16 Julho 2022
A proposta de Riccardo Cristiano (“Sair da guerra civil bioética”, publicada em Settimana News, 06-06-2022 [disponível em italiano aqui]) é sugestiva, até oportuna pela problemática levantada, mas extremamente carente (infelizmente). Porque a “guerra civil bioética” que atravessa o mundo católico não é a descrita. Repito: não é a descrita.
O comentário é de Fabrizio Mastrofini, jornalista e psicólogo italiano, publicado em Settimana News, 08-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A guerra civil bioética começa de modo diferente, quando o Papa Francisco assume uma expressão e uma abordagem à bioética que nascem no mundo secular e se chamam “bioética global”. Para quem quiser saber mais, a referência é o livro “Global Bioethics. An Introduction” [Bioética global. Uma introdução], de Henk ten Have (2016, que resume mais de uma década de estudos), traduzido para o italiano em 2020 (Piccin Editore).
Capa do Livro "Global Bioethics. An Introduction", de Henk ten Have
Foto: Divulgação
E a encíclica Laudato si’, colocando os temas da bioética em conexão com os temas ambientais, aproxima-se da “bioética global”, que se torna, depois, o centro da reflexão de uma instituição vaticana como a Pontifícia Academia para a Vida (não por caso, Ten Have é um dos acadêmicos).
Hoje, a bioética é “bioética global”. Um tema inaceitável para os setores tradicionalistas católicos (e não só), que se apegam à ética dos comportamentos e às respostas prontas a serem dadas a problemas específicos (fertilidade, fecundação, sexualidade e vida conjugal etc.).
Essa abordagem não é possível hoje diante dos desafios da tecnologia aplicada ao setor médico-sanitário e não é possível diante da vastidão dos problemas ambientais que põem em risco a existência de cada um de nós no planeta inteiro.
Não por acaso, a bioética global também discute a equidade dos sistemas de saúde, a possibilidade de acesso a medicamentos e a tratamentos, todas questões que se abrem para uma visão não ocidental da medicina, como a pandemia demonstrou.
Então: primeiro ponto. O terreno do debate (choque) é a bioética global.
Segundo. Não é mais possível – hoje –, diante das tecnologias que temos, falar de vida humana desde a concepção até a morte natural. Acima de tudo, porque a bioética global se interessa com aquilo que está no meio, ou seja, como viver os anos à disposição. E depois porque “concepção” não tem o sentido imediato que podemos perceber, se pensarmos nas tecnologias a que os indivíduos e os casais recorrem quando “naturalmente” não conseguem ter filhos.
Pouco importa que a “doutrina” os proíba: as técnicas de fecundação assistida existem e são utilizadas, mudando profundamente os parâmetros da parentalidade (referência e autocitação para resumir as problemáticas: ver o meu livro “Curare la vita” [Cuidar da vida], EDB).
Capa do livro "Curare la vita", de Fabrizio Mastrofini. (Foto: Divulgação)
E, em relação à “morte natural”, também não faz muito sentido usar essa expressão diante das possibilidades de reanimação até o ponto da obstinação irrazoável (também chamada de “obstinação terapêutica”), que querem retardar ao máximo o momento final e os calorosos debates políticos destes meses – destinados a aumentar – sobre as definições e sobre quem deve decidir o quê . E, na Itália, com uma lei sobre as Disposições Antecipadas de Tratamento que é amplamente desconhecida e não aplicada.
Acrescentemos, além disso, os Estados que intervieram com leis (divisivas e controversas) a favor de formas de eutanásia e de suicídio assistido (Bélgica, Holanda, Espanha – para ficar na Europa), ou, quando não conseguem fazê-lo (Itália), recorrem aos tribunais que devem fazer aplicar uma sentença do Tribunal Constitucional (na ausência de uma lei), e, assim, se dá a luz verde a furiosos debates ideológicos.
Então, segundo ponto: os termos dos problemas mudaram profundamente e não é possível ficar preso apenas às questões relativas ao aborto e a quando a vida humana começa e termina.
Desse ponto de vista, a Igreja padece de uma escassa capacidade de debater com a ciência e com o seu avanço. Basta olhar para aqueles setores que ainda (ainda!!!) não aceitam a definição de morte no sentido de morte cerebral e, portanto, nem mesmo os transplantes, e permanecem firmemente apegados à definição de morte no sentido de parada cardíaca.
Então, como é possível sair da “guerra civil bioética”? Como diria um poeta (querido ao padre Antonio Spadaro), o siciliano Bartolo Cattafi: com um corte seco. E quem quiser saber mais pode ler a reflexão que convergiu no livro-debate “Etica teologica della vita” [Ética teológica da vida] (Libreria Editrice Vaticana), editado pela Pontifícia Academia para a Vida.
Capa do livro "Etica teologica della vita".
Foto: Divulgação
Deve-se retomar o diálogo com a ciência e aprofundar, livrando-se dos óculos dos preconceitos anticientíficos para fazer avançar a reflexão ética e encontrar soluções (que são indicadas no volume).
O Magistério dirá a sua opinião quando quiser. Enquanto isso, teólogos, humanistas, cientistas estão discutindo. Sabendo que, nesse setor, cada caso médico e humano é um caso único (o que leva à explosão dos tradicionalistas, para os quais tudo se reduz à aplicação de princípios, de preferência imutáveis), porque as condições de cada um são específicas e particulares.
E a Igreja faria melhor em sair da guerra civil não fomentando-a, mas começando seriamente a trabalhar por uma ética compartilhada da vida humana, reconhecendo também os limites dos nossos saberes.
Mas essa é outra discussão, mais ampla, a ser feita mais adiante.
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Aborto e bioética global - Instituto Humanitas Unisinos - IHU