26 Outubro 2021
"A universalidade é uma dimensão essencial da fé cristã e, quando o cristão se encontra com o outro, deve sempre reconhecer-se em dívida para com ele, uma dívida de amor (cf. Rm 13,8): isto é, deve amar Jesus com a as vida Jesus Cristo e testemunhar a esperança que o habita, a qualquer pessoa, sempre, sem qualquer outro limite que não o do respeito. Sim, esses lugares teológicos de ruptura ou separação entre judeus e cristãos representam a singularidade do cristianismo em relação ao judaísmo", escreve Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por Vita Pastorale, outubro de 2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Depois da urgente reflexão sobre o quarto homem, retomamos o caminho cristológico, para reiterar mais uma vez a nossa fé cristã naquele que é o Filho de Deus, que foi um homem como nós, que nasceu de uma mulher e viveu entre o seu povo de Israel, morrendo condenado na cruz e ressuscitando porque foi chamado dos mortos pelo Pai no terceiro dia. Para nós cristãos, seus discípulos, Jesus é o Messias prometido aos padres e enviado por Deus a nós nos últimos tempos, é quem cumpre todas as Escrituras da Aliança com Abraão, Moisés, Davi e o povo santo, é aquele que confirma a Torá e os profetas, mas que também se revela Senhor da Torá, e que vive em Deus antes dos profetas. Ele certamente não queria fundar uma nova religião, nem provocar um cisma de seu povo santo, mesmo que isso depois aconteceu devido à separação entre irmãos gêmeos: ambos gerados pelo antigo Pacto, ambos destinatários da Torá, ambos chamados à salvação pela fé, pela adesão à aliança com o único Deus vivo e verdadeiro. Certamente deve-se reconhecer que os gêmeos deram diferentes interpretações à lei e à profecia, à história da salvação e à missão no mundo, mas sem nunca romper aquele vínculo indissolúvel que, às vezes, pode conhecer o ciúme e até a emulação, mas que deve, depois, sempre retornar ao fraterno acolhimento mútuo.
Também nos últimos dias, uma polêmica se acendeu entre rabinos e posições cristãs, em referência às palavras do Papa Francisco pronunciadas durante uma audiência na qual o Papa comentou a Epístola aos Gálatas do apóstolo Paulo. Na realidade, as palavras do papa eram cheias de respeito pela Torá e, portanto, pelos judeus que hoje a praticam com fervor, confiança e amor ao Senhor.
Simplesmente, lendo Paulo, o Papa Francisco repropôs uma convicção dos discípulos de Jesus: Deus fez uma aliança unilateral com Abraão antes mesmo de dar a lei ao povo que nasceria dele e, portanto, há um primado da promessa de Deus sobre a Torá. Esta última permanece santa, permanece em vigor, deve ser observada pelos fiéis, mas com a consciência de que todos desobedecem à lei e ninguém a cumpre plenamente. Por isso, a observância da lei não basta para a salvação e deve intervir a graça, o amor gratuito de Deus que justifica quem pecou. Já o escrevemos no texto anterior: a lei é boa, santa, deve ser sempre obedecida, mas não é mais a última palavra de Deus para nós. A última palavra é Cristo e sua misericórdia que sempre prevalece também sobre a justiça.
Nós, cristãos, devemos estar muito atentos às palavras que usamos quando percorremos veredas de interpretação que poderiam ferir nossos irmãos judeus, que não são uma realidade do passado, que estão ao nosso lado, testemunhas do Deus vivo. E é preciso ter em mente que a hipocrisia de quem simula um comportamento religioso, mas cujo coração está cheio de ídolos, se manifesta onde há religião, onde há religiosos, homens e mulheres, seja qual for o credo a que se refiram. Portanto, quando Jesus admoesta, ataca e ameaça os fariseus nos Evangelhos, não pretende condenar a todos, mas apenas alveja alguns deles, seus interlocutores, falsos, duplos, hipócritas: o mesmo que hoje se poderia dizer de certos católicos ou de certos eclesiásticos...
Mas não só na relação com a lei se fez uma distinção entre judeus e cristãos, aconteceu também em outros lugares teológicos. Poder-se-ia mesmo falar de uma "ruptura", especialmente no que diz respeito ao templo, em que Jesus proferiu palavras inequívocas nos passos dos profetas, especialmente de Jeremias (cf. Jr 7,4). O templo de Jerusalém, lugar da Shekinah de Deus, na verdade não preservou sua realidade sacramental para os cristãos, porque agora Jesus é o templo de Deus, e o Deus vivo não é mais adorado no templo de Jerusalém, nem no templo no monte Samaria, mas no Espírito Santo e na verdade que é Jesus Cristo (cf. Jo 4,21-23). Porque agora, como o apóstolo revela, o verdadeiro templo é o corpo do cristão e todo homem é um templo de Deus! Paulo escreve: “Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós? Vós o recebestes de Deus” (1 Cor 6,19; cf. 3,16).
O templo de pedra de Jerusalém, lugar da presença de Deus, será destruído em 70 e o culto dos discípulos de Jesus não será mais celebrado nem em templos nem em altares, mas na vida cotidiana de homens e mulheres, um culto que agrada a Deus de acordo com Paulo (tean loghikèn latreían, Rm 12,1). Sua oração será a escuta da Palavra de Deus contida nas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento, será louvor e agradecimento a Deus, será partir o pão e beber do único cálice para se tornar o único corpo de Cristo presente em história entre os homens. Não devemos ter temor de confessar com parrésia que no templo de Jerusalém ocorreu um cisma entre nós e os judeus, porque agora a compreensão do culto era diferente.
Também não podemos esquecer outra ruptura que tem seu significado: aquela interpretação diferente do vínculo com a terra de Israel.
Sabemos que a terra é a promessa louca de Deus a Abraão (cf. Gn 12,1.7 etc.). Este vínculo, sempre ameaçado pelos inimigos históricos de Israel e pelos perseguidores do povo santo, é para os judeus um vínculo teológico, mas dentro da promessa de Deus. Permanece verdade que, com a vinda de Jesus e com o surgimento da comunidade cristã, este vínculo com a terra se dissolve: os cristãos se sentem sem uma terra própria, sem pátria, e descobrem uma vocação para a diáspora, para o exílio entre as gentes, sem nunca se identificarem com uma etnia ou com uma terra. São estrangeiros e peregrinos, a caminho do reino de Deus, com o mandato entre os povos de anunciar a libertação e o perdão dos pecados de Jerusalém a Roma (cf. Mt 28,20; Lc 24,47; At 28,11-31). É significativo que a Epístola aos Hebreus negue mesmo que os pais (o povo de Israel) tenham cumprido a promessa da terra feita por Deus a Abraão. Deus, na realidade, havia prometido outra terra, outra cidade, da qual ele mesmo é arquiteto e construtor, a cidade do Reino! (cf. Hb 11,10,31-40).
Por fim, é preciso dizer que Jesus consome uma ruptura sobre o tema dos laços de sangue, no horizonte de uma fraternidade universal. A ruptura com a família, com os consanguíneos, em muitos aspectos é imanente à ruptura com a terra. Não é fácil aceitar essas verdades, mesmo para nós, cristãos: os laços de sangue para Jesus e, consequentemente, para nós, não são decisivos e, sobretudo, nunca deveriam constituir um obstáculo ao encontro entre os homens; seja qual for a língua que falem, seja qual for o povo e a cultura a que pertençam, todos são irmãos e irmãs.
A universalidade é uma dimensão essencial da fé cristã e, quando o cristão se encontra com o outro, deve sempre reconhecer-se em dívida para com ele, uma dívida de amor (cf. Rm 13,8): isto é, deve amar Jesus com a vida Jesus Cristo e testemunhar a esperança que o habita, a qualquer pessoa, sempre, sem qualquer outro limite que não o do respeito.
Sim, esses lugares teológicos de ruptura ou separação entre judeus e cristãos representam a singularidade do cristianismo em relação ao judaísmo.
E devemos assumi-los para conscientizarmo-nos de que somos chamados a viver o Evangelho de Jesus Cristo, e não simplesmente uma mensagem religiosa. Nossa identidade está em jogo, nem mais, nem menos! O cristianismo nada mais faz que renascer constantemente e, mesmo nesta hora de crise, é possível vivermos uma vida cristã em conformidade com o Evangelho. Mas é necessário "refundar a nossa fé" no único fundamento que é Jesus Cristo Senhor, homem e Deus, Vivente para sempre e sempre conosco, cuja vinda gloriosa aguardamos!
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A redescoberta da verdadeira identidade cristã. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU