamentos com a capacidade de Biden (e da sua vice, Kamala Harris) de se apresentar, fazer uma campanha eleitoral extenuante in loco (que não ocorreu em 2020 devido à pandemia) e vencer as próximas eleições presidenciais de 2024 (quando Biden terá quase 82 anos).
Mais dividida do que nunca está a Igreja Católica, que desempenha um papel central na história do aborto nos Estados Unidos: ainda nos anos 1970, ela teve um papel maior e pioneiro em relação às Igrejas protestantes devido ao seu posicionamento sobre o direito natural e sobre as questões da vida na tradição magisterial e teológica.
A divisão entre católicos é evidente quando lemos o modo como diversas vozes oficiais comentaram a sentença: tons triunfalistas, de Te Deum, no comunicado da Conferência Episcopal (presidida pelo arcebispo de Los Angeles, José Horacio Gomez) e de alguns bispos ativos no movimento pro-choice; menos celebrativos nos cardeais Blase Cupich de Chicago, Joseph Tobin de Newark, Sean O’Malley de Boston e Wilton Gregory de Washington, por exemplo, que expressaram a consciência de que a revogação do direito federal ao aborto não equivale a uma maior proteção da vida nos Estados Unidos, na ausência de políticas econômicas e sociais adequadas.
Não muito diferente é a divisão entre os católicos, que poderia aumentar, já que a sentença dará origem a legislações extremamente diferentes e extremistas dentro do país.
Essa sentença complica ainda mais as relações entre a presidência do católico Biden, os bispos dos Estados Unidos e o pontificado de Francisco. Ajudado por alguns cardeais da Cúria Romana e nos Estados Unidos, nos últimos dois anos o papa fez muito para proteger Biden das sanções que uma parte substancial dos bispos queria e gostaria de impor em termos de uma exclusão da Comunhão eucarística dos políticos católicos do Partido Democrata (o presidente, mas também a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, os políticos católicos no Congresso e nos parlamentos locais).
Nas declarações após a sentença, tanto Biden quanto os católicos do Partido Democrata se posicionaram sem meios termos pela defesa da Roe v. Wade, prometendo uma resposta em nível legislativo. No dia 29 de junho, no contexto de uma série de compromissos institucionais (na Embaixada dos Estados Unidos junto à Santa Sé e com a Comunidade de Santo Egídio em Roma), Nancy Pelosi participou da missa da solenidade de São Pedro e São Paulo na Basílica de São Pedro no Vaticano, presidida pelo Papa Francisco, durante a qual recebeu a Comunhão: um ato interpretado por muitos como uma resposta, senão um desafio, à proibição de receber a Comunhão declarada contra Pelosi em maio de 2022 pelo ordinário da sua diocese, San Francisco, o arcebispo Salvatore Cordileone.
Por um lado, a sentença Dobbs torna mais difícil para Francisco defender Biden na tentativa de desarmar a escalada das “guerras culturais” nas quais o aborto sempre teve uma função simbólica e política extraordinária; por outro lado, dá a muitos bispos a perigosa ilusão de que ficar do lado do Partido Republicano é a solução para enfrentar os males dos Estados Unidos.
A parte do episcopado que festeja a vitória de modo acrítico parece ignorar a equação moral que une o aborto, os cortes na previdência e as desigualdades econômicas exacerbadas pela doutrina do turbocapitalismo ultraliberal do Partido Republicano nos últimos 40 anos. O Partido Democrata tentou frear essa deriva socioeconômica, mas também se despediu do compromisso sobre o aborto dos anos do governo Clinton, “aborto legal, seguro e raro”.
Qualquer pessoa que, na cena política e pública dos Estados Unidos do movimento #MeToo e da crise do sistema democrático, desejar tornar os abortos mais raros se exclui da possibilidade de dialogar com a cultura liberal-progressista.
Uma das sentenças mais importantes da história da Suprema Corte veio durante a celebração do Congresso Mundial das Famílias em Roma e das audiências da Comissão Parlamentar de Inquérito dos Estados Unidos sobre a tentativa de golpe de Trump de 6 de janeiro de 2021.
O pontificado de Francisco tentou ler as questões sociais e morais em uma chave diferente daquela da contraposição ideológica, em uma crítica implícita ao “American way of life” na sua versão tanto liberal quanto progressista, em uma recuperação do Vaticano II não apenas sobre as questões litúrgicas, mas também de uma visão de laicidade aberta e positiva, de sadia colaboração entre a comunidade eclesial e a civil.
Mas os Estados Unidos hoje vão em uma direção diferente.