05 Julho 2022
Os exércitos vencedores exercem um direito de posse sobre o corpo das mulheres dos vencidos, tanto para dar vazão ao instinto sexual dos soldados, quanto para aterrorizar e humilhar as populações derrotadas. As mulheres são ao mesmo tempo a recompensa do soldado, mas também a continuação do combate. Violar a mulher do inimigo é feri-lo naquilo que se considera que ele tem de mais íntimo e de mais precioso.
A opinião é da historiadora italiana Lucetta Scaraffia, membro do Comitê Italiano de Bioética e professora da Universidade de Roma La Sapienza. O artigo foi publicado por La Stampa, 04-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os testemunhos de violência sexual perpetrados por soldados russos contra mulheres e crianças ucranianas continuam a chegar, muitos via web, mas quase sempre anônimos. Na zona rural, ainda vigora uma cultura patriarcal, e tenta-se evitar a desonra, mas também se temem represálias.
Justamente por isso, a investigação das Nações Unidas registrou um número de estupros supostamente muito inferior à realidade: 124, dos quais 59 contra crianças. Tanto é que o escritório de Iryna Venediktova, procuradora-geral de Kiev, fala de cerca de 11.000 casos a serem examinados e continua investigando.
Na Polônia, onde foi acolhido o maior número de refugiados, a Médicos sem Fronteiras constatou um número muito elevado de gravidezes indesejadas, muito provavelmente consequências de um estupro. Mas, na Polônia, o aborto é quase impossível, e, portanto, as refugiadas são forçadas a aceitar o filho. Na realidade, trata-se de uma propagação tão grave da violência sexual a ponto de levar a representante da organização feminista Jurfem, que inclui muitas advogadas ucranianas, a afirmar que “o estupro é utilizado pelo exército russo como arma contra o povo ucraniano”.
A violência perpetrada pelas forças armadas russas, no entanto, não é denunciada com a coragem e a continuidade que merece, nem na Ucrânia, nem pelas mídias estrangeiras. A razão é logo evidente: os estupros de guerra ocorrem sempre, em todos os lugares e quase não são mais notícia. Até mesmo na Ucrânia, onde a comissária dos direitos humanos Ludmila Denisova, que compartilhou as denúncias feministas, levantou a forte oposição de muitos deputados que a acusaram de insistir demais nas violências, acabando por pôr em segundo plano outros crimes como a deportação de civis e as condições desumanas dos prisioneiros de guerra. E obviamente despertando o entusiasmo da propaganda russa, que se serviu desse caso para denunciar como fake news as notícias das violências.
Acima do confronto entre dois países, parte de uma guerra muito dura em andamento, parece estar se desdobrando um conflito entre mulheres e homens, um conflito que tem atrás de si uma tradição plurissecular. Os exércitos vencedores exercem um direito de posse sobre o corpo das mulheres dos vencidos, tanto para dar vazão ao instinto sexual dos soldados, quanto para aterrorizar e humilhar as populações derrotadas. As mulheres são ao mesmo tempo a recompensa do soldado, mas também a continuação do combate. Violar a mulher do inimigo é feri-lo naquilo que se considera que ele tem de mais íntimo e de mais precioso.
Não é óbvio que as violências sexuais sejam sempre planejadas pelas hierarquias militares, basta que os comandantes fechem um olho. E o Estado-maior russo é bem conhecido por fechar os olhos quando a Rússia invade um território inimigo. A história nos lembra das violências em massa contra as mulheres alemãs na fase final da Segunda Guerra Mundial e onde quer que o Exército Vermelho tenha saído vitorioso.
Mas os ucranianos também faziam parte desse exército vitorioso e não se distinguiam dos russos nos estupros sistemáticos. Prova disso é que, na guerra dos últimos anos no Donbass, não só os russos e os pró-russos se mancharam com esse crime, mas também aqueles que combatiam do outro lado, os ucranianos, embora em menor grau.
Por isso, denunciar as violências dos soldados, mesmo que sejam russos, é sempre visto como inoportuno. E isso não ocorre apenas na Ucrânia. De fato, embora proibido por todas as leis que regulamentam os direitos de guerra, o estupro coletivo só foi considerado crime de guerra ou, melhor, crime contra a humanidade a partir de 2008. Mas essa medida não foi seguida pelos fatos, como o atendimento às vítimas de violência sexual de acordo com o protocolo que é seguido no caso de pessoas submetidas à tortura.
A guerra entre mulheres e homens está entrelaçada com todas as outras. E ameaça não acabar nunca.
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Estupros e violência sexual usados como armas de guerra. Artigo de Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU