20 Junho 2022
O cardeal alemão próximo a Francisco: "Os homossexuais como parte da nossa comunidade. A sexualidade que Deus nos deu faz parte das relações pessoais”. - Em qualquer casal, o sexo não é apenas para reprodução, o que importa é o amor sincero e respeitoso.
E também, o celibato dos padres: não é um dogma e pode ser revisto. A mensagem do Evangelho, que deve superar as rigidezes eclesiásticas. O cardeal alemão Reinhard Marx, arcebispo de Munique, membro do Conselho de Cardeais estabelecido pelo Papa Francisco, profere palavras marcantes.
A entrevista com Reinhard Marx é de Domenico Agasso e Letizia Tortello, publicada por La Stampa, 18-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eminência, o mundo saiu sofredor da pandemia, agora está dobrado pela guerra. Qual é o papel da Igreja Católica hoje?
A Igreja, ou seja, o povo de Deus, acompanha sempre as pessoas e as suas dores. Não pode estar fora do mundo, senão é anacrônico. Alguém gostaria de transformá-la em uma fortaleza, esperando que as tempestades passarem. Mas esse não é o trabalho dela. Deve ser testemunho de uma nova esperança. Para transmitir que a vida é mais forte que a morte. Porque durante a pandemia vivemos a fragilidade da vida humana, porque à nossa volta sempre há alguém que quer dominar os outros. O povo de Deus, para consolar e encorajar, para alcançar a paz, é chamado a preencher os fossos e derrubar os muros.
Não é uma boa renovação se a Igreja continua a distribuir dogmas e educar pretendendo saber o que as pessoas precisam. Jesus, ao contrário, estava junto com as pessoas, não se erguia dando ordens. A Igreja não pode limitar-se a olhar o passado definindo-o como ‘glorioso’, porque não existe mesmo toda essa glória. Devemos não apenas buscar modalidades para fazer sobreviver a instituição eclesiástica, mas encontrar estratégias para difundir em uma sociedade aberta e plural o Evangelho como convite, como ‘empoderamento’. Não são as pessoas que devem mudar, é a Igreja que deve mudar.
O celibato parece estar se tornando mais um impedimento do que uma promessa para o mundo sacerdotal. É hora de remover essa prática, que não é um dogma? A possibilidade de se tornarem maridos e pais não ajudaria a desempenhar melhor as funções de orientação?
Para abordar esse tema, devemos começar por nos perguntar: como se vive melhor o Evangelho? Jesus pelo menos 40/50 vezes (no Novo Testamento) fala do Reino de Deus, mas não diz apenas o que acontecerá após a morte. Segundo Jesus, o Reino de Deus começa agora, quando nos reunimos em sua memória, quando encontramos a reconciliação. O que as pessoas precisam hoje? De pessoas que celebram e trazem a Eucaristia, dão o bom exemplo, dedicam a vida à Igreja e ao Evangelho. Só os não casados podem fazer isso?
Vou colocar um ponto de interrogação. Penso nos colaboradores pastorais leigos, aqui na Alemanha, que pregam, que acompanham os funerais. Penso na Amazônia, onde os fiéis esperam dois ou três anos para poder receber a Eucaristia porque não há sacerdotes. Certamente o celibato é um forte sinal para o seguimento de Cristo. Mas mantendo o celibato obrigatório, não estamos mantendo viva apenas uma tradição? Era correta, mas talvez hoje não em todos os lugares. Acredito que também há vocações sacerdotais entre os homens casados.
A Igreja alemã está pressionando fortemente por um papel mais central para as mulheres na instituição. Os tempos estão maduros? Também para o sacerdócio feminino?
“A questão do papel da mulher na Igreja está mais do que madura e é fácil entender. Só os padres podem liderar a Igreja? Não. Precisamos da responsabilidade e dos carismas de todos e de todas, juntos. Em Munique criei o novo cargo de chefe ofício, atribuído a uma mulher, que como colíder junto com o vigário geral dirige a administração da diocese. Os homens não podem dizer "nós procuramos, mas não encontramos pessoas adequadas", isso é hipócrita: basta querer procurá-las e encontrá-las. Na Igreja alemã, lançamos um programa de orientação para apoiar a liderança feminina.
Os sinais dos tempos devem ser lidos. Homem e mulher são iguais: isso está fundamentado na Bíblia. Se não vivermos essa igualdade, estaremos seriamente atrasados. A reforma deve ser acelerada. Sobre o sacerdócio feminino, João Paulo II havia tomado uma decisão contrária muito específica. Mas essa discussão ainda não acabou, anos não serão suficientes. Entretanto, porém, é necessário fazer com que as mulheres participem mais intensamente na vida da Igreja, inclusive nos cargos mais altos: não para ser uma Igreja que agrada, mas porque é um ditame do Evangelho”.
A pedofilia é a chaga mais imperdoável da Igreja. Como é erradicada e como pode ser prevenida?
“O escândalo dos abusos não diz respeito exclusivamente à pedofilia em sentido estrito, os perpetradores de abusos têm perfis diferentes. O problema subjacente é o abuso de poder. É particularmente grave porque os sacerdotes têm um poder sagrado. No entanto, padres que abusaram de crianças, no dia seguinte se apresentaram tranquilamente no altar. É terrível.
Criei uma fundação para vítimas de abusos, para todos aqueles que perderam a fé depois de terem sofrido violências. A prevenção é fundamental, já estamos vendo os resultados: o número de assédios diminuiu. Mas tudo isso não pode acontecer sem um processo global de renovação da Igreja, sem uma nova colaboração de padres e leigos. O Caminho Sinodal, o processo de reforma que iniciamos na Igreja na Alemanha, também tem seu ponto de partida na luta contra todas as formas de abuso, inclusive espiritual”.
A sexualidade faz parte do ser humano. O senhor não acredita que a moral católica deveria mudar sua abordagem?
“Aqui, também, e necessário de um crescimento de conscientização. A pergunta que deveríamos fazer é: Como podemos ajudar as pessoas a viver o evangelho? O evangelho prevê relações pessoais. A sexualidade que Deus nos deu faz parte das relações pessoais. E não deve ser assimétrica. Os dois parceiros devem estar no mesmo nível, até porque a sexualidade, como diz o Concílio Vaticano II, não é apenas para a reprodução.
Por muito tempo houve a convenção de que fosse assim, agora não mais. Porque somos seres humanos e não animais, a sexualidade faz parte da relação, expressa um sentimento; deve ser medida pelo nível de amor que existe entre duas pessoas. O sexo também é uma forma de demonstrar amor. Não é automaticamente um pecado, deve ser uma forma de aceitação do outro. Esta é a moral”.
A Igreja está realmente acolhendo pessoas homossexuais?
“Fui recentemente convidado para uma missa católica organizada por pessoas LGBTQ+ em Munique. Eu a celebrei pelo vigésimo aniversário dessas missas. Fiz isso depois de informar o Papa, queria dar um sinal: ‘Vocês fazem parte da Igreja’. A orientação sexual não pode e não deve comportar uma exclusão da Igreja. Não é possível! Os casais homossexuais também vivem sua relação com amor: então, por que não dizer a esses casais ‘que Deus os acompanhe em seu caminho’ como um encorajamento?
Basicamente, estamos falando de uma bênção, não do sacramento do matrimônio. Certa vez me expressei assim e depois tive uma série de problemas... O centro dos casais, homossexuais e não, não é o sexo: é representado pelo desejo de passar a vida juntos, pelo amor, confiança mútua, fidelidade até a morte. Portanto, não posso dizer que tudo isso é pecado. Claro, a discussão sobre isso é muito emocional. De vez em quando fico surpreso que esse assunto ainda encontre tanta resistência."
Voltemos à guerra. O que o senhor acha da posição assumida pelo patriarca de Moscou Kirill?
“No dia 24 de fevereiro eu estava em Roma, no carro. Ouvi sobre a invasão russa da Ucrânia, liguei imediatamente para o bispo da Igreja Ucraniana Unida em Munique. E depois, no domingo seguinte, fui à sua missa, e já na saudação inicial lancei um apelo ao Patriarca Kirill para fazer tudo para parar esta guerra. Isso foi bem recebido aqui por muitos crentes da Igreja Ortodoxa Russa.
O Papa também enviou mensagens semelhantes à minha, sempre dirigidas ao Patriarca. O comportamento de Kirill é incompreensível e insuportável: como pode um homem da Igreja ficar ao lado de um agressor e abençoar guerra e violência? Muitos fiéis da Igreja Ortodoxa Russa já se separaram e estão se unindo à Igreja Ortodoxa Ucraniana. A posição de Kirill tem enormes consequências dramáticas tanto do ponto de vista político quanto ecumênico. Provoca danos a todo o cristianismo”.
Há muitos anos vocês trabalharam na nova constituição apostólica, "Predicate evangelium". Quais são as principais novidades?
“O Papa diz que a Cúria, ‘direção’ da Igreja universal, não é uma secretaria do Pontífice. É claro que o Papa é a base da unidade da Igreja, mas o Concílio também diz claramente que a Igreja não é como uma pirâmide. Deve haver, mais do que um todo, um encaixe entre a Igreja universal e a Igreja local. Não existe uma sem a outra.
A Cúria não é apenas uma entidade intermediária, mas deve apoiar esse conjunto. Mas como essa instituição pode ser organizada? Padres e leigos, homens e mulheres podem trabalhar lado a lado, mesmo em cargos de direção? O Papa diz um claro sim. Talvez os cardeais no futuro serão mais um senado do Papa, os vários cargos precisam ser reorganizados. Além disso, deve haver tarefas específicas nos dicastérios (ministérios). Será um grande passo, coisas importantes vão acontecer”.
Por exemplo?
“Em outubro de 2013, no meu primeiro discurso ao Conselho dos Cardeais, eu falava da “desclericalização da Cúria”. Mas a reforma deve continuar”.
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“O celibato dos padres não é um dogma”. Entrevista com Reinhard Marx, cardeal-arcebispo de Munique - Instituto Humanitas Unisinos - IHU