02 Mai 2022
A guerra é um continente misterioso. Aberto às reviravoltas e às surpresas, os fatos passam por cima dela; de minuto em minuto, entusiasmos, equívocos, ferocidades a inspiram e a comovem, e deixam estratificações e sedimentos iguais aos que marcam os grandes rios ao longo do tempo e progressivamente desviam o seu curso.
O comentário é de Domenico Quirico, jornalista italiano, publicado por La Stampa, 29-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Cada um de seus dias é complexo, repleto de múltiplos sentidos, cada palavra da sua linguagem está impregnada de mentiras ou de declarações fulminantes de sinceridade. Debaixo da sua superfície, movem-se realidades mais ocultas, obscuras e misteriosas que parecem fora da história, invisíveis na sua gigantesca passividade, ao olhar minucioso que tenta, armado com um método e com a lição dos casos anteriores, dar-lhe uma lógica.
Pois bem: desde essa quinta-feira, 28, tudo está mais claro, a guerra se tornou visível, se tornou evidente em sua meta final. De fato, os estadunidenses esclareceram qual é o seu propósito, para onde vão os seus atuais e próximos movimentos.
Washington considera que a presença de Putin e da sua Rússia, após a invasão da Ucrânia, é incompatível com um mínimo de ordem internacional justa: como autocrata que brinca de czar e com quem se podia conviver apesar do mau cheiro das prisões, da repressão e do imperialismo mesquinho, ele agora é o perigo público número um para o mundo, a ponto de realizar o gesto “genocida” contra as suas últimas vítimas, os ucranianos.
O objetivo da guerra, portanto, é agora aniquilar as suas possibilidades presentes e futuras de prejudicar o mundo, de esmagar os seus vizinhos geográficos, de usar a força para impor a sua versão brutal da história e elevar a zoologia de Darwin a religião. Nessa quinta-feira, Biden a financiou com mais 33 bilhões de dólares em ajudas, dos quais 20 bilhões em armas para Kiev.
Com um diabo tão implacável, mentiroso e manipulador, aplicando uma lógica do exorcista que é difícil de contrariar a não ser com argumentos ilógicos, fideístas, o único caminho possível é cortar a sua cabeça com o veneno, nunca mais lhe dando outra chance. Não deve haver outras Ucrânias, dizem os estadunidenses, porque, se uma saída for negociada com ele, ele tentará de novo. É a guerra total e explícita que os ucranianos, os bálticos, os poloneses sempre pediram ao Ocidente, quase obsessivamente.
Agora que ela foi posta sobre a mesa pelos estadunidenses, sem os quais não existe nenhuma ajuda de verdade para a Ucrânia, sabemos a que devemos dizer sim. A menos que já tenhamos dito sim. Não é ao gás, às sanções, ao isolamento e às fofocas.
A guerra recomeça a partir da convocação dos aliados a Ramstein, capital militar estadunidense da Europa. Como no tempo da análoga grande coalizão que foi reunida para a primeira Guerra do Golfo por Bush pai, somos claramente solicitados a escolher: conosco, os Estados Unidos, até o fim ou sentados perto do telefone esperando que o Tirano responda.
Os líderes e os intelectuais europeus (e italianos sobretudo) descrevem todos os dias, com cuidado e método, a brutalidade e a monstruosidade de Putin, proclamam-na e depois param, não tirando as consequências. Ou, melhor, salvam a sua alma pacifista etc. etc. e começam a evocar as negociações, a via da negociação “que nunca deve ser esquecida”, citam Francisco e Agostinho, Kant e John Lennon, estigmatizam a lentidão de tréguas e cessar-fogos “indispensáveis”.
Mas assinados com quem? Sempre se evitar o nome do interlocutor a quem se deve estender a mão. Não ousam pronunciar o nome de Putin, porque essa conclusão é incompatível com as premissas. Viaja-se sobre vaguezas metafísicas, como se Vladimir, em certo ponto, à força de exorcismos com base em gás não pago e armas defensivas, pudesse se desmaterializar como um pesadelo; e, do outro lado do telefone ou da mesa, aparecesse, milagre!, um russo bom, um russo pacifista, melhor até se arrependido e pronto para recolher os cacos, pagar os danos e nunca mais fazer isso.
No fundo, até essa quinta-feira, a guerra ucraniana parecia indecifrável: os objetivos de Putin que vagavam de um mínimo indicado em um pedaço de Donbass até a dominação do mundo que muitos lhe atribuem; a resistência ucraniana tão surpreendente a ponto de parecer, após o emocionante espanto inicial, muito mais organizada e cuidadosamente potencializada ao longo dos anos, e não um ímpeto oitocentista de um povo açoitado por uma invasão tão infame a ponto de parecer um fratricídio; a espera passiva e tortuosa dos chineses, também eles talvez em busca de uma oportunidade ou de um pretexto para imitar Putin no Mar da China. E a unidade dos europeus descrita voluntariamente como o azimute alcançado da solidariedade política do continente mas, ai de nós!, tão semelhante à velha astúcia ardilosa do ganhar tempo, esperando que uma oportunidade que salve a cara do “não” ao autocrata ganancioso e os bons negócios dos quais depende, como sempre, o nosso Tudo.
Nenhum dos 40 de Ramstein parece ter se oposto à indicação estadunidense dos objetivos de guerra. Exceto para depois, uma vez de volta para casa, sobretudo de uso interno, retomar a ladainha do “não mudou nada”, fingindo uma ingênua surpresa a quem pede para explicar o que significa, do ponto de vista militar, eliminar a possibilidade de agressão do russo exército. Como se bastasse à obra complexa e definitiva misturar a velha receita dos tons duros e das sanções para fazer com que a razão volte ao diabo do Leste.
Eis algumas perguntas que os estadunidenses, eu imagino, certamente responderam. Como a destruição da capacidade militar russa está fora das possibilidades operacionais do exército ucraniano, até mesmo armado com novas maravilhas, devido à intransponível diferença de peso específico entre as duas armadas, sem levar em conta as armas atômicas, são os estadunidenses e a sua Coalizão que devem providenciar a obra de destruição. Segundo o modelo daquilo que ocorreu no primeiro Iraque. Com a clara superioridade na aviação, no controle do céu, no bombardeio de saturação sobre o exército russo e sobre as suas bases até reduzi-lo aos seus mínimos termos operacionais. Mas a Rússia não é o Iraque de Saddam.
Previu-se a possibilidade de que Putin recorra à arma nuclear, como ele já anunciou, para se defender? Ou talvez os estadunidenses tranquilizaram a todos, revelando que têm como zerar o seu arsenal mortal antes mesmo de ele ser utilizado? Ainda: foi indicado aos aliados que, além dos suprimentos militares, também poderiam ser solicitados contingentes de tropas necessários para caçar o criminoso além da cortina antes que ele monte uma fortaleza asiática junto com o seu cúmplice melífluo de Pequim? É inútil ter ilusões. Com a próxima onda, podemos ser arrastados para o mar.
Talvez não haja outro caminho. Mas é preciso dizer isso. E não se trata de um putinismo estúpido, de uma vocação à capitulação e nem mesmo de medo: apenas de uma aceitação consciente da responsabilidade da justiça. Que não é compatível com a hipocrisia e o subterfúgio.
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Estados Unidos pedem a guerra total - Instituto Humanitas Unisinos - IHU