Com um ditado intrigante e muito moderno, uma linguagem explícita e um tom quase jornalístico, mas sempre correto e ligado ao texto bíblico, Simone Paganini, professor de Teologia Bíblica da Universidade de Aachen, na Alemanha, repassa inúmeros textos bíblicos referentes à sexualidade e ao seu exercício concreto, em seu novo livro “Senza censura” [Sem censura].
O comentário é de Roberto Mela, teólogo e padre dehoniano italiano e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 06-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No seu conjunto, a Bíblia apresenta a sexualidade e o seu exercício como algo positivo e desejado por Deus, mas sabe que ela também tem um lado obscuro e perigoso a ser controlado e regulado por meio de normas bem específicas.
Em um mundo marcado pelo patriarcalismo, são inúmeras as leis que proíbem o uso violento da sexualidade ou o seu exercício dentro do âmbito familiar restrito. No entanto, se as leis foram feitas, a realidade deve ter apresentado alguns aspectos não corretos e que são várias vezes condenados, mas às vezes também aprovados por terem sido colocados na linha da continuação da história da salvação e da sobrevivência de Israel dentro de um mundo hostil.
Paganini começa com um possível “triângulo” entre Adão, Lilith e Eva, já que o nome da mulher nunca é mencionado no primeiro relato da criação.
O relato da história dos patriarcas e das matriarcas oferece o impulso para falar de trocas de casais e de meninas-mães (Sara e Agar, Lia e Raquel e as suas respectivas escravas, etc.). Outros relatos falam de pessoas que vão para a cama com a mãe, a irmã e outros parentes. São inúmeras as descrições de relacionamentos incestuosos que envolvem patriarcas e matriarcas: Abraão e a meia-irmã Sara, Isaac e a prima Rebeca, Jacó e as duas irmãs Lia e Raquel, Ruben e a concubina do pai, Bila, Amnon e a meia-irmã Tamar (vítima de estupro), Ló com as duas filhas (Gn 19,30-38).
A Bíblia não menciona a proibição de relações com a filha e a sogra, consideradas talvez tão anormais a ponto de tornar supérfluo até mesmo o fato de falar a esse respeito. Emitindo diretrizes, tentava-se proteger a fronteira que separava Israel das culturas pagãs circundantes e a ordem social desejada por Deus. As motivações nunca são de natureza meramente biológica, mas ético-religiosa.
Deve-se lembrar ainda que a mulher era considerada propriedade do marido ou do pai de família e que, ao praticar atos impróprios contra ela, prejudicava-se uma propriedade que exigia um ressarcimento.
A prostituição estava presente na vida de Israel e era vista como uma realidade bastante normal. Na genealogia de Jesus, há duas delas, Tamar e Raab, que protegeram a vida de Israel e permitiram a sua continuidade.
A legislação contra a violência sexual não pretendia tanto proteger a mulher, mas sim os interesses do marido ou do pai. As leis sempre tinham uma perspectiva androcêntrica, e as penas não eram sempre iguais para o homem e para a mulher (ambos eram mortos se o ato sexual era cometido na cidade; apenas o homem era morto e a virgem prometida em casamento era salva se o fato tivesse ocorrido fora dos muros: a menina poderia ter gritado e não ter sido ouvida...; cf. Dt 22,23-27). Se o homem viola uma virgem não prometida em casamento (praticamente um caso de pedofilia, já que a menina era prometida em casamento logo que chegava à puberdade), o estuprador tinha que pagar à família um preço adequado – cinquenta siclos de prata – e assumir a menina como esposa, sem poder repudiá-la. A mulher tinha que passar a vida com o seu estuprador... (cf. Dt 22,28-29).
O estupro de uma menina virgem não prometida em casamento, porém, também pode levar a uma vingança brutal por parte da família da ofendida. A ofensa feita contra Diná (Gn 34) leva ao extermínio dos cidadãos de Siquém, enquanto Amnon pagaria com a própria vida (mesmo que dois anos depois) pelo estupro cometido contra a meia-irmã Tamar (2Sm 13,1-22).
A biblista Phillys Trible definiu corretamente muitas páginas da Bíblia como “text of terror”. A culminância desses textos está em Jz 19, com o estupro da concubina do levita, oferecido por ele mesmo aos habitantes do local em lugar de si mesmo, solicitado por eles. O levita leva para casa a mulher estuprada até à morte pelos cidadãos de Jebus durante a noite e envia às doze tribos o seu corpo feito em pedaços. Daí surge uma carnificina contra a tribo de Benjamim, a captura de 400 virgens de Jabes de Galaad entregues aos benjamitas dentro de um tratado de paz e o rapto das virgens de Silo (cf. Jz 21,8-24).
Somente a intervenção do anjo preserva as duas filhas de Ló de serem estupradas pelos habitantes de Sodoma, a quem elas haviam sido oferecidas no lugar dos viajantes masculinos solicitados. A Bíblia não repreende nem Ló nem o levita, mas convida a refletir e a não calar em caso de violência cometida nos nossos dias.
O livro de Juízes narra “as grandes fraquezas de um pequeno herói”, assim diz o título do capítulo a ele dedicado: Sansão. Este leva uma vida imprudente com várias mulheres e prostitutas do campo pagão e filisteu, e terminará a sua vida derrotado pela sua própria ganância sexual.
Relatos de sexo terminam às vezes em finais trágicos de morte. Sexo e morte muitas vezes andam de mãos dadas na realidade e nos contos literários. O jovem judeu Zambri é transpassado por Fineias enquanto está na cama com Cozbi, uma menina da terra de Midiã (Nm 25,1-8.14-15). Estamos dentro do culto idolátrico a Baal-Peor.
Erotismo e homicídio estão estritamente entrelaçados no caso da morte de João Batista, que repreendia Herodes Antipas por ter se divorciado sem motivo da filha do rei nabateu Aretas.
Segundo Paganini, essa era a verdadeira reprovação levantada por João Batista que, segundo ele, estava interessado nas problemáticas sociais decorrentes do insulto provocado à casa nabateia mais do que nas problemáticas de moral sexual. Segundo Flávio Josefo, Herodíades havia se casado primeiro com Herodes Boethos, e não com Herodes Filipe. Em todo o caso, o amor de um poderoso por uma mulher faz um profeta perder a cabeça.
A paixão amorosa do general derrotado Sísara pela bela e desinibida Jael fará com que ele termine seus dias com o crânio perfurado por uma estaca. Paganini interpreta o “cobrir com o manto”, gesto realizado pela mulher (duas vezes, Jz 4,18.19), como uma alusão ao ato sexual. Jael, assim, salva Israel, e é isso que importa para o texto bíblico.
O livro de Judite, por sua vez, é uma novela que narra as estratégias implementadas pela bela, rica e piedosa viúva Judite para seduzir e decapitar o general do exército inimigo Holofernes e assim salvar a sua cidade, Betúlia, acesso a todo Israel.
As incongruências históricas fazem dele um relato não verdadeiro no nível dos eventos concretos, mas o livro exalta a salvação trazida a Israel por uma mulher, que explora habilmente e por uma nobre causa todas as suas qualidades e artes sedutoras femininas. Também neste caso, a sedução, as mentiras e o assassinato estão voltados à salvação de Israel.
Paganini lembra que a Bíblia não conhece os termos LGTB+, gay, lésbica, mas afirma que há textos bíblicos que fazem alusão a relações homossexuais e lésbicas. O estudioso defende firmemente a possível bissexualidade de Davi, considerando que sua relação com Jônatas pode ter um caráter seguramente homossexual. O vínculo de Rute com sua sogra Noemi também poderia ter – aqui Paganini é mais duvidoso – uma conotação lésbica.
O estudioso afirma que Lv 18 não condena a homossexualidade como é entendida hoje, mas apenas a violência contra o inimigo com humilhação de caráter sexual (constrição a uma relação anal).
Jesus se ocupa muito pouco de problemáticas de moral sexual, enquanto, segundo Paganini, em Rm 1, Paulo condena não a homossexualidade como é vivida hoje em nível paritário e com afeto – a qual, segundo o autor, deveria ser acolhida como uma relação normal entre pessoas com o mesmo status que as uniões heterossexuais, p. 159 –, mas sim o fenômeno da pederastia e da pedofilia generalizadas no mundo greco-romano.
Um capítulo é dedicado ao fenômeno da poligamia e abrange do tempo dos patriarcas ao de Salomão. A poligamia era aceita, mas envolvia um oneroso dispêndio de dinheiro, pois o homem tinha que assegurar a paridade de tratamento econômico e sexual entre as várias mulheres e concubinas. Na prática, apenas um nobre ou um rico podia exercê-la. O Novo Testamento exige uma única esposa a quem exerce o ministério de bispo e de diácono.
“Velhinhos excitados” é o título do capítulo dedicado à sexualidade vivida na velhice. A Bíblia mostra o seu exercício em sentido positivo como sinal de bênção, descreve a ação da jovem Abisag em “manter aquecido” o velho rei Davi, mas também denuncia o seu exercício malicioso e depravado da parte masculina (os dois velhos libidinosos e a virgem Susana), sustentado pelo predomínio de uma mentalidade machista e patriarcal.
A Bíblia descreve a arte da sedução feminina lembrando as estratégias da mulher de Putifar em relação a José, as da bela rainha pagã Jezabel em relação ao rei Acab e depois Yehu, a sedução desinibida de Rute em relação a Booz, sem esquecer as já mencionadas Jael, Débora, Judite e Salomé, a filha de Herodíades.
Muitos textos bíblicos advertem contra a sedução exercida pelo fascínio das mulheres (muitas vezes entendidas como símbolo da idolatria pagã), enquanto 1Tm 2,8-15 lembra o comportamento digno e modesto que as mulheres cristãs devem ter em casa e na comunidade.
“Quando é um Deus que seduz uma mulher”: assim diz o quarto e último capítulo do livro. Paganini interpreta os textos bíblicos que falam da concepção prodigiosa por parte de uma mulher idosa, ou estéril, ou virgem como a intervenção de Deus por meio de um anjo. Os filhos são destinados a obras maravilhosas.
O estudioso lembra o caso de Maria, colocado na linha de relatos semelhantes como as de Sara, da mulher de Suném que hospeda com grande confiança o profeta Eliseu (2Re 4) ou da mulher de Manué em Jz 13. O homem não parece mais se aproximar da mulher. Parece que o filho que vai nascer, Sansão, é de fato o filho do anjo-homem.
Paganini lembra que a verdade de fé da concepção virginal de Maria encontrou muitos contrastes e deboches, expressados nos relatos presentes no Talmud e nas Toledoth Yeshu que a veem sujeita ao adultério com José ben Pantera. Celso considera Jesus o filho ilegítimo de Maria com um soldado romano chamado Panthera.
Paganini se encaminha para a conclusão do seu volume com um capítulo em que se apresenta o fato de não ter relações sexuais como a melhor coisa recomendada no Novo Testamento, especialmente por Paulo.
Jesus fala pouco de moral sexual (embora as suas posições sobre adultério e divórcio sejam claramente expressadas), e a sua resposta aos saduceus sobre a condição do corpo no tempo ultraterreno (“semelhante aos anjos”) não é totalmente clara.
O estudioso se concentra em Paulo que, segundo ele, em 1Cor, recomenda vivamente a abstenção de mulheres. Na página 145, ele recorda que se passa do mandato divino no início da criação – “multiplicai-vos”, que era pró-vida e favorável ao sexo – ao “mandato eclesiástico da abstinência”, que é tanto antissexo quanto antivida.
Esse é um ponto, além de outros (Davi, Rute), que me deixa perplexo. Paulo tem uma linha ideal de vida celibatária, mas conhece a pastoral do matrimônio. Cada um tem o seu carisma, alguns de um modo, outros de outro (cf. 1Cor 7,7). Dois carismas, portanto, ambos bem vistos, embora a preferência de Paulo seja pela vida celibatária, no âmbito da urgência escatológica iniciada pela morte e ressurreição de Jesus.
Em relação ao caso dos noivos indecisos sobre o que fazer por razões religiosas vinculantes em relação a Deus, Paulo não exclui a possibilidade de persistir na abstenção sexual, mas recorda pastoralmente que a escolha do matrimônio não é absolutamente pecaminosa para eles. Paulo dá conselhos apostólicos, não mandatos. Ele distingue bem os seus conselhos dos mandamentos do Senhor.
Ao término da obra, não faltam páginas sobre a sexualidade e sobre o seu exercício no tempo ultraterreno. Sobre isso, a Bíblia é muito parca de pronunciamentos, em comparação com as delícias sexuais prometidas no Alcorão e nos Hadith aos fiéis muçulmanos.
O livro de Paganini é original e particular. Aborda um tema efetivamente muito presente na Bíblia e muitas vezes não bem explicado e ilustrado na catequese, muito menos nas homilias. O autor se detém brilhantemente sobre muitos textos do Antigo Testamento, enquanto me parece passar rapidamente por cima daqueles (efetivamente poucos) do Novo Testamento.
Nem todas as sugestões hermenêuticas oferecidas serão compartilhadas por unanimidade pelos leitores, mas é muito interessante a leitura de um texto fluido, bem aderente aos textos, com uma linguagem moderna e sem falsos pudores.
O autor expõe com muita honestidade as suas posições e interpretações, inclusive no que diz respeito a escolhas a serem feitas na atualidade. Ele lembra com razão que, na história da interpretação, foram alcançados efeitos desastrosos, muitas vezes em detrimento das mulheres.
De qualquer forma, o leitor tirará a sua própria conclusão explorando também a competência bíblica do estudioso.