24 Fevereiro 2022
Um trecho da Lectio intitulada "Onde se gera o futuro: sobre a juventude da Igreja em tempo de crise" que o padre Antonio Spadaro, diretor da Civiltà Cattolica, proferiu em 21 de fevereiro, na Aula Magna na Universidade Católica de Milão. O encontro faz parte da série de conferências “Um século de futuro. A universidade entre as gerações”, promovida pela Universidade por ocasião do centenário de sua fundação.
O texto é publicado por Corriere della Sera, 20-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo Spadaro, "se não há sensação de vertigem, se não se experimenta o terremoto, se não há a dúvida metódica - não aquela cética -, a percepção de surpresa incômoda, então talvez não haja experiência de Igreja. O futuro da Igreja, nesse sentido, vive não somente como abertura ao futuro, suspense, inquietude, ritmo das diversidades harmoniosas, mas também plena reconciliação com todas as dinâmicas do humano, inclusive aquelas centrífugas em relação à própria Igreja".
"Hoje reconhecemos que uma 'civilização católica' - afirma o diretor da Civiltà Cattolica - não é uma bolha fechada em si mesma, nem alimenta ressentimentos em relação a um mundo que para alguns parece perdido e à deriva, abandonado por Deus. A civilidade católica não é aquela construída sobre a intransigência dos puros que mata o espírito. A tentação identitária é a necrose do cristianismo".
Ao me questionar sobre o futuro da Igreja, se impôs à minha reflexão um autor muito querido, que entre 1945 e 46, ou seja, quando Camus estava completando A peste, e Ingmar Bergman fazia sua estreia cinematográfica - publicou seus primeiros romances. Estou falando do escritor sueco Stig Dagerman. Eu não tinha certeza por que ele continuava retornando à minha memória.
Em particular, recordava-me de uma de suas extraordinárias reflexões, na qual ele escreve, entre outras coisas: "Falta-me a fé e nunca poderei, portanto, ser um homem feliz, porque um homem feliz não pode ter medo de que sua vida seja apenas um vagar insensato em direção a uma morte certa. Não herdei nem um deus nem um ponto fixo na terra do qual possa chamar a atenção de um deus. Nem mesmo herdei a fúria bem escondida do cético, o gosto do deserto do racionalista ou a ardente inocência do ateu. Portanto, não ouso atirar pedras na mulher que acredita em coisas das quais eu duvido ou no homem que venera sua dúvida como se ele também não estivesse cercado de trevas. Essas pedras atingiriam a mim mesmo, porque de uma coisa estou convencido: que a necessidade de consolação que o homem tem não pode ser satisfeita”.
Estamos fora do perímetro católico, é claro. Estamos no cristianismo luterano. Mas não importa. A impossibilidade da "consolação" (tröst) prende Dagerman ao medo de que sua vida seja apenas "um vagar insensato em direção a uma morte certa". Ele não pode ser um homem feliz, portanto. Há uma necessidade de consolação que não pode - justamente - ser satisfeita pela pura projeção calculada dos dados do que já foi vivido. Eis o ponto, eis porque eu tinha essa citação em mente: falta o futuro. Dagerman não pode pensar o futuro.
O tempo da Igreja é o futuro, o devir. No momento em que o passado e o presente dominam sem o horizonte do futuro, a mensagem do Evangelho torna-se uma mercadoria a ser vendida, se mercantiliza. A tradição também se torna mercadoria. Um alto comércio, claro: de valores e ideias, mas ainda comércio. A mensagem do Evangelho é indisponível, não comercializável, "deve estar à mão", ser utilizável. Foge da mão, foge a qualquer organização, a qualquer forma de propaganda manipuladora. O Evangelho projeta-se sobre em um futuro desconhecido, no devir.
A abertura ao Espírito vive da capacidade de pensar no futuro. Se não se consegue pensar em um depois, um amanhã, algo que ainda deve acontecer, então é impossível falar sobre geração do futuro. Parece óbvio pensar no passado que já está realizado e no presente que se desenrola enquanto o pensamos. E, no entanto, para gerar o futuro - e, portanto, para ter esperança - é preciso imaginar, nos projetar em um futuro possível, refletir sobre o que não vemos com os nossos olhos nem tocamos com as nossas mãos.
Para falar do futuro da Igreja, portanto, é necessária uma abertura à incerteza. Claro, há quem pense que o futuro seja uma dedução: dadas algumas condições, pode-se deduzir algo do que vai acontecer. Mas isso não tem nada a ver com o que os cristãos chamam de esperança. O futuro confiado à estatística das probabilidades não se abre à esperança, mas ao cálculo, ao pensamento que calcula capaz de fazer previsões mais ou menos confiáveis. O futuro (também o da Igreja) seria assim a continuação lógica do presente com base no passado. Não há salto, não há desvio, não há abismo, não há desejo, não há inquietação, não há revolução.
A esperança da Igreja, por outro lado, é a imersão em uma história que chega até nós, à qual somos chamados, sem ser produto de nossos cálculos, muito menos de “planos pastorais” feitos por “operadores”. Quando existe essa atitude de fé, então as portas da esperança podem se abrir. É possível gerar um futuro, estar abertos à "possibilidade", como escreve Emily Dickinson em uma de suas esplêndidas linhas: I dwell in possibility. Não se trata de acreditar na probabilidade, mas na possibilidade, ou seja, na possibilidade de fazer uma experiência não ligada aos limites do que é estatisticamente provável. A esperança é o território do possível, que vai muito além do campo da probabilidade. É o território da graça, a única possibilidade de “juventude” da Igreja. Ela implica a incerteza, a indeterminação. Não a ordem, a codificação, o sólido, mas o informe, o devir, o que ainda não está solidificado e definido.
Em última análise, o motor da esperança é o medo de não receber o que se espera, daí a dúvida, a incerteza, a precariedade inquieta. Por isso, Francisco fala muitas vezes de "inquietação saudável", que é o verdadeiro estado de espírito da juventude. Porque pensa no futuro, no inaudito, no imprevisível. É preciso “ler” essa inquietação e valorizá-la porque todos os sistemas que tentam “aquietar” o homem são perniciosos: conduzem, de uma forma ou de outra, ao “quietismo existencial”. O futuro é gerado na inquietude.
Hoje, porém, sentimos uma forte tentação - às vezes até na Igreja -, de cerrar fileiras. Percebe-se a tentação de opor ao caos percebido a resposta de um catolicismo intransigente e identitário. Hoje reconhecemos que uma "civilização católica" não é uma bolha fechada em si mesma, nem alimenta ressentimentos em relação a um mundo que para alguns parece perdido e à deriva, abandonado por Deus. A civilidade católica não é aquela construída sobre a intransigência dos puros que mata o espírito. A tentação identitária é a necrose do cristianismo.
Nesse sentido, Bergoglio não rejeita a "utopia" como mera abstração. Pelo contrário, reconhece a sua carga positiva e o seu valor político. A utopia para o Papa é uma crítica da realidade, mas também uma busca de novos caminhos. Aqui há uma tarefa radical: reconstruir o imaginário da fé e da convivência humana em uma sociedade em mudança, onde as referências simbólicas e culturais não são mais aquelas de antigamente.
Se não há sensação de vertigem, se não se experimenta o terremoto, se não há a dúvida metódica - não aquela cética -, a percepção de surpresa incômoda, então talvez não haja experiência de Igreja. O futuro da Igreja, nesse sentido, vive não somente como abertura ao futuro, suspense, inquietude, ritmo das diversidades harmoniosas, mas também plena reconciliação com todas as dinâmicas do humano, inclusive aquelas centrífugas em relação à própria Igreja.
Somente no eschaton a unidade, a santidade, a catolicidade e a apostolicidade da Igreja aparecerão em toda a sua plenitude. A Igreja não é uma societas perfecta paralela à humana, civil. Não é um "mundo em si ". É povo fiel de Deus a caminho, communio viatorum. A sua juventude e o seu futuro consistem em reconhecer onde o Senhor já está presente no mundo, compreender onde se deixou encontrar e onde está: ora encorajando ora chamando à conversão. É necessário reler a vivência do mundo à luz da Providência e da Graça, reconhecer os semina verbi, sem nunca cair na tentação da desolação e da solidão.
Delineamos uma Igreja inquieta, instável, "desinstalada", por assim dizer, que, no entanto, à luz da tensão rumo ao Reino de Deus e graças ao Evangelho, é capaz de ler um sentido para os eventos humanos. Assim descobriremos como verdadeiras as palavras que Julien Green escreveu em seu Diário: "Creio que estamos todos em caminho do cristianismo, e isso é praticamente tudo o que podemos dizer".
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“O tempo da Igreja é o futuro e o motor do devir é a esperança” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU