06 Junho 2022
"A cultura católica continuava a basear-se na doutrina da guerra justa. Enquanto o magistério procedia a uma redução cada vez maior dos critérios de legitimação do recurso à guerra, os católicos continuavam a dormir na convicção de que o Evangelho justificasse o uso das armas. Mesmo quando o Papa Francisco lembrou explicitamente que o Evangelho exigia responder à guerra com o método da não-violência ativa, o mundo católico não prestou muita atenção ao estudo de alternativas às armas."
O artigo é de Daniele Menozzi, historiador do cristianismo e professor emérito da Normale di Pisa, publicado por La Croix, 03-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Os esforços do Papa Francisco para denunciar o uso de armas na Ucrânia são entendidos. Devido à doutrina da “guerra justa” que marcou o catolicismo, falta uma reflexão que permita identificar e promover métodos não violentos para responder à violência da agressão.
Desde o início da invasão russa da Ucrânia, o Papa Francisco deixou claro que a atitude da Rússia era uma violação do direito internacional. Em suas intervenções públicas não há ambiguidade na distinção entre o agressor e o agredido. Mas a prudência da linguagem usada pelo papa tem um motivo preciso: não quer ofender o agressor, porque quer manter aberto o caminho do diálogo e da negociação. O papa está preocupado com a paz. Os dirigentes políticos que usam linguagem que tira espaço para a busca de uma solução diplomática para o conflito evidentemente têm objetivos diferentes. Não esqueçamos também que o patriarcado de Moscou apoia a agressão russa: a linguagem do papa também se explica pela tentativa de manter aberto o diálogo ecumênico.
Mas me parece que o aspecto mais significativo do apelo do papa pela paz está em outro lugar. Por trás de suas intervenções públicas está a consideração de que, nesse conflito, o uso dos meios de destruição possa chegar a colocar em risco a própria sobrevivência da espécie humana. A Rússia evocou explicitamente o uso de armas nucleares. Nessas condições, o papa propõe aos católicos uma atitude interessante: não devem aceitar a injustiça, mas encontrar novos meios para restabelecer a paz sem violar a justiça. Trata-se de responder ao mal da guerra sem ter que cair no mal da violência. Mas a cultura política está terrivelmente atrasada nesse ponto.
Por trás desse atraso esconde-se a tradição milenar da guerra justa. Vale a pena traçar de novo brevemente o que aconteceu a esse respeito.
Desde Santo Agostinho até a segunda metade do século passado, a teologia da guerra justa previa que, diante de uma violação da justiça, se não houvesse outro meio, as armas poderiam ser usadas para restaurá-la. A encíclica Pacem in terris de João XXIII (11 de abril de 1963) começa a questionar este princípio: na era atômica não há mais razão alguma para tomar a iniciativa de recorrer às armas ad iura sarcienda, ou seja, com o objetivo de restabelecer o direito violado.
De fato, o critério de proporcionalidade em que se baseia a doutrina da guerra justa não se sustenta: que justiça pode ser obtida com o uso de armas que impedem a própria sobrevivência da vida humana? Mas a encíclica ainda deixava em aberto o problema do recurso à guerra nuclear ad vim repellendam, ou seja, para a legítima defesa contra uma agressão injusta. Após o Concílio Vaticano II, os papas que precederam Francisco seguiram essa linha, ainda que a aplicassem de maneiras diferentes de acordo com as situações históricas concretas.
No entanto, em seus ensinamentos constata-se um abandono gradual da moralização da guerra. Ao longo do último meio século, o magistério reduziu progressivamente as condições que tornavam legítimo o uso das armas. A guerra tornava-se eticamente cada vez menos aceitável, mesmo quando se tratava de travá-la para se defender contra uma agressão injusta.
O Papa Francisco tirou as consequências inevitáveis desse processo histórico: com a Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2017, ele especificou que a não-violência ativa é o método, baseado no Evangelho, para responder à violência da guerra. Por ocasião da agressão russa contra a Ucrânia, ele lembrou que não há nem guerras justas nem guerras santas. Mas é diferente de dizer que não há mais direito de defesa; trata-se de encontrar o método para responder a uma agressão injusta, e absolutamente não da anulação do direito de se defender contra uma agressão injusta.
O problema está justamente em identificar métodos não violentos de resposta à violência da agressão. Durante a Segunda Guerra Mundial, alguns grupos católicos desenvolveram formas de resistência civil para se opor ao projeto nazista de aniquilação das raças inferiores. Mas posteriormente estas modalidades de ação não foram aprofundadas, porque a cultura católica continuava a basear-se na doutrina da guerra justa. Enquanto o magistério procedia a uma redução cada vez maior dos critérios de legitimação do recurso à guerra, os católicos continuavam a dormir na convicção de que o Evangelho justificasse o uso das armas. Mesmo quando o Papa Francisco lembrou explicitamente que o Evangelho exigia responder à guerra com o método da não-violência ativa, o mundo católico não prestou muita atenção ao estudo de alternativas às armas.
Na cultura católica, pouca atenção tem sido dada ao desenvolvimento da teologia da paz, à educação para a resistência popular não violenta, à mobilização internacional para bloquear os recursos do agressor, à recusa em obedecer ao opressor como meio para desarmá-lo, à interrupção da produção e da distribuição de armas, à formação de uma força militar supranacional separada dos estados individuais. Mas o papa não pode preencher as deficiências culturais dos crentes, ele só pode recordar os princípios fundamentais que derivam do Evangelho.
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Guerra na Ucrânia: “Francisco não quer ofender o agressor para manter aberto o caminho do diálogo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU