"Sempre tive consciência de que o desejo de viver não é algo considerado como certo". Entrevista com Véronique Margron, presidente da Conferência dos Religiosos e Religiosas da França

Fonte: PxHere

04 Fevereiro 2022


A religiosa responde a perguntas sobre as origens de sua vocação e sobre o choque das revelações do relatório Sauvé sobre os crimes de pedofilia na Igreja. Doutora em teologia moral, primeira mulher eleita decana de uma faculdade teológica na França, Véronique Margron há anos se dedica à escuta das vítimas de violência sexual dentro da Igreja. Presidente da Conferência dos Religiosos e Religiosas da França e provincial das Dominicanas da Apresentação, participou da constituição da Comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja, presidida por Jean-Marc Sauvé, que apresentou seu relatório no final do ano passado. Face compassiva da Igreja, a teóloga denuncia o “fracasso” das instituições católicas e a dimensão sistêmica de tais crimes.

 

A entrevista é de Solenn de Royer, publicada por Le Monde, 31-01-2022. A tradução da versão italiana é de Luisa Rabolini.

 


Eu não teria chegado a este ponto se...


Se eu não tivesse conhecido um grande teólogo, Xavier Thévenot [1938-2004], quando eu tinha 25 anos. Foi com ele que comecei o estudo da teologia. Apaixonado pelas ciências humanas, era um grande leitor de Paul Ricoeur e acreditava que a teologia não deveria ser um discurso teórico, mas que se deveria em primeiro lugar ouvir a realidade. Ele nos ensinava a teologia moral tecendo histórias particulares, inspiradas nos relatos de todos aqueles que recebia, especialmente muitos homossexuais, para uma tese sobre as homossexualidades masculinas. Aquele homem estava, ao mesmo tempo, dentro da Igreja, era padre, salesiano de Dom Bosco, teólogo, mas também na soleira, pronto a receber e escutar aqueles cujas vidas estavam sendo abaladas. Estava em um ponto de conjunção. Eu tinha acabado de entrar para a vida religiosa, vindo de um ambiente profundamente agnóstico, e estava trabalhando no ministério da justiça, com menores em risco. Eu vivia em dois mundos completamente separados. Ele me ajudou a encontrar uma maneira de conectá-los. Percebi que podia ouvir vidas abaladas e ler Tomás de Aquino. Aquele encontro foi decisivo.

 

O que você pode dizer sobre sua infância?


Nasci [em 1957] em Dakar, onde cresci com minha mãe e meu irmão. Uma família restrita. Eu era uma criança tímida e solitária. Minha mãe era uma funcionária da reitoria. Nunca soube se ele conheceu meu pai ali ou se o conheceu primeiro e depois o seguiu até a África. Faz parte dos segredos de família que ela levou consigo. Voltamos à França em 1961, um ano após a independência do Senegal, moramos por um período em Orléans com os avós. Meu avô era operário de uma fábrica; minha avó era costureira. Acredito que meus pais se separaram antes de voltarmos da África, mas isso não está claro. Meu irmão e eu não fazíamos perguntas.

 

Que lembranças você tem do seu pai?


Nenhuma. Só de minha mãe, que muitas vezes chorava. Ela teve que voltar para a França porque havia se separado de nosso pai ou porque tinha que criar dois filhos sozinha? Eu não sei. Ela ganhou muitos concursos internos com grande esforço, trabalhava muito, muitas vezes estava cansada. Não era fácil. Tenho poucas lembranças de amigos que vinham nos visitar. Vivíamos como em uma bolha. Quando eu tinha dez anos, descobri uma carta que informava a morte de meu pai. Fechei aquela carta e nunca falei com ninguém sobre isso. Em nosso apartamento, em Orléans, havia apenas dois quartos, um para meu irmão e outro para minha mãe e para mim. Lembro-me de noites inteiras olhando-a dormir imaginando o que ela estava pensando, o que estava sentindo. Não entendia o fato de ela não tivesse demonstrado nenhuma emoção depois de receber aquela carta. Minha mãe era como um bloco de granito, impossível de penetrar. Uma mulher de um mistério absoluto.

 

Como adulta, você não tentou descobrir mais a respeito?


Não. Por medo do que eu poderia encontrar, por pudor, ou para protegê-la, mesmo que eu não soubesse do quê. Ela era uma mulher muito forte, digna, que enfrentou dificuldades a vida toda, mas não queria arriscar vê-la desmoronar. Quanto mais os anos se passavam, mais complicado se tornava falar sobre isso. Resumindo, respeitei seu silêncio. Pouco antes dos 40 anos, tive necessidade de saber e fiz algumas pesquisas. Encontrei algumas informações sobre o meu pai. Ele era um representante comercial e tinha uma família no Haiti. Ele morreu em Paris, muito sozinho.


Como conseguiu escapar daquela atmosfera familiar pesada?


Fazia muito esporte, vôlei. E todo verão eu ia a acampamentos de férias em Barcelona, organizados por uma associação de Orléans. Um sopro de ar maravilhoso! Eu estava finalmente saindo daquele mundo estreito. Por volta dos dezesseis anos, tornei-me instrutora, o que me obrigou a superar minha timidez. Criei um vínculo com a gerente daquelas temporadas linguísticas, Anna, uma mulher formidável, original, divertida, com quem conversava por horas. Isso me ajudou a respirar, eu precisava disso.


Olhando para as coisas com certa distância, descobria que minha mãe, misteriosa, disponível, amorosa, também podia mostrar-se autoritária e possessiva. Não ter que viver sob seu olhar foi uma libertação. Anna era muito crente, sem fazer proselitismo. Eu não entendia, mas achava algo legal. Ou melhor, que tinha sentido.


Depois você foi para Tours para estudar psicologia.


Sim, eu queria ser autônoma, por isso trabalhava. Naquela época, podia-se ensinar como professor substituto com o diploma de segundo grau. Fui nomeada para "aulas de aperfeiçoamento", para crianças difíceis. Passei dois anos nisso enquanto estudava psicologia. Depois passei num concurso para a Proteção judicial de jovens. Meu trabalho como educadora de jovens infratores me apaixonou. Sempre gostei de tentar entender o outro tentando lutar contra a fatalidade. Com aqueles jovens que haviam fracassado, era complicado, mas era isso que me motivava. Histórias difíceis não estão fadadas a se repetir!


Como surgiu a vocação religiosa?


Não em uma igreja, atrás de uma coluna! Venho de um ambiente muito distante da religião. Certo domingo precisei fazer algumas fotocópias. Levaram-me a umas freiras dominicanas que tinham uma escola secundária em Tours. Aquelas mulheres me comoveram. Um pouco como com Anna, tive a impressão de que elas estavam no lugar certo. Trabalhavam, estavam inseridas no mundo, não faziam grandes discursos. E, ao mesmo tempo, sentia que eram mulheres de profunda fé, sentia-o pela qualidade de sua escuta e de sua atenção, pela sua forma simples de falar de Deus e do que viviam. Eram, ao mesmo tempo, pudicas e singulares. Também sentia nelas e naquela congregação religiosa um grande apego à liberdade. Eu as frequentei por um longo tempo, depois troquei Tours por Orleans. Onde, mais tarde, as reencontrei!


Como isso aconteceu? Por acaso?


Justamente isso! Nesse meio tempo, elas tinham fundado uma comunidade em Orléans, numa casa popular perto da estação. Ao atravessar uma ponte, me deparei com uma das freiras. Incrível! Ele me convidou para visitá-las. Perguntei-lhes se eu poderia viver com elas por algum tempo. Eu queria entender por dentro como era a sua vida. Bem, no início, teve um encontro casual: às vezes a vida está por um fio! Em anos anteriores, havia passado algum tempo em mosteiros, em particular com os beneditinos de La Pierre-qui-Vire. Impressionava-me o silêncio, a densidade, havia algo relaxante, como um descanso. Encontrei ali rostos acolhedores e benevolentes e assim me aproximei da vida religiosa, que é uma forma de simplicidade, de unificação. Aqueles homens eram o oposto da dispersão. Isso fez com que um eco ressoasse dentro de mim.

 

Por quê?


Eu me fazia muitas perguntas sobre o sentido da existência. Sempre tive consciência, talvez por ter estado em contato com jovens em dificuldade que conheci como educadora, que a vida, o desejo de viver não é algo dado como certo, que é necessário que seja estimulado, alimentado. O que nos leva a levantar todos os dias, a realizar projetos, a fazer esforços para ter sucesso? O que mantém tudo isso, o que dá sabor? Eram perguntas lancinantes. O encontro com aquelas freiras me ajudou a encontrar respostas. Mais que tudo, tive a impressão de estar em casa.


Como sua mãe reagiu?


Mal. O mundo desabou sobre ela. Ela, que tanto lutara por sua autonomia, tinha a impressão de que eu estava ficando dependente de outros, uma regressão. Não nos falamos por meses.


De qualquer forma, ela compareceu quando eu proferi meus votos, mas chorou o tempo todo. Meus amigos educadores também vieram. No início ficaram preocupados, me diziam: "Você está se juntando a uma seita!". Mas à força de vir me visitar, de conversar com as irmãs, acabaram entendendo.
Paralelamente à sua vida com as dominicanas, você também ensina teologia...


Estudei teologia durante dez anos. E fiz uma tese sobre o sentimento de solidão. No sofrimento ou na grande alegria, há algo que não pode ser totalmente compartilhado com o outro. Sempre me impressionou a história de , na Bíblia, aquele grito de quem não compreende o sofrimento e o mal que recaem sobre ele. Há também a solidão de Cristo na cruz. Comecei a proferir muitas conferências sobre bioética, sobre o problema do sofrimento, continuando a lecionar na Universidade Católica de Angers, da qual fui eleita decana.


Você é a primeira mulher decana de uma faculdade de teologia na França... Como chegou a participar da escuta das vítimas dos crimes de pedofilia?

 

Meu mestre de teologia, Xavier Thévenot, que sofria da doença de Parkinson, começou a me enviar pessoas para atender e ouvir. Alguns pediam apenas um acompanhamento espiritual. Outros não estavam nada bem. Recebi muitas vítimas de incesto. Mas também vítimas de padres. Para mim, aquelas pessoas tinham sido vítimas de bastardos. Eu não os ligava à Igreja. Só mais tarde compreendi a dimensão sistêmica daqueles crimes, do fato de a instituição ter se tornado cúmplice deles.

 

Você sempre recebeu muitas vítimas. Na sua opinião, é também porque você é uma mulher?


Eu não sei. Talvez houvesse mais desconfiança com um homem. Acima de tudo, recebi muitas vítimas que não haviam sido ouvidas por ninguém. Bateram sabe-se lá a quantas portas de religiosos, bispos, padres... em vão. Acredito que as mulheres devem ocupar o lugar que lhes cabe na Igreja, e que a Igreja deve superar seu fechamento sobre si mesma. Porque quanto mais há fechamento (e, além disso, fechamento sobre si mesmo de grupos de homens celibatários, religiosos ou padres, ou seja, o máximo do fechamento), mais há o risco de abusos.


Essa experiência de escuta mudou você? Você tenta se proteger?


Já não estou mais convencida de que temos de nos proteger. Minha regra de ouro é tentar ouvir o máximo possível. Diante daqueles relatos, a gente se sente muito pequena. Muitos pensam que não conseguirão aguentar, que nos desligamos... Eu só tento ficar ali, presente. Com o meu corpo, a minha humanidade. Faz parte do reconhecimento do mal cometido, do mal sofrido. Ser confrontado com tal barbárie é devastador por dentro. Eu gostaria de sair ilesa fisicamente, mas é impossível: ainda é pouco comparado ao que as vítimas vivem. É chocante ver até que ponto o mal se insinua, se inscreve profundamente e devasta, independentemente da idade. Ouvi uma religiosa de 100 anos que foi vítima de um padre aos 9 anos: ela ainda lembrava o cheiro de seu agressor ...


Qual foi seu papel na constituição da Comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja, a Ciase?


Em 2014, as irmãs me elegeram provincial, ou seja, responsável pela nossa congregação na França. Mudei de vida, vim para Paris. Depois, em 2016, fui eleita presidente da Conferência dos Religiosos e Religiosas da França (Corref). Estávamos em pleno desenvolvimento do processo do padre Preynat e estávamos assistindo ao crescimento da associação La Parole Libérée, que rompeu com o silêncio conivente sobre os abusos sexuais na Igreja. Como presidente do Corref, eram me enviados, em cópia, muitos depoimentos de pessoas que haviam sido vítimas de um religioso. Eram enviados principalmente a responsáveis da Igreja. Surpreendeu-me o número de cartas recebidas, e havia cada vez mais. Diante da magnitude do fenômeno, senti que não conseguiríamos enfrentar a situação, que algo demasiado pesado estava se anunciando. Precisávamos entender o que estava acontecendo e, acima de tudo, responder de forma justa às vítimas. Assim nasceu a ideia de uma comissão independente presidida por Jean-Marc Sauvé.


Em 5 de outubro, no final do seu discurso de entrega do relatório da CIASE, você citou Bernanos: “A esperança é a maior e mais difícil vitória que um homem pode ter sobre sua alma. Chega-se esperança somente através da verdade e à custa de grandes esforços”. Como você reagiu a essas revelações?


A apresentação do relatório foi um momento muito difícil, um choque. Eu não tinha palavras. O que posso dizer senão que sinto uma dor infinita e uma indignação absoluta? Aquele relatório mostrava dois desastres: o de todas aquelas vidas destruídas dentro da Igreja, e o de nossas instituições, que não protegeram as crianças, não denunciaram os perpetradores daqueles delitos.


Causa vertigem! Tendo estudado teologia por dez anos e depois passado dez anos ensinando-a: que peso poderia ter quando se tomava consciência do mal cometido e do mal sofrido? Restava-me o Livro de Jó, meu companheiro de toda a vida, e Hannah Arendt, que meditou sobre a banalidade do mal.


Depois disso, como é possível continuar a viver na Igreja? Você tem dúvidas?


Cristo sempre esteve do lado das vítimas. Mas houve momentos difíceis, é verdade. Ouvir aquelas histórias tão duras, às vezes inimagináveis, e constatar que a instituição estava envolvida nelas, ou que nada fez para impedi-las, é muito difícil de aceitar. De qualquer forma, tenho certeza de que estou no meu lugar. Ouvir aquelas vidas destruídas e bloqueadas faz parte da minha vida, da minha fé. Não temos que procurar um sentido para o sofrimento. Mas podemos tentar dar um sentido a essas vidas que vivem o sofrimento.

 

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