12 Novembro 2021
"A recusa ao emprego sinaliza que estamos diante um movimento que irá alterar a composição de classe?". A indagação é de Cesar Sanson, professor na área da Sociologia do Trabalho na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, autor do livro O Trabalho nos clássicos da sociologia: Marx, Durkheim e Weber (2021).
Continuam repercutindo os dados divulgados pelo Departamento de Trabalho dos Estados Unidos em que 4,3 milhões de americanos pediram demissão recentemente. Um movimento batizado como a “Grande Renúncia”. Diante da já escassez de mão de obra nos EUA, as empresas desesperadamente passaram a aumentar os salários, oferecer bonificações, pagar estudos, planos de saúde, horários mais flexíveis e até mesmo dinheiro apenas para comparecimentos a entrevistas.
Apenas nos EUA, desde abril, cerca de 20 milhões de trabalhadores abandonaram seus empregos e houve um recorde de aposentadorias. Em 38 países da OCDE, são 20 milhões a menos de trabalhadores ativos do que antes da pandemia; 14 milhões abandonaram o mercado de trabalho, não trabalham e nem procuram emprego. Em comparação com 2019, são 3 milhões a mais de jovens entre os que não trabalham e nem estudam.
E não se trata de um movimento nos países ricos; aqui no Brasil, o mesmo acontece: “Ou eu não estou sabendo anunciar, ou estou pagando pouco, ou estou tratando mal, ou sei lá”, escreveu o empresário de Curitiba (PR) Beto Madalosso (Carlo Ristorante e Pizzaria Madá) nas redes sociais recentemente. Ele procura profissionais da cozinha, bar, salão e gerência e destaca que a cada dez candidatos, oito não se apresentam para a entrevista marcada. Para tentar solucionar o problema, a Associação Brasileira de Bares e Restaurante (Abrasel-PR) lançou um curso gratuito para formar jovens de até 29 anos. Além da formação, os selecionados já saem com um emprego garantido com carteira assinada em restaurantes parceiros e salário de R$ 1.400 ao mês. Mesmo assim, a entidade não está conseguindo preencher todas as vagas das turmas.
Um paradoxo. O desemprego nunca foi tão alto e, mesmo assim, muitos se recusam a aceitar um emprego formal. Quais são as razões? Ainda é cedo para conclusões, mas parece que durante a pandemia, muitos que perderam o seu emprego ou foram temporariamente afastados se deram conta de como as suas vidas no trabalho eram sem sentido; trabalhava-se muito e ganhava-se pouco e, ainda pior, em ambientes muitas vezes tóxicos em que patrões autoritários humilham e constrangem trabalhadores. Por outro lado, é possível que tantos outros se deram conta dos seus “empregos de merda”, na categorização feita por David Graeber, em que o trabalhador percebe que a sua atividade é completamente sem sentido, nada acrescenta para a sociedade e muito menos para ela mesma. Trata-se daquele emprego que “emburrece” a pessoa, que não agrega nada para o seu enriquecimento pessoal.
Na outra ponta, por outro lado, em oposição ao mercado formal, assiste-se a uma explosão de trabalhadores por conta própria, aqueles que trabalham em plataformas de aplicativos. Os trabalhadores de aplicativos já se constituem na maior categoria de trabalhadores no Brasil e provavelmente em todo o mundo. Esses milhares que trabalham nestas plataformas encontram-se nessa atividade porque não encontram mais um trabalho formal que consideram satisfatórios ou porque se recusam à subordinação do emprego formal que se traduz em salários baixos, horários fixos, pouca flexibilidade, tarefas repetitivas e relações abusivas por parte de patrões. É uma pergunta.
Inúmeras pesquisas estão sendo realizados tendo como pano de fundo a "uberização do trabalho" e já se sabe que nem tudo pode ser debitado na conta do desemprego gigantesco ou na ideologia do empreendedorismo. Ou seja, muitos preferem esse trabalho – aplicativos – a um trabalho formal, não porque estejam seduzidos pela narrativa do empreendedorismo, mas porque consideram que a ausência de direitos e mesmo a intensificação no trabalho compensam a tirania praticada por patrões e os baixos salários que anteriormente ganhavam.
A conclusão é mais ou menos a seguinte que ouvi de um trabalhador de aplicativo: “agora trabalho muito mais, mas não tenho aquela coisa do horário fixo, ganho mais do que ganhava e não tenho um patrão me enchendo o saco”.
Tudo indica que a raiz da recusa ao emprego formal está associada a dois fatores: baixos salários e rejeição a relações de subordinação. Se é um fato, estamos diante de um movimento que irá alterar profundamente a composição de classe.
Composição de classe é um conceito que deriva da teoria social de classe dos escritos marxianos e que foi recolocado no debate pelo chamado operaísmo, uma corrente originária de intelectuais italianos que se envolveram nas lutas operárias nos anos 1960 e 1970 na Itália. De acordo com Leo Vinicius, essa corrente afirma que o último grande ciclo de lutas da classe operária se baseou numa determinada composição de classe que vem sendo posta em xeque pela reestruturação produtiva que fragmentou a classe trabalhadora. A novidade nessa interpretação é que a crise do fordismo, muito mais do que uma ação comandada pelo capital, foi colocada em marcha pelos próprios trabalhadores. Ou seja, é a reação, a luta social dos trabalhadores que obrigou o capital a se transformar. O fordismo como forma de organização da produção e da vida social – lembremos de Gramsci, fordismo = americanismo - foi colocado na berlinda pela luta dos próprios trabalhadores.
Nessa perspectiva, o que se quer dizer é que a rejeição ao emprego de carteira assinada sinaliza para algo mais profundo, uma reação a determinada subordinação. Nesse caso, a recusa à CLT, um aparente paradoxo, não se dá em função da suposta ideologia empresarial do empreendedorismo, mas como reação dos próprios trabalhadores a um tipo de trabalho que se manifesta como cerceamento a autonomia, ou seja, prefere-se trocar a carteira assinada em nome da "liberdade" no trabalho. Essa hipótese precisa ser melhor apurada. Mas há outros sinais que a corroboram, como, por exemplo, o que vimos no boom do pleno emprego durante os anos dourados do governo Lula. À época, viu-se uma intensa rotatividade na mão de obra, as pessoas trocavam de emprego a toda hora, como a oferta era grande, saía-se de um emprego e entrava-se noutro. A explicação aqui é de que os baixos salários associado a relações de disciplinamento e subordinação no trabalho levavam as pessoas a procurarem algo melhor, retroalimentando o ciclo da rotatividade.
De qualquer forma, nessa leitura da recomposição de classe que se manifesta, por exemplo, em trabalhadores de aplicativos, nada autoriza dizer que os mesmos abdicam da luta. Essa "nova classe" continua sendo de trabalhadores, sem carteira e sindicatos, mas de trabalhadores e como trabalhadores lutam, como se viu no breque dos apps.
Essa recomposição de classe nos apresenta ainda outra “provocação” feita por Zibechi: “o trabalho assalariado não é o caminho da emancipação, como erroneamente consideramos por muito tempo, em especial nós que viemos do campo marxista”. Zibechi sugere que outra forma social de trabalho pode ser criada, como a que em que “centenas de milhares de pessoas em coletivos autogeridos, controlam seus tempos e modos de fazer, sem capatazes, nem patrões, baseados na ajuda mútua, na cooperação e no espírito comunitário”.
Aliás, nessa perspectiva sugere-se a leitura da instigante entrevista de Geneviève Pruvost, socióloga do gênero e do trabalho pouco conhecida no Brasil, que apresenta o ecofeminismo e sua respectiva da economia de “subsistência” como uma alternativa ao capitalismo-fordista predador e predatório.
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A recusa ao emprego. Está em curso uma recomposição de classe? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU