Quaresma, um metaverso cristão? Artigo de Vincenzo Bertolone

Foto: Pixabay

Mais Lidos

  • “A América Latina é a região que está promovendo a agenda de gênero da maneira mais sofisticada”. Entrevista com Bibiana Aído, diretora-geral da ONU Mulheres

    LER MAIS
  • A COP30 confirmou o que já sabíamos: só os pobres querem e podem salvar o planeta. Artigo de Jelson Oliveira

    LER MAIS
  • A formação seminarística forma bons padres? Artigo de Elcio A. Cordeiro

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

21 Março 2022

 

Reentrar em nós mesmos, entrar no metaverso quaresmal: não tanto para fugir aos nossos deveres, mas para cumpri-los melhor, graças ao silêncio, ao recolhimento, à mortificação, à salmodia, à oração e à lectio divina.

 

A reflexão é de Vincenzo Bertolone, arcebispo emérito de Catanzaro-Squillace, na Itália. O artigo foi publicado em Settimana News, 20-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Quaresma. Por quê? Podemos tentar vivê-la como algo extraordinário que o Senhor nos dá a Graça de experimentar hoje, apesar do isolamento da pandemia e da tragédia da guerra na Ucrânia?

 

Conversão? A vida nova – de lagarta a borboleta, caminho de santidade – dura toda a vida, nesta terra e na outra. A verdadeira conversão é alcançada quando não somos mais dominados pelo egoísmo e por desejos descontrolados, mas pelo verdadeiro amor divino libertador.

 

Uma segunda vida diferente está diante da vida ordinária. O mundo tecnológico também nos coloca diante de uma segunda vida, indicada também por uma palavra cheia de curiosidade, metaverso, um sistema para interconectar o mundo real e o virtual mediante um duplo de nós mesmos, de um avatar, como se diz.

 

O prefixo “meta” nos é caro no pensamento cristão e também na literatura. Estamos acostumados a termos como metafísica ou metamorfose. Se a metafísica se abre para algo diferente e além do físico, ou seja, daquilo que se vê e se toca, a metamorfose nos lembra a transformação a que Ovídio, por exemplo, submete alguns personagens da mitologia. Uma proposta de pensamento alternativo, portanto, um metapensamento ou, melhor, literalmente, uma conversão, isto é, uma mudança radical de perspectiva.

 

Deixar-se guiar pela água

 

“Um dos Padres do Deserto dizia: assim como é impossível que um homem veja seu próprio rosto na água turva, assim também a alma, se não foi purificada de pensamentos estranhos, não pode rezar a Deus absorvida na contemplação” [1].

 

Mas hoje ainda se acredita na vocação sobrenatural do ser humano? Para que o caminho quaresmal seja para nós um límpido percurso de aproximação ao essencial, é necessário libertar a nossa existência de todos os empecilhos.

 

O que obstrui a nossa existência individual e social? Por acaso, não nos obstrui também a saturação, a overdose de informações (verdadeiras e/ou falsas) provenientes da sociedade da comunicação de massa e hipertecnológica? Não nos obstruem os muitos produtos de consumo?

 

Sêneca, falando de empecilhos que podem nos tornar intemperantes, já observava: “O gramático Dídimo escreveu quatro mil livros: eu já teria pena dele se ele tivesse se limitado a ler tanta quantidade de inutilidades”.

 

Muito mais do que a sabedoria filosófica, o Catecismo da Igreja Católica ensina que “a temperança é a virtude moral que modera a atração dos prazeres e proporciona o equilíbrio no uso dos bens criados. Assegura o domínio da vontade sobre os instintos e mantém os desejos nos limites da honestidade” (n. 1809).

 

Qual mundo?

 

Conhecemos hoje um tipo de cultura em que a verdade não importa. Mesmo que aparentemente se queira fazer aparecer toda a verdade, só importam a sensação e o espírito de calúnia e de destruição. Contra essa cultura, dizemos “não”.

 

Existem como que dois mundos: um aparentemente verdadeiro, o outro verdadeiramente verdadeiro; um mentiroso e construído artificialmente além do mundo verdadeiro; o outro, por sua vez, verdadeiro e bom, que é possível descobrir e conhecer.

 

O próprio caminho quaresmal tem a sua primeira etapa no “aquém” do ano litúrgico e da vida ordinária; a sua segunda etapa, no “além” dos instrumentos simbólicos e sacramentais que enchem de sentido a vida real. É possível se sentir bem aqui e lá, sem se dedicar ao mal.

 

Eis a necessidade na Quaresma de reentrar em nós mesmos, de nos apartarmos, de entrar no metaverso quaresmal, não tanto para fugir aos nossos deveres, mas para cumpri-los melhor, graças ao silêncio, ao recolhimento, à mortificação, à salmodia, à oração e à lectio divina.

 

Nota:

 

1. Cf. “Detti dei Padri del deserto scelti e presentati da Thomas Merton”. Título original: “The Wisdom of the Desert”, Tea edizioni, 2003, p. XXIV.

 

Leia mais