28 Março 2022
“A nova constituição da Cúria Romana, 'Praedicate Evangelium' ('Pregai o Evangelho'), que foi finalmente lançada em 19 de março após nove anos de trabalho, reconhece que, diante das crises de abuso, de vocações e de credibilidade, o caminho a ser seguido não é uma Igreja 'menor, mas mais pura', mas sim uma ampla evangelização, cujo roteiro é o Vaticano II”, escreve Colleen Dulle, jornalista estadunidense, publicada por America, 21-03-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A tão aguardada reforma da Cúria Romana do Papa Francisco assume a frente para abordar as crises enfrentadas na Igreja, usando o Concílio Vaticano II como um guia para reivindicar a credibilidade da Igreja.
Alguns podem argumentar que Francisco foi eleito para executar essa reforma, dado que ela foi o tema principal das conversas dos cardeais no período pré-conclave, em 2013. Esse é apenas o quinto esforço para refazer a Cúria nos últimos 500 anos. Os últimos foram depois do Vaticano II, com Paulo VI em 1967 e João Paulo II em 1988, que, claro, precederam a reforma de Francisco. Desde então, a Igreja tem perdido credibilidade e sangrado membros nas ricas nações ocidentes onde uma vez já foi mais forte e está agora vivenciando uma severa escassez de padres, deixando alguns católicos sem acesso aos sacramentos por mais de um ano.
Essas estatísticas sinistras não são novidades. Durante o pontificado de João Paulo II, de 1978 a 2005, a Igreja Católica viveu um aumento de 40% da população, mas o número total de padres no mundo decaía levemente. Apesar dos esforços para promover vocações, a população de seminaristas no mundo continuou a cair e a medida de idade dos padres continuou a crescer. A razão de padres para paroquianos continuou crescendo de forma imparável, com um padre para cada 3.245 católicos, em 2019. Vocações para ordens religiosas de mulheres caíram ainda mais profundamente nesse tempo.
Enquanto a resposta de Bento XVI, particularmente à crise dos abusos, foi orientada para purificar a Igreja por uma ênfase na doutrina, a reforma do Papa Francisco mudou significativamente o foco da Igreja: a nova constituição reconhece oficialmente o escritório de evangelização – a Congregação para a Evangelização dos Povos – como o cargo máximo no Vaticano, substituindo a Congregação para a Doutrina da Fé. Esta última, fundada em 1542 como Suprema Sagrada Congregação da Inquisição Romana e Universal, há muito tempo tem o apelido de “La Suprema”.
A nova constituição da Cúria Romana, “Praedicate Evangelium” (“Pregai o Evangelho”), que foi finalmente lançada em 19 de março após nove anos de trabalho, reconhece que, diante das crises de abuso, de vocações e de credibilidade, o caminho a ser seguido não é uma Igreja “menor, mas mais pura”, mas sim uma ampla evangelização, cujo roteiro é o Vaticano II.
À medida que os padres do mundo estão cada vez mais escassos, os leigos – em particular as mulheres leigas – intensificaram-se para preencher as lacunas. Desde o Vaticano II, um vigoroso movimento de catequistas leigos ajudou na formação do laicato na América Latina; em algumas áreas, leigos, incluindo diáconos e religiosas, dirigem regularmente os cultos da Comunhão (um serviço sem consagração da Eucaristia) se as pessoas não tiverem acesso regular aos sacerdotes. As mulheres leigas estão cada vez mais sendo nomeadas para cargos anteriormente ocupados por padres, trabalhando como administradoras paroquiais e chanceleres de dioceses e até sendo nomeadas para cargos de alto escalão no Vaticano.
O Papa Francisco deu mais passos para reconhecer o papel vital que as mulheres já desempenham nas comunidades da Igreja, abrindo os ministérios instituídos de leitorado e acolitado – anteriormente reservados aos homens que buscam o sacerdócio – para leigas e criando o novo ministério leigo oficial de catequista, ambos no ano passado.
Com sua nova constituição para a Cúria Romana, o Papa Francisco garantiu ainda que a Igreja no terceiro milênio seja cada vez mais liderada por leigos. A Constituição afirma especificamente que a reforma da Cúria “deve prever o envolvimento de leigos e leigas, também em funções de governo e responsabilidade” (Sec. 1, Art. 10) e diz que “qualquer membro dos fiéis pode presidir a um Departamento ou Órgão, dada a sua competência, poder e governo ou função particulares” (Sec. 2, Art. 5). O Vaticano não esclareceu exatamente quais funções serão abertas aos leigos, mas os analistas até agora interpretaram isso como significando que os leigos podem liderar todos, exceto alguns escritórios do Vaticano, como o Dicastério para os Bispos e o Dicastério para o Clero. Em uma coletiva de imprensa no Vaticano em 21 de março, o jesuíta Gianfranco Ghirlanda explicou as mudanças, dizendo que “o poder de governança na Igreja não vem do sacramento da [Santa] Ordem”, mas da missão de cada um.
Este é um grande passo para uma instituição que durante séculos relegou o governo e a administração aos ordenados e só gradualmente se abriu tanto para os leigos quanto para serem tão instruídos, se não mais instruídos, quanto os clérigos, particularmente em questões de finanças e liderança. A Constituição da Cúria enfatiza que um leigo não pode ser simplesmente bem qualificado para ocupar um cargo: ele ou ela deve ser “distinguido por sua vida espiritual, boa experiência pastoral, sobriedade de vida e amor aos pobres, espírito de comunhão e serviço, competência nos assuntos que lhes são confiados e capacidade de discernir os sinais dos tempos” (Sec. 2, Art. 7). É interessante que tais termos não sejam listados como requisitos para os padres, embora o papa tenha deixado claro que isso é o que ele espera dos padres também; o documento enfatiza que os sacerdotes devem sair de seus ofícios e participar das atividades pastorais sempre que possível (Sec. 3, Art. 6).
A constituição também enfatiza a sinodalidade – o modelo de liderança da Igreja que o Papa Francisco defende que prevê uma maior colaboração entre bispos e leigos. A nova constituição diz que a comunhão a que a Igreja é chamada “dá à Igreja a face da sinodalidade; uma Igreja, isto é, de escuta mútua ‘na qual cada um tem algo a aprender’. O povo fiel, o Colégio dos Bispos, o Bispo de Roma: cada um escutando o outro, e todos escutando o Espírito Santo” (Sec. 1, Art. 4).
A nova constituição funciona como uma espécie de manifesto de qual é a missão de cada escritório do Vaticano. A essa luz, é interessante ver que a constituição delineia especificamente um papel do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida como “modelos elaboradores de papéis de liderança para mulheres na Igreja” (Sec. 5, Art. 131). Ou seja, a expansão da liderança feminina continuará como uma matéria de missão.
A ênfase da nova constituição na liderança leiga é melhor compreendida no contexto do Vaticano II, que reconheceu os leigos – como a grande maioria do “povo de Deus” – como o recurso mais poderoso da Igreja para a evangelização, testemunhando a fé em sua vidas diárias.
A implementação do Vaticano II é um dos principais objetivos do pontificado do Papa Francisco, especialmente depois que João Paulo II e Bento XVI tentaram retardar ou paralisar o ritmo de sua implementação no que Bento XVI chamou de “reforma da reforma”. Esta constituição deixa claro que os objetivos do Vaticano II são os objetivos da Cúria, e o Papa Francisco enquadra o documento como sendo em continuidade com as constituições pós-Vaticano II que o precederam (Sec. 1, Art. 3), mas com o objetivo de os desafios contemporâneos que a Igreja enfrenta.
Além do papel missionário dos leigos (Sec. 5, Art. 59), a nova constituição coloca a linguagem do Vaticano II diretamente nas descrições de missão de vários escritórios importantes do Vaticano. Por exemplo, a constituição segue o apelo do Vaticano II para que as ordens religiosas cresçam “de acordo com o espírito dos fundadores” (“Lumen Gentium”, nº 45). Esse chamado foi transformador para as ordens que perceberam que seu trabalho atual havia se distanciado da intenção original de seus fundadores e despertou o discernimento sobre como eles foram chamados a cumprir a missão do fundador hoje. A nova constituição da Cúria deixa claro que o Dicastério (antiga Congregação) para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica deve assegurar que as ordens religiosas “progridam no seguimento de Cristo proposto pelo Evangelho, segundo o próprio carisma nascido do espírito e sãs tradições” para contribuir para a missão evangelizadora da Igreja no mundo (Sec. 5, Art. 123).
Mais surpreendentemente, a seção da constituição sobre o Dicastério (antiga Congregação) para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos abre com uma declaração de missão reveladora: “O Dicastério para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos promove a sagrada liturgia conforme a renovação realizada pelo Concílio Vaticano II” (Sec. 5, Art. 88). Em um aceno à ênfase do Vaticano II na “participação plena e ativa” e seu objetivo de tornar a Missa mais compreensível entre as culturas, a Constituição diz que o dicastério deve ajudar as conferências dos bispos “na promoção, por meios eficazes e apropriados, da ação litúrgica pastoral, especialmente no que diz respeito à celebração da Eucaristia e outros sacramentos e atos litúrgicos, para que os fiéis participem mais ativamente deles”. Além disso, “juntamente com as Conferências Episcopais, estimula a reflexão sobre possíveis formas de liturgias inculturadas e acompanha a sua contextualização” (Sec. 5, Art. 89, grifo nosso).
Com o foco da nova constituição na evangelização como missão primordial da Igreja, vale a pena examinar a visão de evangelização apresentada no documento. A finalidade da evangelização é “para que Cristo, luz das nações, seja conhecido e testemunhado com palavras e obras e para que o seu Corpo místico, que é a Igreja, seja edificado” (Sec. 3, Art. 53). A frase “luz das nações” é uma referência ao título latino da “Constituição Dogmática sobre a Igreja” do Vaticano II, “Lumen Gentium”. A constituição divide o dicastério de evangelização em duas seções – uma para “questões fundamentais da evangelização no mundo” e outra para “primeira evangelização” – ou seja, o trabalho da Igreja em lugares que considera “territórios de missão”.
Defende “estudos e trocas de experiências” para apoiar “as Igrejas no processo de inculturação da Boa Nova de Jesus Cristo” e “dá atenção especial à piedade popular”, dois aspectos da evangelização que foram centrais no pontificado de Francisco.
Curiosamente, a constituição não faz referência a ganhar convertidos ou ao catolicismo como a única religião verdadeira, favorecendo em vez disso a linguagem do Vaticano II do “corpo místico de Cristo” e incumbindo o escritório de diálogo inter-religioso de “promover entre todas as pessoas uma verdadeira busca de Deus” (Sec. 5, Art. 149).
Esta visão de evangelização em vez de proselitismo é o vintage de Francisco: como ele escreveu no documento programático de seu papado, “Evangelii Gaudium” (“A Alegria do Evangelho”), “Não é fazendo proselitismo que a Igreja cresce, mas ‘por atração’” (nº 14).
Esse modelo de evangelização só é possível em uma igreja atraente, ou seja, crível. Essa reforma da Cúria codifica as outras reformas de Francisco e visa diretamente as crises que prejudicaram a credibilidade da Igreja. Por exemplo, torna o Pontifício Conselho para a Proteção dos Menores uma parte permanente do escritório de disciplina da Igreja (Sec. 5, Art. 78) e cimenta reformas financeiras anteriores, órgãos de supervisão e estruturas legais. E, ao tornar a liderança da Igreja mais cooperativa entre bispos e leigos, especialmente mulheres leigas, isso pode fazer da Igreja mais atrativa aos que estão desiludidos pela falta de equidade de gênero na Igreja.
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Papa Francisco está se baseando no Vaticano II para mudar radicalmente a Igreja Católica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU