22 Abril 2022
Sim, poderíamos realmente defini-la como uma “cerimônia religiosa especial”. Equiparou-se ao rito da Páscoa ortodoxa que, neste ano, é celebrado no domingo próximo, 24 de abril, exatamente uma semana depois da Páscoa católica, de todas as Igrejas do Ocidente e de algumas orientais. Foi em honra à eleição de Vladimir Putin como presidente russo tanto em maio de 2012 quanto em maio de 2018 e foi presidida pelo patriarca de Moscou e de toda a Rússia, Kirill.
A reportagem é de Maria Antonieta Calabrò, publicada em L’HuffingtonPost.it, 19-04-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Assim como o símbolo da Páscoa para os ortodoxos é representado pelas portas das igrejas, primeiro fechadas, mas depois abertas, para significar a passagem da morte para a vida de Cristo ressuscitado, assim também a mesma “passagem” ocorreu durante a bênção presidencial. Das portas primeiro fechadas e depois abertas da Catedral de Jesus Salvador em Moscou não saiu uma estátua de Cristo, mas o próprio Putin em carne e osso.
Bastaria isso para nos fazer compreender a mistura entre Trono e Altar a que assistimos também durante a guerra contra a Ucrânia, que viu Kirill “abençoar” publicamente a invasão, revelando aos olhos do mundo (mas o fenômeno data pelo menos desde a sua eleição como patriarca em 2009) a existência de uma verdadeira autocracia teocrática, que empalidece até o Irã de Khomeini ou o próprio Estado Islâmico (seja apenas pela vastidão do território em que é exercido, seja ainda pelo fato de a Rússia ser uma potência nuclear).
Podemos afirmar tranquilamente que Kirill não foi apenas o artífice dessa autocracia teocrática, mas também o próprio inventor. Ele a idealizou e perseguiu, mês após mês, ano após ano, primeiro com a ajuda de Dmitri Medvedev e com a influência sobre ele da esposa, fiel ortodoxa de estrita observância, e depois graças a Putin. De fato, apenas alguns meses antes da eleição de Putin como presidente, Kirill definiu Putin no início de 2012 como “o milagre de Deus”, um termo normalmente usado para os santos.
A questão é que não há precedentes recentes para tal aliança entre Trono e Altar. É preciso voltar aos tempos do Império Bizantino. A providência da história privou tanto o sucessor de São Pedro (o papa) quanto o Patriarca de Constantinopla (sucessor do irmão de Pedro, André) de qualquer poder de tipo territorial e, portanto, militar.
Em vez disso, Kirill achou totalmente natural ir tão longe quanto à bênção submarinos com mísseis nucleares. Em outra “celebração religiosa especial” por ele oficiada.
Desde 2007, a Igreja Ortodoxa Russa abençoa mísseis nucleares, até mesmo dentro da Catedral de Moscou. Kirill afirmou que a Rússia precisa deles. Apenas recentemente (2019) é que teve início um debate a esse respeito (ou seja, se é apropriado abençoar armas de destruição em massa: o menor dos mísseis russos pode matar 90 milhões de pessoas em poucas horas), mas a decisão negativa parece que não foi tomada, porque os mísseis intercontinentais balísticos são considerados pela Igreja como os “anjos da guarda” da Rússia.
Também para Kirill “o crente sacrifica a sua vida mais facilmente do que o não crente, porque sabe que a vida humana não acaba com o fim desta vida”. E isso pode ser particularmente útil na guerra e entre os militares.
(Fonte: Vatican News)
“O exército é sempre espiritual” é outro de seus slogans. Ou seja, a Igreja Ortodoxa Russa, que, após o colapso do Estado ateu soviético, tornou-se a espinha dorsal ideológica da nova Rússia, cuja nervo é a estrutura da ex-KGB.
Kirill é o soft power do hard power de Putin. Se pensarmos um pouco, não podemos deixar de notar que não há nenhum caso de Estado contemporâneo em que o Estado seja gerido por membros dos serviços de segurança. Nem de um papel tão difundido da hierarquia religiosa nos assuntos do Estado.
As duas “linhas” se cruzam ou, melhor, se sobrepõem na existência das mesmas pessoas. Em particular Putin e Kirill. De fato, desde 2013, sabemos – a partir de documentos não mais confidenciais dos ex-arquivos soviéticos e, em particular, do Arquivo Mitrokhin – que Kirill foi um agente da KGB desde o início dos anos 1970. Os “Mikhailov files” falam dele, porque o seu codinome era justamente Mikhailov, o agente M, em suma. A KGB favoreceu a sua ascensão ao Conselho Mundial de Igrejas, para que o órgão agisse sob a influência dos desejos de Moscou. E depois na cúpula da Igreja Ortodoxa Russa. Os documentos chegam até pouco antes da queda do Muro de Berlim.
Os originais podem ser lidos aqui [em russo]: O papel “político” e de influência de Kirill cresceu ao longo dos anos, especialmente após o cisma da Igreja Ortodoxa na Ucrânia (onde, em 2018, o Patriarcado de Moscou perdeu metade de todos os seus fiéis e das relativas contribuições). Ela foi reconhecida como autocéfala pelo Patriarca Bartolomeu de Constantinopla.
E é por isso que o papel de Kirill foi decisivo para a guerra em curso. O agente M, isto é, Kirill, fez o “milagre” de transformar um Estado ateu em uma teocracia, mas desencadeou uma guerra potencialmente global. Não devemos nos surpreender porque, como o próprio Putin disse uma vez, “não há nada no mundo comparável ao que um ex-agente da KGB pode fazer”. E, naturalmente, se é ele quem diz isso, você pode acreditar nele.
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A autocracia teocrática armada do ex-agente Kirill - Instituto Humanitas Unisinos - IHU