Em meia a uma guerra fraticida entre Rússia e Ucrânia, na semana do Dia Internacional da Mulher, somos levados a pensar naquelas que sintetizam a paz. Mas que, como revela a palestra de Gabriela Wieczorek, são elas, as mulheres, que primeiro sofrem muito antes guerra, noutras violências dentro de casa
Para os cristãos, esse é um tempo muito significativo, um tempo de quaresma, aquele que antecede a Paixão de Cristo. Para os fiéis, a Paixão de Cristo pode ser lida, de certa forma, como “a paixão do mundo”, uma vez que o filho de Deus se faz humano e se entrega em sacrifício pelo mundo. Mas como viver esse tempo em meio a uma guerra, como a que eclodiu desde a invasão russa a Ucrânia? E mais: como viver essas paixões numa guerra fraticida em que ódio e intolerância se dão mesmo entre cristão, pois tanto na Ucrânia como na Rússia e no Ocidente as Igrejas têm essa gênese comum? Isso tudo, ainda, depois de uma pandemia que transformou a nossas formas de relação, de contato com o outro. Talvez, infelizmente, isso tudo seja um sinal dos tempos de que estamos a perder nossas condições de humanidade e fraternidade.
E, em meio a tudo, na semana do Dia Internacional da Mulher, o Papa Francisco disse que “a paz é mulher, nasce e renasce da ternura das mães”. Como não pensar nas mães, esposas e filhas que deixam os homens da família e fogem da guerra com as crianças? Ou aquelas que ficam enfiadas em buracos com crianças e mais velhos no meio de bombardeios, pois sequer lhes foi dado o direito de escolher partir? Se a paz é atacada e ela é feminina, logo, é nas mulheres que dói essa que é das maiores violência da humanidade: a guerra.
No entanto, havemos de convir que não é de hoje e tampouco em tempos de guerra que as mulheres são atacadas e destroçadas. Talvez, agora, muito perto de nós uma mulher esteja sendo vítima de alguma violência. Afinal, como bem lembra a Casa de Referência da Mulher - Mulheres Mirabal, a cada 30 minutos uma mulher é agredida, somente no Rio Grande do Sul. Como diz a mestra em artes visuais Gabriela Traple Wieczorek, o feminicídio é um crime que não diz de situações particulares, mas de todos nós, por isso considerado um crime de Estado. “Uso o conceito de Marcela Lagarde para pensar o feminicídio, pois ela vai dizer que ‘trata-se de uma ruptura do Estado de direito que favorece a impunidade. É preciso elucidar que existe feminicídio em condições de guerra e de paz’. Por isso, é tão importante também pensar nisso no atual contexto”, aponta.
Gabriela fez essa conexão durante sua fala na conferência “Abordagens artísticas e culturais do feminino”, promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, alusivo ao Dia Internacional da Mulher. A jovem tem pesquisado como a violência é representada pelas mulheres, portanto, as vítimas, na arte. Num exercício de tentar ir além de seleção de dados e números – o que também choca, mas que, de certa forma parecemos ter naturalizado –, Gabriela engendra a lógica das artistas que, seja por uma pintura ou por uma intervenção, interpelam os interlocutores e escancaram as faces das formas de violência contra a mulher. “O feminicídio ocorre quando as condições históricas geram práticas sociais agressivas e hostis que atentam contra a integridade, o desenvolvimento, a saúde, as liberdades das mulheres”, completa Gabriela, finalizando seu conceito a partir de Marcela Lagarde, que parece ser ainda mais factível no tempo que vivemos.
Para Gabriela Wieczorek, é importante ter essa clareza sobre o conceito de feminicídio porque é a partir dessa perspectiva que se vai mapear as manifestações artísticas que corporificam esse ataque contra as mulheres. “Resumindo, o que Lagarde quer dizer é que o feminicídio vai ser o ponto final de uma combinação de opressões, pois é quando acontece uma série de opressões que afetam a educação, a saúde, o direito etc. das mulheres é que se dá esse crime”, explica.
Gabriela Traple Wieczorek (Foto: arquivo pessoal)
A jovens pesquisadora tem toda essa formulação sobre o crime na atualidade. Mas faz questão de enfatizar que “esse discurso não é necessariamente novo”. Ou seja, se marcamos o século XX com uma das piores guerras da humanidade, sufocando cruel e lentamente a paz, há tanto - ou até a mais tempo - mulheres vinham sendo violentadas e pensamos formas de escarnar isso à humanidade. “Temos artistas, principalmente mulheres, no México, nas décadas de 1920 e 1930, extremamente engajadas politicamente e que vão começar a relatar o cotidiano das mulheres de forma crítica”, aponta, ao lembrar de Isabel ‘Chabela’ Villaseñor (1909–1953) e Frida Kahlo (1907–1954).
Gabriela explica que Isabel, artista e escritora mexicana, cria uma peça de teatro musicada a partir de músicas populares mexicanas que contam histórias. Essa peça era acompanhada de uma série de xilogravuras que narram a história de “Elena, la traicionera”, morta pelo marido que se considera ofendido quando a mulher flerta com um general francês. Já Frida, mundialmente reconhecida pela sua arte feminista, retrata uma notícia que lê no jornal. “Ela lê que o marido diz, depois de ser preso por ter esfaqueado 20 vezes sua esposa, que ‘só foram alguns cortezinhos”, completa Gabriela.
Diante as imagens trazidas por Gabriela, é possível nos questionarmos se já antes de promovermos a guerra fora de casa não estávamos há muito tempo atacando nossa própria humanidade. Afinal, um ser que é incapaz de dominar sua ira e por ela assassinar aquela com quem divide o lar seria capaz de pensar no sofrimento que pode causar a um irmão numa guerra entre nações? Mais do que um ponto final nas opressões, talvez, o feminicídio pode também ser lido como o “start” de um processo de esfacelamento das relações humanas, que nasce como questões de gênero e transbordam para questões sociais, econômicas, religiosas e culturais, políticas etc.
Percorrer as imagens apresentadas por Gabriela é como olhar a violência por um outro lado. Muitas delas chocam, mas não pelo que apresentam plasticamente, e sim porque que somos convidados a imaginar o que sustenta aquela obra, aquela imagem ou intervenção artística. Passemos por algumas dessas imagens trazidas pela jovem pesquisadora e experimentemos essa interpelação da arte que faz pensar sobre a violência contra a mulher, contra o outro, contra a humanidade e até contra nós mesmos.
Aurora Reyes (1908 – 1985) era uma ativista pelos direitos de professoras, como recorda Gabriela. “Sabemos que o magistério sofre também por ter essa percepção atrelada ao feminino”, aponta, enquanto comenta a tela que retrata o ataque de homens a uma professora dentro da escola e diante de seus próprios alunos.
Graça Craidy é uma artista gaúcha que cria uma série de pinturas denominadas "Até que a morte nos separe". Nas obras, são retratadas cenas de crimes de feminicídio noticiados no Rio Grande do Sul. Já a carioca Panmela Castro, em vez de trabalhar com o relato da morte, vai tecer retratos a partir do relato de mulheres que sobreviveram a ataques. “Panmela também é fundadora da Rede NAMI, uma ONG que trabalha com formação artística. Esse trabalho é focado principalmente em jovens negras. E na sede da Rede NAMI também vai fazer murais como esse [abaixo, com imagem de Marielle Franco]”, completa Gabriela.
Gabriela também explica que já na contemporaneidade temos artistas que vão usar o próprio corpo. “Saímos da pintura, da escultura e prefigurações e começamos a ter as performances, mas, ainda assim, baseadas em relatos”, acrescenta. É o caso de Ana Mendieta, que fica muito impactada com a notícia do assassinato de uma colega de universidade em Iowa, no centro-oeste do Estados Unidos. “E ela recria toda a cena do crime no apartamento dela. Convida os colegas para irem até lá e quando chegam, sem saber, se deparam com a cena”.
Suzanne Lacy e Leslie Labowitz criam uma rede artística social. Nessa obra, tratam do luto pelas mulheres que estavam sendo assassinadas em Los Angeles, também nos Estados Unidos.
No contexto mais de América Latina, Gabriela traz Mónica Mayer e seu Tendedero. “É uma obra documental e interativa, que começa em 1977, 1978, mas que perdura até hoje em diferentes formatos”, conta. Inicialmente, os papéis rosa questionavam sobre “o que mais odeio de viver na Cidade do México?”. Muitas mulheres passaram a responde que era o assédio e violência que passavam indo ao trabalho, na universidade. Hoje, traz diferentes perguntas sobre a experiência nas cidades e violência doméstica.
Gabriela lembra que no México há muitas intervenções populares em lugares que foram palco de violências contra as mulheres. Uma das artistas é a fotógrafa Sonia Madrigal, que tem um projeto que registra essas intervenções, como a realizada em Chimalhuacán, México, palco de violência contra mulheres que trabalhavam na cultura e beneficiamento do algodão, como atuando nas maquiladoras. Muitas dessas intervenções são preparadas pelas mães das vítimas, como é o caso da senhora da foto de Sonia.
Nessa outra intervenção, Sonia fotografa as silhuetas espelhadas. É uma intervenção que marca o local onde mulheres desaparecem ou corpos de mulheres foram encontrados. “Ela cria essa silhueta espelhada numa forma de nos colocarmos um pouco no lugar daquela mulher e se enxergar enquanto refletimos sobre isso”, analisa Gabriela.
Assim como as cruzes, os sapatos femininos são também usados em intervenções que chamam atenção para territórios que foram placo de violência contra a mulher. Na imagem, a obra de Elina Chauvet, no México, que volta ao local onde a irmã foi assassinada. “Ele começa a pensar muito sobre o feminicídio e se surpreende com a quantidade de pôsteres e santinhos pedindo justiça por assassinatos de mulheres. Ela se dá conta que as histórias quase sempre envolvem trabalhadoras de fábricas ou lojas de sapato indo ou voltando do local de trabalho”, acrescenta Gabriela. Assim, famílias doam e emprestam sapatos de vítimas que a artista pinta de vermelho e os coloca como numa marcha silenciosa.
Os vestidos são outra peça do vestuário feminino que tem servido para mostras e intervenções artísticas que buscam interpelar as pessoas sobre a questão do feminicídio. E entre as produções trazidas por Gabriela está a de Pamela Castro, numa performance realizada no Rio de Janeiro. “A artista vai mergulhar em tinta vermelha e vai fazer trajetos pelas ruas e, depois, esse vestido vai ser exposto em diversos lugares. Nessa foto da direta, é no Museu da República”, explica a pesquisadora.
As performances artísticas têm mesmo esse propósito de surpreender e interpelar. No entanto, quando trata da brutalidade de crimes contra a mulher, é como se a atmosfera perversa se refizesse diante de nossos olhos. É o caso da obra da guatemalteca Regina José Galindo. “Ela veste roupas de mulheres que foram assassinadas. Na primeira foto, ela reproduz a vítima e suas amigas e, na segunda, veste a roupa de uma vítima numa família majoritariamente de mulheres e que foi dizimada”, descreve.
Regina, em suas intervenções, fica uma hora parada em locais públicos evocando a presença dessas mulheres. Se para nós que acessamos apenas o registro fotográfico da intervenção já é chocante, imagine para quem assiste. Questionada sobre as reações das pessoas diante de obras como essas, Gabriela diz que é muito diverso. “Depende muito do lugar e da situação. Há casos de aproximação e outros nem tanto”, conta. Mas, indiferente se há ou não o aceite a se vestir com as dores do outro, revivendo essa paixão, o que importa é a surpresa. Afinal, goste ou não, a dor do mundo está ali, escarnada na dor dessa mulher.
Diante de tantas imagens que nos remetem a inúmeros casos de violência contra as mulheres, podemos sentir que realmente parecemos estar cada vez mais distantes de uma ideia de fraternidade. Afinal, se refutamos àquela que está perto de nós, que dirá o povo do país do lado. Mas, em meio a tudo, é preciso lembrar que há resistência e demonstrações de fraternidade e apoio dessas mulheres. Muitas, inclusive, organizadas em torno de instituições como a Casa de Referência da Mulher – Mulheres Mirabal. Situada em Porto Alegre, é parte das oito casas de referência que o Movimento de Mulheres Olga Benário mantém em todo o Brasil. Aliás, a Casa Mirabal sofre, inclusive, com a ameaça de fechamento pelo poder público.
Gabriela traz, assim, ações do Núcleo Artístico da Casa Mirabal que, além de acolher mulheres vítimas de violência, também se empenha em evidenciar essa dor e, ainda, cobra ações efetivas das autoridades.
Nessa intenção, as jovens se colocam em frente à sede do Ministério Público do Rio Grande do Sul para pedir celeridade nos processos que a Prefeitura de Porto Alegre tem com a Casa de Referência.
Em meio a tanta dor e desesperança, é preciso resistir. Para a jovem pesquisadora Gabriela, a arte denuncia, mas também abre janelas, respiros. É o que acredita também a ilustradora e artista visual Ane Schütz. Depois de participar de uma atividade na Casa Mirabel, diz que “além de plantar a sementinha da arte na vida dessas mulheres, pode ouvir elas, aprender com elas e abrir esse horizonte. Isso é transformador”.
Por um lado, se parece haver esperança, quando olhamos para a guerra que ocorrem na Ucrânia lembramos dessa dor. Mais uma vez, as mulheres são as que mais sofrem e são violentadas, como elas mesmas lembram em depoimento para a TV Folha, da Folha de São Paulo.
Evidentemente, cabe a todos nós a esperança; é preciso salvar a humanidade nos humanos. Isso passa por cessar a guerra na Ucrânia tanto quanto cessar o feminicídio, porque há algo de perverso que engendra ambos os ataques. Mas é compressível que resistir, acreditar e transformar em meio a tantas dores do mundo seja difícil. Quem sabe o cristianismo possa fornecer uma chave para a esperança, pensando na ressurreição, na vitória da vida sobre a morte, da alegria sobre a dor, da paz sobre a guerra. Ou, quem sabe, possamos nos inspirar na Orquestra Sinfônica de Kiev que, em meio à destruição na Ucrânia, luta para deixar viva sua arte e mostra através dela que é preciso acreditar.
Gabriela (Foto: arquivo pessoal)
Mestre em Artes Visuais, com ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte, pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e bacharel em História da Arte pela mesma instituição. No mestrado, desenvolveu uma pesquisa acerca dos processos artísticos contemporâneos sobre o feminicídio e a violência de gênero na América Latina, com foco principal no Brasil e no México. Atualmente é assistente editorial na Revista PHILIA | Filosofia, Literatura & Artes.