27 Abril 2022
"Quando os conflitos armados são em África ou no Oriente Médio, os líderes europeus são os primeiros a pedir o cessar das hostilidades e a urgência das negociações de paz. Por que é quando a guerra é na Europa os tambores da guerra tocam incessantemente e nenhum líder apela a que se calem e a voz da paz se ouça?", escreve Boaventura de Sousa Santos, sociólogo, diretor emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em artigo publicado por Outras Palvras, 25-04-2022.
No eixo comunicacional do Atlântico Norte vivemos uma guerra de informação sem precedentes. Conheci-a nos EUA durante dois períodos. No primeiro, durante a guerra do Vietnã que vivi no seu momento de crise final (1969-1971); culminaria com a publicação dos Pentagon Papers em 1971. O segundo momento foi a guerra do Iraque, a partir de 2003, e a saga das armas de destruição massiva, um embuste político de que viriam a resultar muitos crimes de guerra. Mas na Europa nunca tinha assistido a este tipo de guerra de informação, pelo menos com a magnitude atual. Caracteriza-se pela erosão quase total entre fatos e manipulação das emoções e percepções, entre hipóteses ou conjecturas e verdades inatacáveis.
No caso concreto da guerra da Ucrânia, a manipulação visa impedir a opinião pública e os decisores políticos de pensarem e decidirem sem excessivo estresse na única medida que agora se impõe: a busca de uma paz duradoura na Ucrânia e na região de modo a por fim ao sofrimento do povo ucraniano, um povo que nestes dias partilha a trágica sorte dos povos palestiniano, iemenita, sírio, sarauí e afegão, ainda que sobre estes últimos pese o mais profundo silêncio. A guerra da informação tem por objetivo continuar a guerra das armas enquanto tal convier a quem a promove. Nestas condições, não é fácil lutar com fatos e experiência histórica porque, do ponto de vista da guerra de informação, explicar é justificar, compreender é perdoar, contextualizar é relativizar. Mesmo assim, tentemos.
Para demonizar o inimigo é crucial desumanizá-lo, ou seja, imaginá-lo como tendo agido criminosamente e sem provocações. Ora a firme e incondicional condenação da ilegal invasão da Ucrânia (em que insisti desde a minha primeira crônica sobre o tema) não implica ter de ignorar como se chegou a tal. Neste caso, aconselho a leitura do livro publicado em 2019, War with Russia?, do professor emérito da Universidade de Princeton Stephen Cohen, recentemente falecido.
Depois de analisar com inexcedível detalhe as relações entre os EUA e a Rússia desde o fim da União Soviética e, no caso da Ucrânia, sobretudo desde 2013, Stephen Cohen conclui deste modo: “Proxy wars [guerras em que os adversários usam países terceiros para prosseguir os seus objetivos de confrontação bélica] são uma característica da velha Guerra Fria, são pequenas guerras no chamado ‘Terceiro Mundo’…Raramente envolveram militares soviéticos ou americanos, quase sempre apenas dinheiro e armas. Hoje as proxy wars entre os EUA e a Rússia são diferentes, estão localizados no centro da geopolítica, são acompanhadas de demasiados instrutores americanos e russos e possivelmente combatentes. Duas já irromperam: na Geórgia em 2008, onde forças russas enfrentaram o exército da Geórgia financiado e treinado com fundos e pessoal americano; e na Síria, onde já foram mortos muitos russos por forças anti-Assad apoiadas pelos EUA. Moscou não retaliou, mas prometeu fazê-lo quando houvesse ‘uma próxima vez’. Se tal acontecer, envolverá uma guerra entre a Rússia e a América. O risco de um tal conflito direto continua a crescer na Ucrânia”. Assim se previu em 2019 a guerra que neste momento martiriza o povo ucraniano.
Na linguagem dos EUA o mundo divide-se em dois: democracias (nós) e autocracias (eles). Ainda há poucos anos a divisão era entre democracias e ditaduras. A autocracia é um termo muito mais vago que, por isso, pode ser usado para considerar autocrata um governo democrático tido por hostil, mesmo que a hostilidade não derive das características do regime. Por exemplo, na Cúpula da Democracia realizada em dezembro de 2021, por iniciativa do presidente Joe Biden, não foram convidados países como a Argentina e a Bolívia, que tinham passado recentemente por vibrantes processos democráticos, mas são menos receptivos aos interesses econômicos e geoestratégicos dos EUA.
Em contrapartida, foram convidados três países que a Casa Branca reconheceu serem democracias problemáticas (o termo usado foi flawed democracies), com corrupção endêmica e com abusos dos direitos humanos, mas com interesse estratégico para os EUA: as Filipinas, por contrariar a influência da China; o Paquistão, pela sua relevância na luta contra o terrorismo; e a Ucrânia, pela sua resistência à incursão da Rússia. Compreendiam-se as reservas no caso da Ucrânia, pois poucos meses antes os Pandora Papers davam detalhes sobre as empresas offshore do presidente Volodymyr Zelenskii, da sua mulher e dos seus associados.
Agora, a Ucrânia representa a luta da democracia contra a autocracia da Rússia (que, a nível interno, deve estar a par da Ucrânia em termos de corrupção e de abusos de direitos humanos). O conceito de democracia perde, assim, boa parte do seu conteúdo político e transforma-se numa arma de arremesso para promover mudanças de governo que favoreçam os interesses globais dos EUA.
Segundo peritos da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), em 2020, 40% das forças militares da Ucrânia (um total de 102.000 membros) eram milícias paramilitares de extrema direita, armadas, financiadas e treinadas pelos EUA, Inglaterra, Canadá, França e Suíça, com integrantes de 19 nacionalidades. Desde que a guerra começou, mais elementos se lhes juntaram, alguns vindo do Oriente Médio, e mais armas receberam de todos os países da OTAN. A Europa está assim em risco de ter no seu seio um nazi-jihadismo nutrido, e nada nos garante que o seu raio de ação se limite à Ucrânia.
Em 1998, o antigo conselheiro de segurança do presidente Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski, afirmava em entrevista à revista Nouvel Observateur: “Em 1979, aumentamos a probabilidade de a URSS invadir o Afeganistão… e criar a oportunidade de lhes dar o seu Vietnã”. Não me surpreenderia se este playbook da CIA não estivesse agora a ser aplicado na Ucrânia. As recentes declarações do secretário-geral da OTAN, segundo as quais “a guerra na Ucrânia pode durar meses ou até anos” – combinadas com a notícia da agência Reuters (12 de Abril) de que o Pentágono ia se reunir com os oito maiores produtores de armas dos EUA para discutir a capacidade da indústria para satisfazer as necessidades da Ucrânia “se a guerra com a Rússia durar anos” – deviam ter causado alarme entre os líderes políticos europeus, mas aparentemente apenas os motivaram para uma corrida aos armamentos.
As consequências de um segundo Vietnã russo seriam fatais para a Ucrânia e para a Europa. A Rússia (que é parte da Europa) só será uma ameaça para a Europa se a Europa se transformar numa imensa base militar dos EUA. A expansão da OTAN é, pois, a verdadeira ameaça para a Europa, como há vinte anos alertou o insuspeito Henry Kissinger.
A União Europeia, transformada numa caixa de ressonância das escolhas estratégicas dos EUA, defende como lídima expressão dos valores universais (europeus, mas nem por isso menos universalizáveis) o direito da Ucrânia de integrar a OTAN, enquanto os EUA intensificam a integração (veja-se o US-Ukraine Strategic Defense Partnership, assinado em 31 de agosto de 2021), ao mesmo tempo negando que ela esteja iminente. Certamente os líderes europeus não sabem que o direito reconhecido à Ucrânia de aderir a um pacto militar é negado a outros países pelos EUA e, se soubessem, isso não faria qualquer diferença, tal é o estado de torpor militarista em que se encontram. Por exemplo, as pequenas Ilhas Salomão do Oceano Pacífico aprovaram em 2021 um projeto de pacto de segurança com a China. Os EUA reagiram de imediato e com alarme a esse projeto e enviaram altos responsáveis de segurança para a região a fim de travar a “intensificação da competição de segurança no Pacífico”.
A guerra de informação assenta sempre numa mistura de verdades seletivas, meias verdades e mentiras puras e duras (as chamadas false flags) organizada de modo a justificar a ação militar de quem a promove. Estou certo de que neste momento está em curso uma guerra de informação tanto do lado russo como do lado norte-americano/ucraniano, ainda que, devido à censura que nos foi imposta, saibamos menos sobre o que se passa no lado russo. Mais tarde ou mais cedo a verdade virá à tona. A tragédia é que virá sempre demasiado tarde.
Neste conturbado início de século temos uma vantagem: o mundo perdeu a inocência. Julian Assange, por exemplo, está a pagar um altíssimo preço por nos ter ajudado neste processo. Aos que ainda não desistiram de pensar com alguma autonomia recomendo a leitura do capítulo de Hannah Arendt, intitulado “Mentir em política”, no livro Crises da República, publicado em 1971. É uma reflexão brilhante sobre os Pentagon Papers, uma recolha exaustiva dos dados (entre eles, muitos crimes de guerra e muitas mentiras) sobre a guerra do Vietnã, uma recolha realizada por iniciativa de um dos maiores responsáveis dessa guerra, Robert McNamara.
Quando os conflitos armados são em África ou no Oriente Médio, os líderes europeus são os primeiros a pedir o cessar das hostilidades e a urgência das negociações de paz. Por que é quando a guerra é na Europa os tambores da guerra tocam incessantemente e nenhum líder apela a que se calem e a voz da paz se ouça?
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Ucrânia, novilíngua e guerra sem fim - Instituto Humanitas Unisinos - IHU