26 Julho 2022
“Tornar-se pessoas que perdoam não é esquecer. É abrir a porta para a graça criativa de Deus. É inseparável de aprender a falar com a outra pessoa que o feriu. Descongelar o mar; abrir o caminho para palavras de cura; deixando o deserto estéril da dor ser tocado pela primavera”, escreve o dominicano Timothy Radcliffe, ex-mestre da Ordem dos Pregadores (1992-2001), em artigo publicado por The Tablet, 19-07-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Esta é a segunda de duas reflexões extraídas de uma palestra proferida em maio a jovens que estão discernindo a sua vocação para a vida religiosa. A primeira pode ser conferida aqui.
Estar plenamente vivo é ser capaz de esperançar e perdoar. A Eucaristia é uma expressão audaciosa de esperança em desafio a um mundo que parece empenhado em sua destruição. Mas para viver plenamente com esperança agora, neste tempo de desgraça, também precisamos perdoar. Começamos cada Eucaristia lembrando nossos pecados e pedindo perdão. Esta é uma maneira estranha de começar uma celebração! O cálice abençoado na Última Ceia foi “a nova e eterna aliança derramada por vós e por muitos para remissão dos pecados”. Aproximando-se do clímax, vemos o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. O judaísmo e o islamismo acreditam em um Deus misericordioso, mas o cristianismo é único por ter o perdão em seu coração.
Mas aqui chegamos a uma dificuldade. Muitos jovens não são atraídos por uma religião que fala sem parar sobre o pecado. As pessoas não querem vir à igreja para ouvir que são pecadoras terríveis e que precisam de perdão. Parece esmagador e deprimente. A vida é dura o suficiente sem que sempre me digam que sou um pecador. É como se primeiro você tivesse que convencer as pessoas de que suas roupas estão sujas para que elas comprem sua marca de sabão em pó. É por isso que, quando prego, quase nunca uso a palavra “pecado”.
As pessoas muitas vezes afirmam que os jovens perderam o senso de pecado. Mas isso é um erro. Ele mudou. Existe uma maneira totalmente nova de entender o pecado. De fato, os jovens têm um idealismo moral muito elevado. Eles são muito mais gentis e tolerantes do que a minha geração jamais foi. Há um profundo senso de igualdade de todas as mulheres e homens. O preconceito contra as pessoas em razão de sua cor ou orientação sexual é abominável. Há uma percepção aguda do dano que estamos causando ao meio ambiente e do horror do abuso sexual.
Mas esse idealismo pode ser esmagador. Como podemos suportar esses ideais se não há perdão para todos os nossos fracassos? O falecido cardeal Francis George, arcebispo de Chicago, escreveu certa vez que no mundo de hoje “… enquanto praticamente tudo é permitido, praticamente nada é perdoado”. A atmosfera está carregada de acusações. O mundo está dividido em vítimas e perpetradores. Um único erro, um momento de loucura, ficará registrado para sempre. As redes sociais não esquecem nada. Somos maculados por qualquer associação com os erros de nossos ancestrais. Estátuas são derrubadas, escolas, prédios e estradas são renomeados. Ex-heróis como Mahatma Gandhi e Aung San Su Kyi são denunciados como vilões. Devemos ser puros, imaculados, incontaminados.
Esta é a “espiral de pureza”. As pessoas trabalham cada vez mais para se desassociar do impuro, do ofensivo. Assim, nossos jovens estão sobrecarregados com o fracasso em alcançar a perfeição moral e, muitas vezes, não têm nenhuma concepção de perdão. E a autoridade da Igreja para pregar o perdão está profundamente comprometida pela crise dos abusos sexuais. Quem somos nós para dizer a outras pessoas que os pecados devem ser perdoados? Como ousamos?
Quando você se torna um dominicano, você se deita no chão com suas roupas e o superior provincial lhe pergunta: “O que você procura?”. E você responde: “Misericórdia de Deus e a sua”. Você pede para se juntar a uma comunidade fundada na misericórdia. No centro de sua formação está aprender o que significa dar e receber misericórdia. Isso não significa esquecer – “Ah, eu sinto muito por ter assassinado o diretor novato”; “Ah, todos nós nos deixamos levar. Vamos esquecer isso". Perdoar significa algo muito diferente.
Há apenas um grande ato de perdão, e esse é o Domingo de Páscoa. Na Sexta-Feira Santa colocamos o Amor Encarnado numa cruz. Rejeitamos o Deus que é amor. A cruz foi um ato de destruição estéril, sem vida e sem sentido. Mas no Domingo de Páscoa, Jesus encontrou Maria Madalena em um jardim. Esta foi a primavera irreprimível de Deus. A madeira morta da cruz deu flores. Nesse momento, tudo é perdoado. Não precisamos esquecer.
Deixe-me dar apenas dois exemplos, ambos amigos dominicanos.
Primeiro, Pierre Claverie era um dominicano francês, bispo na Argélia. Pierre dedicou toda a sua vida ao diálogo com o Islã. Quando aquele país adorável foi tomado por uma violência louca na década de 1990, ele sabia que era provável que fosse assassinado, como os monges trapistas retratados no filme “Homens e Deuses” (de Xavier Beauvois, 2010). Um dia voltou a Oran, onde era bispo, de uma reunião em Argel. Os terroristas estavam esperando. Ele entrou em sua casa com um jovem amigo muçulmano que o buscou no aeroporto. Uma bomba explodiu e seus corpos foram pulverizados. Quando cheguei para o funeral, três dias depois, encontrei uma irmã ainda recolhendo os restos mortais em uma colher. A destruição brutal de dois amigos, um cristão, um muçulmano.
Mil muçulmanos foram ao funeral de Pierre. No final, uma jovem muçulmana se levantou e disse que havia deixado sua fé, mas Pierre a trouxe de volta. Ele era o bispo dos muçulmanos também. Todos na congregação começaram a dizer também: ele era o bispo dos muçulmanos. Quando fui a Oran para sua beatificação, encontrei seu túmulo coberto de flores deixadas por peregrinos muçulmanos e cristãos. Essa é a fertilidade do perdão, não do esquecimento. Isaías proclamou: “Alegrem-se o deserto e a terra seca, o campo floresça de alegria... os aleijados saltarão como cervo, e a língua do mudo cantará, porque jorrarão águas no deserto e rios na terra seca” (Isaías 35, 1; 6).
O outro exemplo, de outra amiga. A irmã dominicana Pauline Quinn nasceu em uma rica família não-cristã em Hollywood, mas sofreu um terrível abuso sexual. Ela foi enviada para muitas instituições onde foi estuprada repetidamente, inclusive pelos médicos. Ela começou a cortar seu corpo. Seus braços estavam cobertos de cicatrizes. Ela se tornou uma errante vivendo nas ruas por muitos anos. E então ela conheceu uma irmã católica, e também um cachorro, um pastor alemão chamado Joni. Eles lhe deram segurança e carinho pela primeira vez. Ela foi recebida na Igreja e até que foi aceita como irmã dominicana. Sua vida tornou-se maravilhosamente frutífera. Ela trabalhou com vítimas de guerra de todo o mundo, permitindo-lhes ter membros protéticos, encontrando-lhes empregos. Ela trabalhou com prisioneiros, treinando-os para treinar cães para ajudar os deficientes. A graça triunfou sobre a feiura do pecado, e sua vida se tornou bela. Ela morreu de câncer há dois anos.
Às vezes, a fonte do perdão demora muito para chegar. Não se pode forçar. Vemos isso especialmente com o perdão por abuso sexual. Rezamos todos os dias: “Perdoai os nossos pecados assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”, mas não podemos exigir que as outras pessoas perdoem. Seria outra forma de abuso. Quando as pessoas estão perdidas no que Stephen Cherry chama de “o deserto da dor”, elas devem ter tempo para que o perdão surja. As feridas de décadas, mesmo séculos, não podem ser curadas ao nosso comando, assim como nossos corpos feridos. Meu cirurgião me diz que levará 18 meses para as feridas da minha última operação removerem um tumor canceroso para curar completamente. Pense no tempo que será necessário antes que o povo ucraniano seja capaz de começar a contemplar o perdão daqueles que estão causando agora seu terrível sofrimento. O perdão é inseparável da paciência.
Portanto, tornar-se pessoas que perdoam não é esquecer. É abrir a porta para a graça criativa de Deus. É inseparável de aprender a falar com a outra pessoa que o feriu. Descongelar o mar; abrir o caminho para palavras de cura; deixando o deserto estéril da dor ser tocado pela primavera.
Devemos lembrar que nem quem é ferido nem aquele que fere é definido pelo ato. Eles não devem ficar presos pelos rótulos de “vítima” e “perpetrador” para sempre. Há uma fraternidade de leigos dominicanos nos Estados Unidos cujos membros são principalmente pessoas presas por assassinato. Eles podem ter cometido assassinato, mas não estão presos para sempre pela definição de “assassino”. Adorei conhecer um velho assassino da máfia que havia matado muita gente, mas que agora recita seu breviário. Ele me disse que se sentia como uma freira dominicana enclausurada. Tenho orgulho por ele ser meu irmão. Compartilhamos nossa fé explicitamente por palavras ou implicitamente pelo modo como vivemos. Acreditamos que nossa fé é verdadeira, e os seres humanos só podem prosperar no ar puro da verdade. O Senhor da verdade nos convoca a viver agora. E fazemos isso deixando de lado o fardo do passado e nos abrindo para a promessa do futuro. Se isso nos liberta para viver, as pessoas podem se perguntar por quê. Podemos até estar um pouco em chamas, como a sarça ardente que Moisés viu. Ele então disse: “O que está acontecendo aqui? Vamos dar uma olhada!”
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Por que estar plenamente vivo significa ter esperança e perdoar. Artigo de Timothy Radcliffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU