02 Mai 2022
Não existem receitas fáceis para desarmar corações e parar a violência. No entanto, quando existe a oportunidade de falar com o cardeal Dieudonné Nzapalainga, arcebispo de Bangui, na paupérrima República Centro-Africana devastada há anos de guerra civil, a paz torna-se de impossível a alcançável, de impraticável a praticável. Próxima. Para além de qualquer cálculo econômico e político, da crença religiosa (ele o explicará, daqui a poucas linhas, que os conflitos nada têm a ver com o pertencimento a uma fé), dos interesses partidários. E ele demonstrou isso com ações, não apenas com as palavras. Correndo o risco de ser morto por facões, balas, bombas. "Escolhi enfrentar os acontecimentos em vez de sofrê-los", escreveu no livro Minha luta pela paz. De mãos nuas contra a guerra na África Central, em tradução livre, que será lançado em 17 de maio pela Libreria Editrice Vaticana. Ele decidiu não ter medo.
A reportagem é de Annamaria Sacchi, publicada por La Lettura, 01-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Vamos começar pelos dados biográficos, necessários para compreender a extraordinária vida (e missão) de Nzapalainga.
Nascido em Mbomou, na diocese de Bangassou, em 1967, o quinto de dez filhos, de família pobre de pai católico e mãe protestante ("num clima de total respeito"), foi ordenado padre em 1998, arcebispo em 2012, cardeal em 2016, o mais jovem do mundo - ainda o é - e também o criador da Plataforma das Confissões Religiosas da África Central, aquela rede milagrosa entretecida pelos três líderes religiosos do país, o católico, o imã, o pastor, que durante a Segunda Guerra Civil Centro-Africana de 2012-2013 (a Seleka, formada por grupos de maioria islâmica, mas também por mercenários atraídos pelos recursos do país, derrubou o governo; seguiu a resposta armada dos milicianos anti-balaka, principalmente cristãos e animistas; se somaram interesses ocidentais) evitou o genocídio.
Foram chamados de os três santos - ou leões - de Bangui. Em 10 de dezembro de 2012, após o ataque da Seleka, eis junto o pastor Nicolas Guerekoyame-Gbangou, o imã Omar Kobine Layama (falecido em 2020) e Nzapalainga, então arcebispo. “Estávamos determinados a não deixar que nossas religiões fossem arrastadas para o conflito. Em uma declaração conjunta dissemos: o país é um e indivisível. Leigo. Sempre estivemos em harmonia. Agora ficamos sabendo que as pessoas estão se enfurecendo contra seres humanos por razões religiosas. Nós dizemos não! Que ninguém diga que esta é uma guerra religiosa!”
Guerras na África: instabilidade de governos, queda contínua do poder, milícias que se formam e se dissolvem. Na República Centro-Africana, desde a crise de 2012 até hoje, os conflitos se alternaram em fases, inclusive com o envolvimento de Moscou: a Rússia de Putin enviou instrutores, veículos, além do famigerado grupo mercenário Wagner. Nos últimos meses, porém - explica o cardeal - na capital e nos territórios vizinhos, as coisas estão melhores: "Se antes 80 por cento das terras estavam nas mãos dos rebeldes e 20 por cento das famílias, agora a proporção é invertida. Os milicianos não estão em Bangui neste momento”.
Portanto, “se essas são as especificidades dos nossos conflitos, todas as guerras, mesmo a que se trava na Europa, têm um denominador comum: o absurdo e a tragicidade. São os civis que pagam o preço mais alto: as crianças não podem ir à escola, os doentes não podem ser tratados, as famílias não podem voltar para casa”.
É preciso mais fé do que inteligência para travar a guerra de mãos nuas, diz o cardeal com um sorriso.
Essa fé que o fez dizer, no Domingo de Ramos de 2013, enquanto os rebeldes da Seleka entravam no arcebispado com fuzis, lançadores de granadas, armas longas até os pés: “Saiam! Todos para fora!”. A mesma fé que o sustentou enquanto levava um casal muçulmano com a filha doente para Bangui e, quando um miliciano anti-balaka agrediu o pai daquela família, o fez reagir assim: "Eu me joguei em cima dele, arranquei sua faca e a joguei fora. Eu gritei: o que é isso? Quem manda você matar? Eu estava sangrando porque acabei ferindo a minha mão. Peguei o muçulmano, empurrei-o para dentro do carro onde a mulher e a filha se refugiaram, fechei a porta e dei instruções para sair”. Sim, é preciso muita fé. "Mas com inteligência, homens e mulheres podem dizer não à violência.”
Você também iria a Putin para dizer essas coisas? “Se houver uma oportunidade… não tenho medo das pessoas. Se houver a possibilidade de parar a guerra, estou pronto.” Em 31 de março, Nzapalainga visitou os refugiados da África Central que vivem em Gado-Badjeri, em Camarões. Querem voltar para casa, mas estão preocupados, informa a agência Fides, pela presença de grupos armados dos 3Rs (Retour, Réclamation et Réhabilitation) no noroeste do país: “Vim - disse o cardeal - para ouvir suas denúncias. Eu sou a voz dos sem voz”.
Esperança. Obrigatório, é claro, em um cardeal. Mas Nzapalainga também é muito convincente: “Meu desejo é que homens e mulheres da Ucrânia e da Rússia possam ver o sofrimento de seus irmãos e estender a mão para construir a paz juntos. Também precisamos da contribuição de quem está próximo da Rússia e da Ucrânia: a mediação é necessária”.
E nada muda se a guerra for entre vizinhos que compartilham um credo, ou se, como na África Central, grupos de diferentes credos se massacram: “Na prática, existem apenas questões geoestratégicas. Mas os homens de religião podem desempenhar um papel importante. Mas é preciso coragem e audácia para bater à porta do coração. Medo? Eu a tive como homem, não como discípulo de Cristo. Quando a guerra começou, minha mãe ligava todos os dias me implorando para não correr riscos. Então eu disse a ela: eu sou um adulto, sou um padre e pronto para dar minha vida. A partir daquele momento senti-me livre”.
Paz. Pobreza. Confiança. Encontro. Diálogo. O Cardeal Nzapalainga insiste em algumas palavras.
Especialmente no termo "escuta", que lhe serviu entre os garotos mais difíceis de Marselha, quando era capelão do internato Vitagliano dos Apprentis d'Auteuil; entre os colegas do clero centro-africano, quando em 2009 se tornou administrador da arquidiocese de Bangui dividida por rixas internas e convidou os coirmãos a comer um prato único, não primeiro prato-queijo-sobremesa; entre os rebeldes: “Eu falava com pessoas que não me ouviam e havia mortos e feridos. Pensei: eles são meus irmãos, por que não me ouvem?”. Ele se fez ouvir, depois. Com seu método, “falar com todos defendendo a causa dos mais pobres”. Porque "a escuta do outro permite-lhe expressar o seu sofrimento". E ainda: “Ao falar podemos projetar-nos numa visão comum. Assim como estamos fazendo em Bangui. Vamos construir a cidade juntos”.
Em 29 de novembro de 2015, o Papa Francisco abriu a Porta Santa da Catedral de Bangui. Um capítulo do livro é dedicado a este evento histórico. “O Papa aceitou visitar um país em guerra. Ele levou a palavra de Deus, foi uma emoção única”, conta Nzapalainga. Bergoglio depois "tirou os sapatos, pegou a mão do imã e eles entraram na mesquita central juntos".
Há muitas histórias no livro do cardeal. Comoventes e assustadoras. Histórias da África profunda, do Ocidente civilizado e desumano, de um menino vestido de trapos que se torna cardeal e continua a pregar a pobreza e a paz: "O momento histórico em que vivemos - diz Nzapalainga - nos leva a questionar: queremos tomar a direção da morte ou a da reconciliação?
Depois de uma crise, que é também uma oportunidade, deveríamos olhar-nos de frente e encontrar soluções, procurar a verdade de todos, não apenas de um só lado”. Não é um processo fácil. “Há um lobo dentro de nós, senão o diabo, que quer nos dividir. Devemos trabalhar para vencê-lo e renovar a confiança nos outros. Só com os irmãos e as irmãs poderemos construir um mundo melhor, sintonizando os corações, sem deixar espaço para o ódio”. Todos juntos. Doyé Siriri! - na língua Sango. Como disse o Papa em frente à Catedral de Bangui. Siriri. Como é o título do documentário de 2021 dedicado ao cardeal e seu amigo imã.
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Não existem guerras de religião - Instituto Humanitas Unisinos - IHU