18 Mai 2022
O mais influente filósofo do direito do último meio século propõe uma Carta Magna mundial. Luigi Ferrajoli quer proibir a guerra.
A reportagem é de Braulio García Jaén, publicada por El País, 14-05-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Pessoalmente, o filósofo do direito mais citado no mundo progressista latino no último meio século, não tem nenhuma esperança: desconfia do governo dos homens tanto como de seu otimismo antropológico, seja o bom selvagem – de Rousseau – ou das várias versões do novo homem – de Marx. Metodologicamente, no entanto, é otimista. Aos seus 81 anos, segue confiando no governo das leis, e seu novo livro, “Por uma Constituição da Terra”, é o último exemplo dessa confiança exemplar. Não é uma obra utópica, pelo contrário: o futuro da humanidade, diz-nos este realista ilustrado, depende da sua capacidade para se defender de si mesma. E uma Constituição global é a melhor defesa.
Há dois anos, quando apresentado em Roma, o projeto de uma Constituição global que vincule os 196 Estados soberanos poderia parecer inviável, justamente quando os países começaram a se confinar diante de um vírus desenfreado; agora, mais de dois meses depois que a guerra da Rússia contra a Ucrânia devolveu a ameaça nuclear ao coração da Europa, parece totalmente implausível. Não é qualquer Constituição uma dessas “barreiras de pergaminho”, nas palavras de James Madison, pai da Lei Básica norte-americana, inútil para deter a destruição e a morte que a guerra soberana impõe? O pragmatista de plantão deve se lembrar de qualquer forma que até Putin teve que mudar a Constituição na Rússia para permanecer no comando...
Além da roleta russa, a experiência de Ferrajoli incorpora as possibilidades das Constituições para mudar a realidade. Nascido em Florença em 1940, filho de um microbiologista que dirigiu um hospital militar durante a Segunda Guerra Mundial e de uma dona de casa — “ela era outra intelectual, mas sem emprego” — formou-se em Direito em 1962 e tornou-se juiz em 1965. “Os juízes da minha geração não levavam a sério as Constituições, que até a década de 1950 eram consideradas uma espécie de norma política, programática e não imediatamente vinculante”, afirma o também autor de “Constitucionalismo para além do Estado” por videochamada.
Até o segundo pós-guerra, “o antigo judiciário ignorava a Constituição”, concorda seu tradutor para o espanhol, Perfecto Andrés Ibáñez, ex-magistrado da Suprema Corte. O tempo mudou. “As Constituições funcionaram em nossos Estados: um cidadão pode ir ao juiz quando está detido ilegalmente”, diz Ramón Sáez, magistrado do Tribunal Constitucional, que atribui a Ferrajoli o mérito de ter defendido incansavelmente e brilhantemente uma concepção “rígida” das Constituições que hoje permeia o trabalho de juízes, promotores e advogados.
Ferrajoli deixou o judiciário em 1975. Dedicou-se ao ensino e à pesquisa desde sua cátedra na Itália. Em 1981, decidiu dar-se dois anos para sistematizar sua teoria das garantias criminais; a terminou oito anos depois, e sua projeção internacional começou a se firmar na Espanha e na América Latina. As paradigmáticas e deslumbrantes mil páginas de “Direito e Razão” somam 13 edições em espanhol, mas talvez a melhor medida de sua influência esteja nas edições piratas que circularam na América Latina, inclusive no Brasil. Sua outra grande obra, inacessível ao leitor leigo, “Principia iuris” (2007), axiomatiza sua Teoria do Direito e da Democracia em três volumes.
Segundo Andrés Ibáñez, o próprio Ferrajoli “se divertiu” assinando algumas dessas edições xerocadas, sobretudo na Colômbia e na Costa Rica. O atual diretor da editora espanhola Trotta, Ignacio Sierra, lembra-se de encontrar “cópias piratas” em “bancas de rua” na Cidade do México. No entanto, sua influência no norte da Europa é muito menor. “Sim, paradoxalmente isso aconteceu”, diz Ferrajoli de Roma. “Eu diria que talvez uma cultura jurídica realista esteja sendo imposta na Europa, no sentido vulgar do termo”, explica.
E precisa da vulgaridade. “Tudo isso está um pouco ligado à crescente hegemonia cultural estadunidense”, esclarece, onde o sistema de Common Law transmite “uma concepção muito mais descritiva do direito, que tem a ver com o direito como ele acontece e não como deveria ser”. O “dever ser” é o que distingue as constituições rígidas. “Na América Latina, após a queda das ditaduras, as rígidas constituições traçaram um horizonte crítico, de transformações, que deve estar presente também entre nós”, afirma.
A proposta constitucional de Ferrajoli – em dívida com Kant e Hans Kelsen – é prescritiva. A forma política deve ser uma “federação mundial”, mantendo os Estados, mas forçada por uma coexistência pacífica como a das regiões dentro dos Estados. Para isso, trata-se de completar “o desenho da Carta da ONU”, um legado “precioso” do pós-guerra, segundo Ferrajoli, mas que precisa ser desenvolvido do lado das garantias. “Não basta proclamar a paz se ela não for garantida pela supressão de exércitos e armas”, diz.
O vínculo entre direitos e garantias, que vincula direito e democracia, é talvez a grande forte ideia de Ferrajoli. O direito à vida carece de conteúdo se não garantir a proibição do assassinato no Código Penal. E o próprio direito à educação, sem uma escola pública que garante o acesso a todos. A proposta de Constituição da Terra quer elevar essa exigência de garantias a escala mundial.
As guerras são feitas com armas e com ideias. “A de Putin se explica pela ainda existência de armas nucleares e pela lógica schmittiana da política entre amigo e inimigo”, diz Ferrajoli, referindo-se a Carl Schmitt, teórico alemão, dentre outras coisas, sobre a justificação legal do nazismo. Schmitt concebe a Lei Fundamental como expressão da identidade e da vontade de um povo. Diametralmente oposta é a concepção de Ferrajoli: a Constituição “como um pacto de convivência pacífica entre diferentes”, “como um sistema de limites e vínculos rigidamente impostos a todos os poderes”, incluindo a soberania de Putin. Diante da guerra, ambas as concepções assumem horizontes radicalmente opostos: uma inevitável “guerra civil mundial” (Schmitt) ou uma “política interna mundial” (Habermas, por Ferrajoli) que tenta evitá-la.
As três “almas” que seu tradutor Andrés Ibañez distingue em Ferrajoli – a de um juiz, a de um estudioso e a de um militante cosmopolita – estão em seu último livro. Nele, depois de argumentar por que a humanidade precisa dar garantias de direitos fundamentais e limites a todos os poderes e perigos que a globalização catapultou – epidemias, mudanças climáticas, migração, guerra nuclear, mercados selvagens –, inclui um anteprojeto de 100 artigos da Constituição da Terra. É urgente, é necessário e é possível: “Só um constitucionalismo global pode garantir a sobrevivência da humanidade”, escreve ele.
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Luigi Ferrajoli, o pai da “Constituição” global que quer proibir a guerra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU