“Nós que trabalhamos na educação somos derrotados por essa guerra. Não existem guerras justas: não existem!”. Discurso do Papa Francisco

Foto da destruição na Ucrânia | Foto: Vatican Media

21 Março 2022

 

"O Evangelho nos pede apenas que não olhemos para o outro lado, que é precisamente a atitude mais pagã dos cristãos: o cristão, quando se acostuma a olhar para o outro lado, lentamente se torna um pagão travestido de cristão. Por isso quis começar com isto, com esta reflexão. A guerra não está longe: está à porta da nossa casa".

 

Publicamos aqui o discurso do Papa Francisco aos participantes do encontro promovido pela fundação Gravissimum Educationis, publicado pela Sala de Imprensa da Santa Sé, 18-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Nós estamos acostumados a ouvir notícias das guerras, mas distantes. Síria, Iêmen... habituais. Agora a guerra se aproximou, está na nossa casa, praticamente. E isso nos faz pensar na “selvageria” da natureza humana, até onde somos capazes de chegar. Assassinos dos nossos irmãos.

 

Obrigado, Dom Guy-Réal Thivierge, por esta carta que o senhor trouxe, que é um chamado, chama a atenção para o que está acontecendo. Nós falamos de educação, e quando pensamos na educação pensamos nas crianças, jovens... Pensamos em tantos soldados que são enviados para o front, muito jovens, soldados russos, pobrezinhos. Pensamos em tantos soldados jovens ucranianos; pensamos nos habitantes, nos jovens, nas jovens, meninos, meninas... Isso ocorre perto de nós.

 

O Evangelho nos pede apenas que não olhemos para o outro lado, que é precisamente a atitude mais pagã dos cristãos: o cristão, quando se acostuma a olhar para o outro lado, lentamente se torna um pagão travestido de cristão. Por isso quis começar com isto, com esta reflexão. A guerra não está longe: está à porta da nossa casa.

 

O que eu faço? Aqui em Roma, no Hospital Bambin Gesù, há crianças feridas pelos bombardeios. Em casa, trazem-nas à nossa casa. Eu rezo? Eu faço jejum? Eu faço penitência? Ou vivo despreocupadamente, como vivemos normalmente as guerras distantes? Uma guerra sempre – sempre! – é a derrota da humanidade, sempre. Nós, cultos, que trabalhamos na educação, somos derrotados por essa guerra, porque, em outro lugar, somos responsáveis. Não existem guerras justas: não existem!

 

Caros amigos,

 

Dou as boas-vindas a todos vocês que estão participando do Congresso Internacional “Educar para a democracia em um mundo fragmentado”, promovido pela Fundação Pontifícia Gravissimum Educationis.

 

Agradeço ao cardeal Versaldi pelas suas palavras de introdução e agradeço a cada um de vocês por terem contribuído com a riqueza do seu próprio contexto cultural, do seu próprio setor profissional e de pesquisa.

 

Este encontro de vocês aborda em perspectiva educacional o tema da democracia. Um tema muito atual e também muito debatido. Mas certamente não é frequente que ele seja abordado do ponto de vista da educação. E, em vez disso, essa abordagem, que pertence de modo especial à tradição da Igreja, é a única capaz de dar resultados de longo prazo.

 

Gostaria de lhes oferecer uma breve reflexão a partir da Palavra que o Senhor nos dirige no Evangelho da liturgia de hoje, ou seja, a parábola dos vinhateiros homicidas (Mt 21,33-43.45-46). Jesus adverte contra uma tentação que é de todos e de todos os tempos: a tentação da posse. Os vinhateiros da parábola, cegados pela ânsia de se apoderarem da vinha, não hesitam em usar a violência e a matar.

 

Isso nos lembra que, quando o ser humano renega a sua própria vocação de colaborador da obra de Deus e se atreve a se colocar no seu lugar, ele perde a dignidade de filho e se transforma em inimigo dos seus irmãos. Ele se transforma em Caim.

 

Os bens da criação são oferecidos a todos e a cada na proporção das suas necessidades, para que ninguém acumule o supérfluo nem falte a ninguém o necessário. Por outro lado, quando a posse egoísta enche os corações, as relações e as estruturas políticas e sociais, então a essência da democracia é envenenada. E se torna uma democracia formal, não real.

 

Vou me deter em duas degenerações: o totalitarismo e o secularismo. São degenerações da democracia.

 

São João Paulo II sublinhou que um Estado é totalitário quando “tende a absorver em si próprio a Nação, a sociedade, a família, as comunidades religiosas e as próprias pessoas” (Centesimus annus, n. 45). Ao exercer uma opressão ideológica, o Estado totalitário esvazia de valor os direitos fundamentais da pessoa e da sociedade, até suprimir a liberdade. É uma opressão ideológica, e nós podemos falar das colonizações ideológicas, que continuam e nos levam a isso.

 

O secularismo radical, por sua vez ideológico, deforma o espírito democrático de maneira mais sutil e insidiosa: eliminando a dimensão transcendente, ele enfraquece e anula pouco a pouco toda abertura ao diálogo. Se não existe uma verdade última, as ideias e as convicções humanas podem ser facilmente exploradas para fins de poder. “O humanismo que exclui Deus é um humanismo desumano”, dizia Bento XVI (Caritas in veritate, n. 78).

 

E aqui está a diferença, pequena, mas substancial, entre uma laicidade saudável e um laicismo envenenado. Quando a laicidade se torna ideologia, ela se transforma em laicismo, e isso envenena as relações e até as democracias.

 

A essas degenerações, vocês opuseram o poder transformador da educação. Em algumas universidades do mundo, por exemplo, vocês iniciaram atividades de formação, buscando as estratégias mais eficazes para transmitir os princípios democráticos, para educar para a democracia.

 

Convido-os a continuarem nessa linha e compartilho algumas propostas, que confio a todos vocês, empenhados nos diversos âmbitos:

 

1. Alimentar nos jovens a sede da democracia. Trata-se de ajudá-los a entender e a apreciar o valor de viver em um sistema democrático, sempre perfectível, mas capaz de tutelar a participação dos cidadãos (cf. Centesimus annus, n. 46), a liberdade de escolha, de ação e de expressão. E a andarem no caminho da universalidade contra a uniformidade. O veneno é a uniformidade. E que os jovens aprendam a diferença e também a pratiquem.

 

2. Ensinar aos jovens que o bem comum está misturado com o amor. Não pode ser defendido com a força militar. Uma comunidade ou uma nação que queira se afirmar pela força faz isso em detrimento de outras comunidades ou outras nações e se torna fomentadora de injustiças, desigualdades e violências. O caminho da destruição é fácil de se percorrer, mas produz muitos destroços. Só o amor pode salvar a família humana. Em relação a isso, estamos vivendo o exemplo mais feio perto de nós.

 

3. Educar os jovens a viverem a autoridade como serviço. É necessário formar “pessoas dispostas a se colocarem a serviço da comunidade” (Mensagem para o lançamento do Pacto Educativo, 12 de setembro de 2019). Todos nós somos chamados a um serviço de autoridade, na família, no trabalho, na vida social. Exercer a autoridade não é fácil: é um serviço. Não esqueçamos que Deus nos confia certos papéis não para a afirmação pessoal, mas para que, com a nossa obra, toda a comunidade cresça. Quando a autoridade vai além dos direitos da sociedade, das pessoas, torna-se autoritarismo e, no fim, se torna ditadura. A autoridade é uma coisa muito equilibrada, mas é uma coisa belíssima que devemos aprender e ensinar aos jovens, para que aprendam a geri-la.

 

São três caminhos educativos orientados, como diria São Paulo VI, para a civilização do amor e pedem para serem levados adiante com coragem e criatividade. Parece-me que podem se inserir bem no quadro do Pacto Educativo, que iniciamos junto com a Congregação para a Educação Católica.

 

E aproveito esta oportunidade para relançar tal Pacto, essa aliança que se propõe a agregar aqueles que levam no coração a educação das gerações mais jovens e que pode se tornar um instrumento para buscar o bem comum global.

 

No contexto provocado pela guerra na Ucrânia, destaca-se ainda mais o valor desse Pacto Educativo, a fim de promover a fraternidade universal na única família humana, baseada no amor. De fato, a oração pela paz deve ser acompanhada de um paciente empenho educativo, para que as crianças e os jovens amadureçam a decidida consciência de que os conflitos não são resolvidos com a violência, não são resolvidos com a opressão, mas com o debate e o diálogo.

 

Sempre haverá conflitos: é preciso ensinar aos jovens como resolver um conflito. Não com a violência, não com a opressão, mas com o debate, o debate sadio, e o diálogo.

 

Caros amigos, agradeço-lhes pelo trabalho de vocês. De coração, abençoo a todos vocês e aos seus entes queridos, as suas instituições e o seu trabalho. Obrigado! De coração, dou esta bênção a todos. E lhes peço, por favor, que não se esqueçam de rezar por mim. Obrigado!

 

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