16 Março 2016
"A prática da misericórdia, claro, não pertence apenas ao mundo das religiões. Antes, engloba a sociedade humana como um todo. Senão, neste momento, que seria do mundo sem a acolhida dos refugiados de guerras no Oriente Médio na Europa?", escreve Inácio José Spohr, coordenador do Programa Gestando o Diálogo Inter-Religioso e o Ecumenismo - GDIREC.
Eis o artigo.
Tomei contato com o tema “misericórdia” ainda na infância. Para mim foi, então, deveras surpreendente. Pois, ouvindo o relato de um acidente entre uma carroça puxada a cavalo e um caminhão na região onde morava, uma tia saiu-se com esta: “Misericórdia!”. E repetiu a palavra (inusitada para mim) várias vezes. Sim, no entender da tia a misericórdia deveria ser toda do cavalo, pois o pobre animal, a serviço de um vizinho, tivera uma perna quebrada. Nada tão problemático assim, tanto que foi salvo pelo veterinário da região. Mas a tia, como sempre, apiedara-se religiosamente do animal assim como teria feito com qualquer outro “filho de Deus” em situação de infortúnio. Eu, e não poderia ter sido de outro modo, costumava ficar de olho nesta tia porque, afinal, ela era uma especialista na arte de socorrer quem quer que fosse ferido, doente, recém-nascido, criança, idoso, alquebrado, pobre, desorientado, condenado, ignorante, excluído... Não era uma pessoa fraca. Era uma mulher rica em misericórdia.
Passando da área pessoal para a do mundo, aprendi (e ainda aprendo) que palavras e gestos misericordiosos movem “mundos e fundos”. Sempre moveram. Por isto também não é outro o discurso do Papa Francisco pronunciado há alguns meses na Audiência Geral Inter-Religiosa (dia 28 de outubro de 2015). Diz o Papa:
“A misericórdia para a qual somos chamados abraça toda a criação que Deus nos confiou para sermos cuidadores e não exploradores, ou, pior ainda, destruidores”.
Note-se que Francisco, pastor máximo da Religião Católica com sede em Roma, naquele momento interage com um grupo composto por líderes religiosos de credos muito diferentes entre si. Mas, descontadas as diferenças, todos os presentes têm em comum o diálogo inter-religioso e a firme vontade de propiciar paz e harmonia entre os povos desde a perspectiva de sua fé. Mais do que isto, o momento reforça, sobretudo, a convicção de que todos os membros de um credo religioso, principalmente seus líderes, devem ser misericordiosos cuidadores de toda a criação de Deus.
O tema da misericórdia (com ou sem fundamento religioso) ocupa lugar excepcionalmente importante nas condições da vida de todo o planeta. Seu sentido original orienta o coração (cors) a ser solidário com os pobres (miseri), a entrar em comunhão com eles. Ou seja, aponta um excelente caminho para quem busca sair do egoísmo e ir ao encontro do outro, a ir ao encontro de todos os que, por serem pobres, doentes ou afligidos pela miséria, precisam de efetiva ajuda.
A prática da misericórdia, claro, não pertence apenas ao mundo das religiões. Antes, engloba a sociedade humana como um todo. Senão, neste momento, que seria do mundo sem a acolhida dos refugiados de guerras no Oriente Médio na Europa? Que seria dos pobres, dos doentes, dos portadores de deficiências físicas, dos idosos, das crianças e tantos outros grupos desprovidos da condição que preserva a dignidade humana, se não existissem instituições, inclusive estatais, especializadas na arte de dar provimento às necessidades destes? Portanto, mais do que uma atitude pessoal e/ou de grupos, a misericórdia exige do mundo, dos governos dos países, do nosso estado, do nosso município, a capacidade institucional de dar andamento a uma rede de proteção e acolhida a quem necessita desse serviço.
Mas é no meio das religiões que a misericórdia adquire particular importância. E não é só em uma ou outra religião. No Islamismo a fonte da misericórdia se encontra mesmo em Deus, que é efetivamente “o misericordioso, o dispensador de misericórdia” (Alcorão 59:22). Em outro lugar as escrituras islâmicas recomendam, de forma inequívoca, que “nenhum árabe pode pretender ser superior a um estrangeiro (não-árabe) se não pela sua piedade. Não é dos nossos o que prega o racismo” (Hadith, Palavras do Profeta).
No Budismo (nesta religião não existe um Deus, mas há Divindades) as Divindades orientam os líderes espirituais para que deem vital importância à compaixão, à misericórdia. Já entre os adeptos do Hinduísmo, outra religião que vem do Oriente, o contato destes com a Deusa da Misericórdia (ou Deusa da Compaixão) representa a encarnação viva da generosidade, da vida compassiva e amorosa. A Deusa da Compaixão inspira, sobretudo, as mulheres que pretendem assumir a maternidade. Em caso de doença é a esta “Mãe” que recorrem.
E, finalmente, além do catolicismo já destacado acima e mais conhecido em nosso meio, cito ainda que a prática da misericórdia vem a ser fundamental na vida de todos os adeptos das religiosidades de matriz africana. Isto porque, de acordo com o Pai Nilton de Oxum (de São Leopoldo, RS), “a misericórdia na Religião Africana está acima de tudo”. Como diz, a Religião Africana busca levar seus participantes a uma adesão incondicional à prática do perdão, da acolhida, da inclusão.
Ah! Mas o mundo está cheio de ódio, violência... Verdade! Mas que seria da humanidade, da terra, do meio ambiente, das religiões, da política, da economia sem o chamado à misericórdia? Que seria de nós sem o chamado de que devemos ser responsáveis pela preservação e dignidade de toda a criação de Deus?
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Misericórdia: A eterna busca de todas as religiôes, de toda sociedade humana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU