31 Agosto 2021
Quando São Paulo fala da justificação pela fé, ele está na verdade retomando profundas convicções de algumas tradições judaicas. Porque se alguém afirmasse que a própria justificação é obtida pelo cumprimento da Lei com as próprias forças, sem ajuda divina, estaria caindo na pior das idolatrias, que consiste em adorar a si mesmo, as próprias forças, as próprias obras, ao invés de adorar ao único Deus.
O comentário é de Victor Manuel Fernandez, arcebispo de La Plata, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 30-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
É imprescindível lembrar que alguns textos do Antigo Testamento e muitos textos extra-bíblicos hebraicos já mostravam uma religiosidade de confiança no amor de Deus e convidavam ao cumprimento da Lei ativada nas profundezas do coração pela ação divina (cf . Jr 31, 3,33-34; Ez 11,19-20; 36,25-27; Os 11,1-9, etc.) (1). A "emuná", atitude de profunda confiança em Yahweh, que ativa o cumprimento autêntico da Lei, "está no cerne da exigência de toda a Torá" (2).
Um eco recente dessa antiga convicção judaica, que renuncia à autossuficiência diante de Deus, pode ser encontrado na seguinte frase do Rabino de Israel Baal Shem Tov (início do século XIX): "Temo muito mais minhas boas ações que me produzem prazer do que aquelas más que me causam horror”(3).
As tradições judaicas também reconhecem que para cumprir integralmente a Lei é necessária uma mudança que começa nos corações. Cristãos e judeus não dizemos que o que vale é o cumprimento externo de certos costumes sem o impulso interior de Deus. A teologia judaica na realidade coincide com a doutrina cristã neste ponto, especialmente quando se parte da leitura de Jeremias e Ezequiel, onde aparece a necessidade da purificação e a transformação do coração. Como não ver em Rm 2, 28-29 uma continuação e um aprofundamento de Jr 4,4; 9 24-25)? Judeus e cristãos reconhecemos que a única lei externa não nos pode mudar sem a obra purificadora e transformadora de Deus (Ez 36,25-27), que por nós já começou a fazer-se presente em seu Messias (Gl 2,20-21) .
Por outro lado, lembramos que segundo a interpretação profunda de Santo Agostinho e Santo Tomás sobre a teologia paulina da nova lei, a esterilidade de uma lei externa sem a ajuda divina não é apenas uma característica da Lei judaica, mas também dos preceitos que o próprio Jesus nos deixou: “Até a letra do Evangelho mataria se não tivesse a graça interior da fé, que cura” (4).
(1) O texto de Ab 2,4 , que expressa essa atitude fundamental, é de fato citado por São Paulo quando fala da justificação pela fé em Gl 3,11 e Rm 1,17.
(2) Cf. C. Kessler, Le plus grand commandement de la Loi (cit) 97. Deve ser dito aqui que as declarações de Paulo sobre uma "caducidade" da Lei deveriam ser inseridas no contexto da "doutrina rabínica dos éons", segundo a qual no final dos tempos, o instinto do mal será erradicado dos corações humanos e a lei externa não será mais necessária. Paulo de fato acreditava que estava vivendo nos últimos tempos e esperava por um retorno iminente do Messias: "Paulo era um fariseu convicto de que estava vivendo em um tempo messiânico": H.J. Schoeps, Pau1. The theology of the Apostle in the light of Jewish religious story, Filadélfia, 1961, p. 113. Por isso, em 1Timóteo, quando a expectativa de uma vinda iminente havia sido muito mitigada, a lei adquiriu maior importância (cf. 8-9).
(3) Citado por E. Wiesel, Celebración jasídica, Salamanca, 2003, p. 58; Celebrazione hassidica, Milão, 1987.
(4) Santo Tomás de Aquino, Summa Theologiae, questão 106, artigo 2.
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Lei e graça para judeus e cristãos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU