18 Novembro 2021
"Qual é o sonho que queremos realizar? Qual é a transformação real que queremos gerar no mundo como comunidade? A pertença à comunidade não é gerada por algo que se faz, mas por compartilhar uma visão, um sonho. Esse é o ponto de partida generativo de uma comunidade".
A opinião é de Domenico Marrone, teólogo e padre italiano, em artigo publicado por Settimana News, 16-11-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há já algum tempo, vem-se afirmando que as comunidades eclesiais vivem (ou deveriam viver) um momento de grande mudança: uma mudança mais profunda e radical do que qualquer outra renovação vivida em tempos passados.
Tal convicção é sustentada pela retórica da mudança causada pela pandemia – um evento que já é objeto de uma hermenêutica “apocalíptica” generalizada –, interpretada como uma ruptura de época, um divisor de águas entre uma era e outra da história, quase como se fosse o primeiro evento desse tipo.
Mas o que queremos dizer com “mudança”? Em que consiste? É feita sobretudo de arquiteturas pastorais diferentes das adotadas até agora? De novos setores ou mesmo apenas de novos nomes dados a setores já em operação ou à sua inserção em campos de atividade mais amplos?
Na realidade, nunca será a mudança das formas estruturais e organizacionais que produzirá uma transformação verdadeira e estável na consciência de uma comunidade. Pelo contrário, as transformações exteriores podem até induzir à ilusão de ter dado um passo rumo ao chamado “novo”, mas, de fato, afastando esse novo, provocando o fenômeno da “imunidade à mudança”, como tem sido definida por alguns estudiosos.
Como escreveu o Pe. Spadaro na La Civiltà Cattolica, “para fazer sínodo, é preciso expulsar os mercadores e derrubar as suas mesas. (...) Mas quem são hoje os ‘mercadores do templo’? Só uma reflexão impregnada de oração poderá nos ajudar a identificá-los. (...) Os mercadores estão sempre perto do templo, porque ali fazem negócios, ali vendem bem: formação, organização, estruturas, certezas pastorais. Os mercadores inspiram o imobilismo das soluções velhas para problemas novos, ou seja, o usado seguro que é sempre um ‘remendo’, como o pontífice o define. Os mercadores se orgulham de estar ‘a serviço’ do religioso. Muitas vezes, oferecem escolas de pensamento ou receitas prontas para usar e geolocalizam a presença de Deus que está ‘aqui’ e não ‘ali’” (La Civiltà Cattolica, n. 4.113).
A verdadeira mudança ocorre somente quando todos os que compõem uma comunidade avançam para um nível vibratório outro e alto: em outras palavras, quando o seu fogo intrínseco (“Eu vim para lançar fogo sobre a terra: e como gostaria que já estivesse aceso!”: Lc 12,49), a sua paixão se torna mais viva e, consequentemente, a luz que dela emana se intensifica e atrai; quando tudo aquilo que faz parte da vida de uma comunidade – relações, conteúdos cognitivos, qualidade do pensamento, valores, planos e projetos, e assim por diante – é levado conscientemente de um grau de luz e energia para outro, mais atraente e mais promissor.
A verdadeira mudança é a que intensifica a consciência e a missão de cada componente e que envolve todos os membros da comunidade, cada um de acordo com as suas possibilidades e o papel de serviço que desempenha dentro do conjunto.
Sem visão (Vision [1]), porém, a mudança é impossível. Todo programa de mudança precisa de uma Vision. O problema principal, portanto, é a visão, uma visão que envolva coração, cabeça e mãos.
É óbvio que o agente fundamental desse tipo de mudança é a consciência humana, com o seu poder de incidir sobre tudo aquilo que a cerca e sobre o qual repousa a sua atenção.
Se a intenção é a de manter acesa a chama consciente do amor (paixão) rumo a um propósito evolutivo (mudança) em tudo aquilo com que nos relacionamos, inevitavelmente ocorrerá uma passagem de estado nas “coisas que tocamos”.
A mudança em uma comunidade não pode derivar das propostas de formas diferentes feitas por alguém, por melhores que possam ser. Mas deve ser acompanhada por vias internas por cada um e por todos, com persistência: é essa universalidade que ativa a onda transformadora que impulsiona quem dela participa rumo a uma nova etapa evolutiva. O importante é se envolver, sentir-se parte ativa do processo em curso, de modo totalmente independente da dimensão visível da própria tarefa e do papel que se desempenha.
A vida do grupo muda apenas graças aos fogos acesos por cada um, que, convergindo, impulsionam todos para o futuro. Cada um deverá encontrar em si o seu próprio modo, porque este não é igual para todos e não pode ser avaliado com base em manifestações externas, mas só pode ser percebido por vias internas através do coração.
No entanto, é evidente que, para garantir o sucesso da mudança, são necessários uma visão e um envolvimento ativo de todos os membros da comunidade, por meio de uma liderança participativa (não autocrática) e uma clareza operacional, no momento de pôr a mudança em prática. Trata-se também de identificar uma equipe visionária, reconhecendo a qualidade e o talento das pessoas, dando-lhes confiança.
Sim, porque, antes mesmo das soluções e das programações, precisamos de visões. Antoine de Saint-Exupéry afirmava: “Se queres construir um barco, não reúnas homens para cortar madeira, dividir as tarefas e dar ordens, mas ensina-lhes a nostalgia pelo mar vasto e infinito” [2].
Mudar significa olhar para a frente, andar rumo ao futuro. O que nos impulsiona a fazer isso é sempre um objetivo em devir, algo que queremos obter, alcançar, algo no amanhã que queremos conseguir. Em suma, uma visão daquilo que será e aonde queremos aportar.
Enfim, precisamos ver o futuro antes que ele se realize, temos que imaginá-lo para depois poder construí-lo. A visão, antes mesmo que o planejamento, é confiança, certeza em uma perspectiva racionalmente impossível. A visão é uma sentinela, um alerta, mas também um caminho rumo a uma realidade muitas vezes considerada improvável.
A verdadeira sabedoria genuína nem sempre está em uma atitude racional, necessariamente conforme às premissas e, por isso, estéril, mas às vezes na clarividente e visionária “loucura”.
Como comunidades cristãs, precisamos crescer em visão. No Primeiro Livro de Samuel, conta-se que, naquela época, que corresponde ao ano 1000 a.C., “a palavra do Senhor se manifestava raramente, e as visões não eram frequentes” (1Samuel 3,1). E o livro dos Provérbios nos diz ainda que, “sem a visão, o povo se torna desenfreado” (Provérbios 29,18).
Cada comunidade eclesial, paroquial e diocesana, em sintonia e dentro do caminho da Igreja universal, é chamada a definir a sua própria Vision, um sonho que pretende realizar por meio da sua própria práxis pastoral.
A primeira coisa que o Papa Francisco nos deu foi um sonho: a Evangelii gaudium. “Sonho com uma Igreja...” Ele nos descreve com que ele sonha, nos diz a sua visão, e é ela que arrasta as pessoas, que as põe em movimento dentro de um processo generativo.
A categoria do sonho é muito cara ao Papa Francisco. Certamente, não se trata da evasão que faz perder o contato com a realidade da vida cotidiana, mas sim da visão capaz de orientar, de indicar a direção de marcha, de impulsionar à mudança.
Para o Papa Francisco, o sonho é um instrumento político, capaz de remendar e regenerar tecidos e espaços sociais rasgados e rejeitados. Ele é capaz de suscitar amizade social, como instrumento de transformação do mundo (Fratelli tutti, n. 183), tendo feito primeiro a transformação dos corações com uma grande ação educativa (Fratelli tutti, nn. 167-169).
Qual é o sonho que queremos realizar? Qual é a transformação real que queremos gerar no mundo como comunidade? A pertença à comunidade não é gerada por algo que se faz, mas por compartilhar uma visão, um sonho. Esse é o ponto de partida generativo de uma comunidade [3].
O fato é que, no substantivo “sonho”, nós talvez entrevejamos os contornos irrealistas da ilusão e da não concretude. Mas sabemos muito bem que não é assim. O sonho é desejo, expectativa, impulso criativo... É saber que algo de novo terá que acontecer.
A Vision representa uma imagem fascinante e atraente que se abre ao futuro, um sonho. Ela expressa o modo (o como) em que queremos ser Igreja.
Sem visões, o povo de Deus perde toda a perspectiva, toda a tensão projetual e, portanto, se desmancha no pântano das escolhas de pouca importância e nas práticas de piedade.
Sem visões, o povo de Deus está pronto para se submeter a quem promete rápidas satisfações pseudorreligiosas (e quantas foram oferecidas durante esta pandemia!), isto é, a quem garante que o empanturramento de práticas de piedade pode substituir uma vida de fé real e satisfatória.
Mas o que entendemos propriamente com a categoria da “visão”? Acima de tudo, é preciso dizer que uma visão não é uma construção abstrata, uma teoria filosófica, ou sociológica, ou histórico-cultural, ou pastoral. Se assim fosse, hoje teríamos inumeráveis visões, para todos os gostos ou tendências.
Uma verdadeira nova visão é precisamente um ponto de vista diferente sobre as coisas e, portanto, em última análise, uma forma diferente de ser homem e mulher, de ser fiel, que emerge em um dado momento da história, para iluminá-la de outra forma e, precisamente assim, reorientar o seu processo de desenvolvimento.
A visão deve ser capaz de evocar com suficiente clareza a imagem de um futuro possível, credível e desejável. Trata-se de sonhar grande. E de sonhar juntos. Como Igreja, não desperdicemos tempo com coisas inúteis, sonhemos! Precisamos de um impulso forte, honesto e eficaz para o futuro. Trata-se de ousar, de ter impulsos, de olhar além.
As “visões” não vêm à tona quando nos curvamos obsessivamente sobre nós mesmos, considerando continuamente as feridas, fragilidades, limites, vulnerabilidades, bloqueios, medos, transformando grupos e comunidades em uma espécie de grupo permanente de ajuda mútua. Ao continuar nessa direção, não só nunca aflorará nenhuma visão, mas também traímos a nossa missão. Acabamos em uma imperdoável autorreferencialidade eclesial.
Não só isso. Acabamos produzindo fiéis-cacto. Por onde passam, deixam feridos. Fiéis que se alimentam todos os dias de desconfiança e se defendem de todos, devido ao fato de que cada um sangra e sempre considera o outro como a causa das suas feridas.
Ou acabamos produzindo fiéis-bola, fiéis cheios, inchados, orgulhosos das suas tradições, das suas práticas que não precisam de nada nem de ninguém.
A Igreja precisa de fiéis livres. Livres do medo, do preconceito, homens e mulheres de pensamento livre, com ideias fortes por serem temperadas pelo debate (sinodalidade não como teologúmeno, mas como estilo permanente), para fazer uma experiência autêntica de um pensamento inovador e, portanto, para abrir frestas à luz de visões inéditas na história.
“Sínodo/sinodalidade estão se tornando slogans, uma nova retórica eclesial que esconde as muitas dificuldades, senão até a oposição, de presbíteros e bispos em relação a essa mudança” (cardeal Grech) [4].
Como disse o Papa Francisco no longo discurso que dirigiu aos participantes da primeira Congregação Geral da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre o tema “Os jovens, a fé e o discernimento vocacional”, a tarefa do Sínodo é “fazer germinar sonhos, suscitar profecias e visões, fazer florescer esperanças, estimular confiança, enfaixar feridas, tecer relações, ressuscitar uma aurora de esperança, aprender uns com os outros e criar um imaginário positivo que ilumine as mentes, aqueça os corações, restitua força às mãos” [5].
Confio a conclusão às palavras de um cardeal teólogo e poeta, José Tolentino Mendonça, escrito no seu “Elogio da sede”:
“Há nas nossas culturas, e nas nossas Igrejas de igual modo, um déficit de desejo. Quando se adverte que estamos assistindo no presente à emergência, cada vez em escala maior, de sujeitos sem desejo, isso deve conduzir-nos a uma autocrítica eclesial. Nós, os batizados, formamos uma comunidade de desiderantes? Os cristãos têm sonhos? A Igreja é um laboratório do Espírito onde, como no provocador oráculo de Joel (3,1), os nossos filhos e filhas profetizam, os nossos anciãos têm sonhos e os nossos jovens constroem novas visões, não só religiosas, mas igualmente novas compreensões culturais, econômicas, científicas, social?” [6].
1. Em língua inglesa, o termo é “Vision”, tomado emprestado de outros âmbitos, mas de uso já comum também na pastoral.
2. A. de Saint-Exupéry. Cittadella. Roma: Borla, 1991.
3. Diocese Suburbicária de Albano. Creativi per fare. Il discernimento all’opera. MiterThev 2019.
4. Entrevista ao cardeal Mario Grech concedida a Franco Ferrari, Missione Oggi, n. 5, setembro/outubro de 2021.
5. Francisco. Discurso aos participantes na primeira Congregação Geral da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre o tema “Os jovens, a fé e o discernimento vocacional”, 3 de outubro de 2018.
6. J. Tolentino Mendonça. Elogio da sede. São Paulo: Paulinas, 2018, p. 49.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A Igreja precisa de um laboratório de novas visões. Artigo de Domenico Marrone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU